Um papo com Arthur Japin, autor da biografia romanceada de Santos-Dumont sobre a sua luta para inventar o avião, contrariar uma sociedade conservadora e lidar com sua homossexualidade
Quando a réplica do 14-Bis ganhou os ares acima do Maracanã durante a abertura das Olimpíadas havia um fã especialmente comovido: Arthur Japin. O escritor holandês de 60 anos havia lançado poucos meses antes O Homem Com Asas (Tusquets), uma biografia romanceada de Alberto Santos-Dumont, personagem sobre o qual se debruçou durante anos. Mais que criar um registro factual, Japin entrou na pele do inventor buscando interpretar suas reflexões, suas emoções e suas descobertas: não por acaso o livro começa com o misterioso episódio do desaparecimento do coração de Santos-Dumont.
“EU SOU Santos-Dumont”, brinca o holandês, enfatizando o seu lado na discussão que tomou conta das redes sociais quando o voo do 14-Bis nas Olimpíadas reacendeu o velho Fla-Flu: afinal, quem inventou o avião, o brasileiro ou os norte-americanos irmãos Wright? Japin — que é casado com o texano Benjamin Moser, autor da biografia de Clarice Lispector responsável pela crescente popularização da escritora no mundo — tem um entusiasmo genuíno pelo Brasil e um amor desmedido por um de nossos personagens mais fascinantes e contraditórios. Nesta entrevista à Airborne, Japin comenta sobre o eterno FlaFlu, como foi ouvir “a voz” de Santos-Dumont dentro da cabeça e as controvérsias que cercam o Pai da Aviação: sua homossexualidade, sua depressão e seu suicídio.
Por que Santos-Dumont? Não me lembro quem me falou dele primeiro, acho que foi Benjamin. Agora sei que ele foi o personagem ideal para mim. Me fascinam pessoas que não se encaixam bem na sociedade, tentando sobreviver, lutando contra o impossível. Santos-Dumont tinha um sonho de criança. Tinha lido os romances de Júlio Verne, mas ninguém disse a ele que eram só ficções. Quando descobriu, não perdeu a esperança, e sim se certificou que aqueles sonhos poderiam virar realidade. Não tinha escolha, não estava confortável entre outras pessoas. Escolheu viver acima deles!
Como foi assistir à abertura das Olimpíadas? Foi além de emocionante para mim. Quando você vive com um personagem tanto tempo, vira algo pessoal. Este tributo a ele e sua invenção foi bem merecido e visto por bilhões. Se ele pudesse saber!
Você seguiu depois pelas redes sociais toda a controvérsia que ressurgiu sobre a paternidade da aviação entre americanos e brasileiros? Foi um debate bem quente. Amei, porque trouxe Santos-Dumont à atenção de tantas pessoas. Estou do seu lado, ou melhor, EU SOU Santos-Dumont. Não há absolutamente nenhuma dúvida de que ele foi a primeira pessoa a navegar sobre as nuvens. Está fora de disputa. Ele fez isso com seu balão e depois com seu avião. Tenho certeza de que os irmãos Wright estavam fazendo o mesmo nos EUA. Mas o que me interessa é que Santos-Dumont fez o avião para todos. Ele não pediu uma patente, porque ele queria que todos construíssem a máquina. Era seu sonho, ele achava que o avião traria a paz. Já os irmãos Wright queriam enriquecer com sua invenção. É por isso que trabalharam secretamente, esperando por uma patente que estava pendente. Por causa de seu segredo, ninguém, à exceção de sua irmão, soube de suas experiências. Já Santos-Dumont foi visto por milhares em Paris. Em seu tempo ele foi reconhecido mundialmente como o inventor da máquina voadora mais pesada que o ar. Por isso ele arriscava sua vida diariamente. É isso o que importa.
Como foi a pesquisa? Escrevi muitos romances históricos e quando comecei não havia internet. Tinha de viajar pelo mundo. Agora é fácil acessar arquivos e ler todo tipo de material original sem precisar sair de sua mesa. É menos romântico mas mais rápido. Claro que viajei para o Brasil muitas vezes, mesmo antes de conhecer Benjamin, em 2000. É sempre inspirador ver os lugares de alguém cujos sentimentos e pensamentos você escreve sobre.
Por que um romance histórico e não uma biografia? Tudo começa com uma questão que me inflamava, quando o descobri: meu Deus, como você sobreviveu? Não digo fisicamente, mas emocionalmente. Quando você sobrevive sendo super-sensível, diferente e frágil como Santos-Dumont? Escrevi o romance para compreendê-lo e encontrar uma resposta para esta questão: como ele manteve a fé, onde ele encontrava forças, onde estava a sua dor, sua felicidade… Essas respostas você não vai encontrar nos arquivos. Os fatos de uma vida nos dizem o que alguém fez. Procuro pela camada intermediária: como ele sentia sua vida. Essa resposta você só encontra através da arte.
Como foi “entrar na mente” de Santos-Dumont? Esta é uma das maravilhas da escrita. Quando você sabe muito sobre alguém, surge um ponto em que você se torna “maduro”. Ele começa a falar com você, crescer mais forte e dizer a você coisas que você não poderia saber. Sei muito bem que esta virou a MINHA voz, feita de todas as coisas que eu sei, mas também tem uma mente própria e me traz a lugares que eu não conhecia. É a ficção, mas às vezes se comprova factual. Como isso acontece eu não sei. É como um ator improvisando: você conhece o personagem e a situação e a partir daquilo você pensa e age como ele. Muitas vezes isso revela uma verdade. É possível inventar a realidade.
Por que você abre o romance falando sobre o sumiço de seu coração? Bem, é uma história real! A realidade é quase sempre mais estranha que a ficção. Como romancista eu nunca poderia inventar algo assim. É tão estranho e belo. A jornada do coração… quando você, como romancista, teria a chance de escrever algo assim? Eu vi o coração, lá no Campo dos Afonsos, no Rio. Foi muito emocionante. Se você for lá, visite e diga: ‘Olá, Alberto, você não foi esquecido’.
No Brasil o fato de Santos-Dumont ser gay é um tanto escamoteado. O que acha disso? Não é um assunto tão importante para mim, especificamente. Importa é se alguém ama outra pessoa. É o que nos faz humanos. Se se ama um homem ou uma mulher não interessa. Estranho as pessoas se preocuparem em provar que ele não era gay, como no Brasil. Na Europa e nos EUA já faz tempo que as pessoas pararam de pensar que ser gay é algo estranho. Além da evidência ser impactante: você percebe isso pelas fotos de Santos-Dumont, sente isso, e mesmo em sua época os jornais apontavam como ele se vestia e gostava de tricotar e bordar… Ele criou uma moda além de seu tempo. Usava colares de ouro, braceletes e pulseiras, amava! Isso não era muito bem aceito em sua época. Ele era quem precisava ser, abertamente. E isso, além de seus voos, fizeram dele um herói de verdade. O que é assustador é ainda hoje certas pessoas negarem sua identidade. O problema real é que as pessoas pensam que um herói como Santos-Dumont, um piloto, alguém que arriscava diariamente sua vida, não possa amar homens. Ainda existe essa ideia ridícula de que um homem homossexual não possa ser um homem de verdade. Acordem! Estamos no século 21. Já é tempo de reconhecer a importância dos homens e mulheres gays em nossa cultura, história e sociedade. E mesmo na história da aviação: de Leonardo da Vinci a Alberto Santos-Dumont, houve muitos pioneiros aviadores gays. É até mesmo ridículo colocar isso em discussão. Quem se importa com isso, exceto fanáticos ignorantes? Poxa, vamos sair do armário e cair na vida!
E sobre seu suicídio? Mais uma vez, sobre isso não há dúvida. Ele se enforcou logo depois de ver bombas caírem de aviões na Revolução de 1932. Sim, ele era depressivo e estava desapontado, seu sonho se transformou em um pesadelo. A evidência me parece clara. De novo: quem teria a coragem de terminar com a própria vida quando seu sonho acaba?
Como foi sua participação nesta última Flip? Foi uma experiência mágica. Primeiro, me emocionei ao saber como o Brasil ama Benjamin! Quando o conheci pela primeira vez, a primeira coisa de que falamos foi sobre Clarice Lispector. Ele trabalhou tão duro todos aqueles anos para dar a ela o mundo e foi tão bem sucedido… Agora ela é lida na China e na Ucrânia e em todos os lugares. Clarice é uma grande parte de nossas vidas. Sobre Santos-Dumont, algo inesquecível aconteceu durante a Flip que me fez amar o Brasil para sempre. Contei como as pessoas em Paris costumavam acenar para Santos-Dumont enquanto ele voava. Ele tinha um enorme lenço branco para acenar para elas. Era seu jeito de estar com as pessoas. No solo ele era muito tímido para se comunicar com elas, mas desse jeito ele demonstrava seu apreço pelos fãs. Então dizia à plateia na Flip que isso é algo que entendo muito bem, pois sou como Santos-Dumont: escrever é meu jeito de mostrar como sou, meu jeito de me conectar com meus leitores. Encontrá-los significa encontrar o mundo. Disse a eles: “Falar para vocês é meu jeito de acenar para vocês”. E então alguém puxou um enorme lenço branco e começou a acenar para mim, e outra pessoa fez o mesmo, e então todo mundo: cem pessoas mostravam seu amor por mim através de seus lenços. Nunca tive uma experiência como esta: por um instante, eu fui Alberto!
[entrevista originalmente publicada na revista Airborne]
Bela entrevista e emocionante imaginar a cena do lenço branco!
gracias Juba 😉