Terra desolada
Em Vozes de Tchernóbil, a escritora bielo-russa Svetlana Aleksievitch se vale de monólogos de pessoas comuns para criar uma narrativa possível para uma tragédia inexplicável
Cuidado: este livro é altamente tóxico. Se você lê-lo durante um dia de sol, o azul enferruja na hora. Abri-lo durante um dia cinzento e frio pode atirar o leitor a uma depressão. Sua leitura requer estômago forte, emoções sob rédea curta e disciplina mental suficiente para passar uma temporada no inferno. Inferno de onde ainda não saíram muitos dos personagens de Vozes de Tchernóbil — A História Oral do Desastre Nuclear (Companhia das Letras), da autora bielo-russa Svetlana Aleksievitch, Prêmio Nobel de 2015.
“O inferno tem mil entradas; umas são pontos turísticos, já outras são mais disfarçadas”, cantava Alex Antunes em um clássico do rock underground dos anos 80, “Sobre as pernas”. Se Tchernóbil hoje é um cartão-postal — há no livro um capítulo todo dedicado à propaganda: “Visite a Meca nuclear a preços módicos” —, Vozes é o guia mais adequado. Svetlana usa quase que somente relatos diretos de testemunhas da maior catástrofe nuclear do século 20; narrativas terríveis recolhidas logo após o acidente que liberou níveis altíssimos de radiação na região de Tchernóbil, Ucrânia, sede da usina nuclear que explodiu em 1986. Embora as histórias detalhem o desastre, não deixam de refletir outras tragédias que abalaram o povo russo — o cerco a Leningrado na Segunda Guerra, os assassinatos em massa durante o stalinismo, as privações do gulag, a Guerra Fria, a ocupação do Afeganistão: trata-se de um juízo final que prenuncia o colapso da União Soviética, apenas três anos depois.
Há alguns capítulos em que sobressai a própria voz inconformada da autora, mas a maioria é de personagens entrevistados longamente: cientistas, soldados, bombeiros, viúvas, crianças, agricultores, professores, trabalhadores da usina nuclear; de pessoas sofisticadas, que conseguem analisar até com certa distância o que lhes acontecia, até gente muito simples do povo, ainda atônita demais para compreender o tamanho do estrago. No aspecto formal do texto, é preciso atentar ao fato de que a leitura é íngreme. Não só pelo tema obviamente chocante, mas sobretudo ao seu caráter repetitivo – essencial do ponto de vista histórico e antropológico, mas cansativo do ponto de vista literário. A semelhança de muitos dos relatos os valida como testemunho documental mas também obriga o leitor a uma grande disciplina. Não se trata de um livro facilmente digerível tampouco de registro sensacionalista: nesse limbo radiativo reside o mérito da obra.
Ainda que incômoda por revelar terrores semelhantes, esta polifonia, por um lado, lembra outro gigante russo: Dostoiévski. O filósofo e linguista Mikhail Bakhtin foi o primeiro autor a apontar o caráter polifônico na obra do autor de Crime e Castigo: “Ao tomarmos conhecimento da vasta literatura sobre Dostoiévski, temos a impressão de tratar-se não de um autor ou artista, que escrevia romances e novelas, mas de toda uma série de discursos filosóficos de vários autores e pensadores: Raskólnikov, Míchkin, Stravróguin, Ivan Karamázov, o Grande Inquisidor e outros. Para o pensamento crítico literário, a obra de Dostoiévski se decompós em várias teorias filosóficas autônomas mutuamente contraditórias. Entre elas as concepções filosóficas do próprio autor nem de longe figuram em primeiro lugar”, escreveu Bakhtin.
De fato, a própria tradutora de Svetlana, Sonia Branco, professora de literatura russa da UFRJ, aponta a semelhança: “Dostoiévski permite que seus personagens defendam ideias que contradigam as posições do narrador e mesmo do autor”, disse. Outros autores russos também virão à mente: os soldados pobres e enlouquecidos de Isaac Bábel, os burocratas ingênuos de Nikolai Gógol, os mujiques esfomeados de Tolstói, os próprios “humilhados e ofendidos” dostoievksianos — em suma, o zé-povinho russo, oprimido por czares, oficiais do império, militares ou altos funcionários do regime comunista —, eis o multifacetado protagonista deste Vozes. Dentro os 10 milhões de bielorussos. dois milhões vivem em terras contaminadas. “Somos um laboratório vivo”, lamenta um professor vocacional. O livro também é, portanto, um experimento literário: sua força reside em sua rude e perturbadora originalidade.
Sobrepostos uns aos outros quase que sem edição — a autora permite tanto redundâncias e repetições quanto recorrentes silêncios e reticências —, estes monólogos formam uma perspectiva nada monolítica do juízo final. Se tomarmos como exemplo um único tema — o amor — e dois relatos, veremos duas faces da mesma miséria humana. Há a jovem viúva de um soldado que se recusou a abandonar o marido mesmo quando os médicos e enfermeiros lhe disseram: “Isto não é mais um homem, é um reator nuclear”. Ela chega ao ponto de dividir a câmera hiperbárica onde seu marido ficou confinado durante duas semanas — prazo fatal para todos os que receberam a carga direta da explosão —, e a exposição à radiação fez com que a filha nascesse morta. O doloroso processo de desintegração física do marido é narrado em detalhes; mesmo quando ele cospe os próprios pulmões, a esposa segue cobrindo-o de cuidados e heijos. “Não sei do que falar… da morte ou do amor? Não é a mesma coisa?”, pergunta-se a solitária voz que abre o livro. É um relato em tudo antagônico à narrativa de um professor de história que foi conduzido à força para ser um “liquidador” — pessoas que eram pressionadas pelo governo russo a fazer o trabalho de coveiros. Obrigados “a cavar e enterrar a própria terra”, despedaçavam árvores, matavam animais, destruíam e enterravam as casas dos camponeses, arrasavam suas plantações e pequenas hortas; viviam no meio da floresta, em pequenas barracas, “uma realidade que congrega o fim do mundo e a idade da pedra”, ele descreve. Apesar do horror, o novo serviço é recebido de bom grado pelo professor, pois ele havia acabado de descobrir que a mulher o traía e estava saindo de casa. “Os homens nunca estão à altura dos grandes acontecimentos. Os fatos os superam”, reflete, lembrando que o pai havia lutado contra o cerco de Moscou mas não havia atinado com a História no exato momento em que ela ocorria. “Quanto a mim, minha mulher tinha me deixado”, ele remói, amargo.
Recordações da casa dos mortos
“Para que as pessoas recordam?”, pergunta-se um psicólogo, arriscando várias respostas: para restabelecer a verdade e a justiça, para se libertar e esquecer, porque compreendem que participaram de um evento grandioso, porque buscam no passado alguma proteção. Ao fim do relato, ele conclui: “Falei com você, compreendi alguma coisa… agora não me sinto tão sozinho”. Outro professor se pergunta: “O que é melhor, lembrar ou esquecer?” ele recorda a guerra de propaganda: nos primeiros dias, os livros sobre Hiroshima e Nagasaki sumiram das bibliotecas; depois os jornais passaram a publicar notícias falsas, para não assustar a população. O professor se sentia na Lua. “Por que se escreve tão pouco sobre Tchernóbil? (…) Fechamos os olhos como crianças pequenas e acreditamos que assim nos escondemos, que o horror não nos alcançará. (…) Se você conversa com alguém, essa pessoa começa a contar e te agradece por tê-lo escutado. Não te fará entender, mas pelo menos você o ouviu”, analisa o professor. Há ainda a história de um operador de câmera que resolve voltar a Tchernóbil para filmar apenas os animais, ao mostrar seus filmes sobre a evacuação e ser cobrado por uma criança: por que não os ajudaram também? “Quem sabe os pássaros falavam com São Francisco nas suas próprias línguas? Ele compreendia a linguagem secreta”, imagina.
Para os soldados era belo servir à pátria recolhendo e enterrando os escombros da explosão. “Queria fazer algo heroico, experimentar minha capacidade”, conta um jovem soldado que trabalhou anos em Tchernóbil. Ao voltar para casa, jogou toda a roupa no lixo mas deu o barrete para o filho pequeno. “Depois de dois anos, veio o diagnóstico: tumor no cérebro”, conta. Pela façanha, ganhou um diploma e mil rublos. O que aconteceu lá?, perguntou o filho. “Uma guerra”. Não encontrei outra palavra”.
Impossível não lembrar dos “homens ocos” de TS Eliot, um dos mais conhecidos poemas sobre a desolação deixada pela guerra (“E nisto consiste/ o outro reino da morte:/ despertando sozinhos/ à hora em que estamos/ trêmulos de ternura/ os lábios que beijariam/ rezam para pedras quebradas”). Impossível não lembrar também de É Isto Um Homem?, de Primo Levi, um dos mais crus e comoventes relatos sobre o absurdo funcionamento da vida em Auschwitz. Pois sim, existe muita vida em Tchernóbil, e é este paradoxo que agita o livro. Como viver depois de um evento tão indescritível que transforma qualquer lampejo de empatia com o próximo, ou consigo mesmo, em uma prece para o deserto?
“Logo depois da guerra, Theodor Adorno disse que escrever um poema sobre Auschwitz é um ato bárbaro”, conta Svetlana no posfácio em que investiga as razões que a levaram a escrever Vozes de Tchernóbil. Entre elas, o conselho que seu professor, o escritor Aliés Adamóvitch — que lhe emprestou 500 rublos para comprar o gravador com que registrou todos esses monólogos —, que considerava um “sacrilégio” compor prosa sobre os pesadelos do século 20. “Aqui não se tem o direito de inventar. Deve-se mostrar a verdade como ela é”, justifica a autora. No entanto, ela demonstra a falibilidade da literatura ao lembrar que a velocidade dos eventos contemporâneos dissipa as fronteiras entre o fato e a ficção. “Mesmo a testemunha não é imparcial. Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador”, diz. “De noite é como se eu voasse”, conta um menino que vive há anos em um hospital. “Voo ao redor de uma luz brilhante. Isso não é o mundo real e também não é o além. É um e outro, e alguma coisa mais.” O que será a literatura senão o esforço de uma criança em dar conta da descrição do inferno?
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*Publicado originalmente na edição de julho de 2016 da revista Cult