
Foi dono de banco, de coleção de arte e de uma mansão de 50 milhões de reais. Hoje vive de favor. Que motivos Edemar Cid Ferreira tem para sorrir? Perfilei para a saudosa Alfa o ex-colecionador – cujas ex-obras alimentarão o acervo de vários museus brasileiros
“Apolônio era meu cachorrinho pug, que, por conta de um AVC, andava sempre de cabeça baixa. O Apô era apegado a uma empregada, a Lúcia, que, depois de 30 anos com a gente, precisou se aposentar. Você entende, em um determinado momento precisamos diminuir a criadagem… Um dia, o cachorrinho viu a porta aberta e disparou correndo feito doido. Se atirou na piscina, aquela decorada com ladrilhos de Volpi. Acho que o coitadinho se suicidou, sabe, porque viu a Lúcia arrumando a mala, chorando, dizendo ‘vou embora…’” A história do cão suicida é uma das várias anedotas contadas por um bem-humorado Edemar Cid Ferreira na conversa com ALFA. Por que tanto bom humor?
Há sete anos, o santista era dono do banco de investimentos que mais crescia no Brasil, o Santos. Contavam-se entre seus clientes empreiteiras, corretoras, corporações, partidos e políticos, como José e Roseana Sarney ou Zélia Cardoso de Mello. Há sete anos, o banqueiro, um dos mais importantes colecionadores do país, era dono de cerca de 15 mil peças de arte. Locomotiva de exposições portentosas – como Brasil 500 Anos, que mostrou 20 mil obras para 2 milhões de visitantes, recorde nunca batido –, o presidente da Bienal de São Paulo havia organizado 43 vernissages de artistas brasileiros no exterior. Há sete anos, em abril de 2004, Edemar inaugurava sua mansão de 4 mil m2, idealizada pelo arquiteto Ruy Ohtake. A maior e mais cara casa particular do Brasil foi decorada pelo estrelado Peter Marino e ornada com 687 obras de gente como Portinari, Rauschenberg, Vik Muniz, Sol Lewitt, Tunga, Cartier-Bresson; a open house aconteceu com uma recepção para o presidente do World Economic Forum, Karl Schwob. Há sete anos, Edemar organizava o casamento de seu filho Leonardo com Rebeca Abravanel, filha do também (então) banqueiro Silvio Santos – a lista de presentes incluía itens como um faqueiro francês de 13,3 mil reais.
Sete meses depois, o Banco Central interveio em seu banco. Sete anos depois, todos esses números são um grande e rotundo zero.
Condenado por formação de quadrilha, gestão fraudulenta e lavagem de dinheiro, Edemar viu o banco falir em 2005, sob um rombo de 2,2 bilhões de reais. Em 2006, passou três meses detido – saiu da prisão graças a um habeas corpus. Voltou a residir em sua casa suntuosa, situada na rua Gália, Jardim Everest – ponto mais alto do bairro do Morumbi –, até ir parar no olho da rua em março de 2011. O despejo é mais um nó no infindo imbróglio judicial. Com todos os bens bloqueados, ele diz não movimentar nenhuma conta bancária: “Foi um Collor que passou em minha vida”, brinca, enquanto rascunha furiosamente organogramas e gráficos numa das dez folhas de sulfite que usou durante a entrevista. Afirma viver da bondade de amigos: “Recebi 20 convites para me hospedar, depois do despejo. Vivo de dinheiro que me emprestam, é assim que pago meus advogados e assessores”. Procurando um cartão para o repórter, Edemar enfia a mão no bolso e pesca um grampo com 5 cédulas de 50 reais: “Olhaí, esse é o dinheirinho que eu posso gastar hoje.”
“Hoje” é a palavra mais repetida pelo banqueiro, que completou 69 anos neste 31 de maio. Embora afirme estar trabalhando num misterioso projeto envolvendo segurança na internet, Edemar evita planos para o futuro. Afinal, sua vida permanece em insólito suspense. Ele mora atualmente a cem metros de sua antiga residência, na casa de um amigo empresário, José Papa Júnior, ex-presidente da Federação do Comércio de São Paulo e também ex-banqueiro. Seu estafe, que chegou a 50 funcionários, está reduzido ao Zé, um copeiro forte e de olhos tão estrábicos que até o fim da entrevista não se sabia se ele oferecia um cafezinho ao repórter ou ao fotógrafo (e houve meia dúzia de rodadas cafeínicas). A vista da sala do amigo é parecida com a de sua mansão – do outro lado do rio Pinheiros e do Jóquei Clube, Edemar divisa o imponente edifício de seu ex-banco, hoje escritório da massa falida administrado pelo interventor Vânio Aguiar, o homem que há sete anos é sua pedra no sapato. Ex-diretor do Banco Central, Aguiar foi quem requisitou extensão de falência para a empresa Atalanta, offshore proprietária da casa de Edemar, determinando seu despejo — executado pelo juiz Régis Bonvicino, o que não deixa de ser uma ironia, ou licença poética: o “bom vizinho” é poeta.
Segundo a Justiça, tudo o que ficou dentro da casa deve ser destinado ao pagamento das dívidas – apenas roupas e objetos pessoais podem ser retirados. Afirmando-se vítima de um abuso judicial, Edemar move uma ação contra o interventor, pois seus bens correriam perigo: Aguiar teria inutilizado as 72 câmeras da mansão, trocadas por 30, menos potentes, além de quebrar a senha de 17 computadores do ex-banqueiro. “São meus, não pertencem à massa falida”, jura o banqueiro, que teme pelas obras da casa. “Nenhuma das obras tem seguro. A casa está sem seguro contra incêndio. Ele meteu 252 pessoas lá dentro. É aquele negócio, vai um ali, outro aqui, mexe, toma um vinho… Meu computador lia as informações das 72 câmeras; agora isso não existe mais.” Edemar jura que sua preocupação não é de cunho pessoal. “Não tenho amor por coisas materiais”, assevera, grave. “Meu sentimento não vai nessa linha. As obras são importantes para a humanidade, para o Brasil.”
Duas coleções na casa, visitada por ALFA dois dias após o despejo, chamam mais a atenção do que a portentosa reunião de peças artísticas. Uma é o cartório de Edemar – uma babélica biblioteca de documentos que registram as centenas de processos judiciais que enovelam o banqueiro falido. Segundo ele, foi obrigado a estudar Direito para compreender o tamanho do rombo. Nos dois anos anteriores à intervenção do Banco Central, Edemar conta que quase não dava expediente no Santos. “Ia de manhã, passava o chicote em todo mundo, disparava o que tinha que de fazer e depois seguia para a Bienal. Eu tinha 25 diretores, nunca precisei assinar nada. Aliás, nunca assinei sequer um cheque”, afirma. A outra coleção fica em um dos escritórios da casa. Numa mesa adornada por três nus masculinos – raridade na mansão, onde abundam nus femininos, de Gisele Bündchen a Marilyn Monroe – espalham-se várias torres de CDs e pilhas de sulfites. Neles estão escritos, em letra bem redonda e clara, títulos de standards norte-americanos. No meio das pilhas, um solitário post-it amarelo, em letra nervosa, avisa: “Vou pedir o almoço, ok?”. Edemar desvenda o enigma: os CDs são coletâneas de canções “discotecadas” pela mulher, Márcia, a pedido de amigos. “Ela é apaixonada por música brasileira, francesa e americana. Como é o nome desse rapaz dono da Joven Pan… ah, sim, o Tutinha. Ele me disse que nunca ouviu nada igual [aos setlists]. Márcia faz montanhas disso e dá para os amigos. Põe tudo bonitinho, é caprichosa, é o tesão dela. Agora tá louca da vida porque, sem o computador, não consegue mais fazer os CDs.” Alguns meses depois de se mudar para a casa de José Papa Jr., Márcia pegou seus CDs e foi morar na casa de familiares. Ficar sem casa bambeia qualquer casamento.

Acumular pilhas de documentos e queimar dezenas de CDs eram alguns dos escassos passatempos do casal na vida pós-derrocada. Se na fase gloriosa de patrono das artes gastava metade do ano em viagens ao exterior e a outra metade organizando exposições, eventos e recepções a presidentes, reis, rainhas e personalidades, de 2004 a 2011 Edemar praticamente não pôs o pé para fora de casa. Todavia, nunca deixou de ir a exposições. “Fui na Bienal, evidente. Mas não na abertura, porque causaria perplexidade. Acompanho tudo. Vou a galerias, em horários tranquilos, quando não tem ninguém. Os artistas não me procuram, eu também não os procuro. Não vou em festas, me contenho. Você não pode brigar com a realidade.” Num desses passeios, alguém o abordou de modo negativo? “Nunca! Tudo bem, deve ter gente que não me receberia num jantar… Mas continuo indo com minha mulher ao La Tambouille, ao Figueira Rubayat, ao Shaya…” Além dos melhores restaurantes da cidade, Edemar frequentou por três meses instituições em que a comida era básica e cujas artes resumiam-se a rabiscos nas paredes: o xadrez da Polícia Federal, a penitenciária de Guarulhos e o presídio de Tremembé II. “Em Guarulhos, antes de ser colocado na carceragem comum, fiquei dez dias dentro de uma cela, sem sair, dormindo em uma cama de concreto”, conta. “Depois, passei para uma cela em que havia oito camas, um vaso sanitário, uma torneira e 20 presos. Uma situação sub-humana.”
Após 20 dias, Edemar foi transferido para Tremembé, um spa se comparado a Guarulhos. É um presídio reservado a policiais condenados, presos de alta periculosidade e outros que poderiam sofrer constrangimentos por sua posição social. Lá estão os irmãos Cravinhos (cúmplices de Suzane Richtofen), Mateus Meira, o estudante de Medicina que metralhou uma dezena de pessoas no cinema, o justiceiro (morto logo após sair da prisão) Cabo Bruno e Alexandre Nardoni (pai da menina Isabella). “Como minha prisão foi muito midiática, fui recebido como um estranho no ninho”, recorda Edemar. “Os presos queriam entender como uma pessoa do meu nível estava entre eles. Logo que cheguei, o chefe dos presos veio se oferecer para que eu o chamasse, caso tivesse um constrangimento”, lembra. Acostumado a guardar bens como os 19 milhões do fundo de pensão do Estado do Maranhão, Edemar trabalhou na guarda dos volumes com pertences dos presidiários. “Eram caixas numeradas com uma relação dos bens de cada preso. Ali ficava a lavanderia, administrada por um agente que assessorávamos: lavávamos o chão, limpávamos paredes e prateleiras, arrumávamos colchões, lençóis, mantínhamos o lugar asseado”, descreve. Cioso das aparências, o ex-banqueiro elegantemente não nomeia os “colegas” de xadrez – apenas diz que eram “um ex-doleiro famoso, um ex-prefeito e um ex-matador”. Embora qualifique o período como “os 90 dias mais terríveis da minha vida”, Edemar jura que nunca se sentiu deprimido: “Toda manhã, antes de trabalhar, fazia os exercícios espirituais que me acompanham há quarenta anos”.
Num outro canto da mansão, a reportagem encontrara uma folha com o poema “Se…”, de Rudyard Kipling. Nele, o poeta inglês dirige-se ao filho em versos célebres como “Se és capaz de arriscar numa única parada/ tudo quanto ganhaste em toda a tua vida/ e perder e, ao perder, sem nunca dizer nada, resignado, tornar ao ponto de partida […] Então és um Homem, meu filho!”. O poema é uma pista para os “exercícios matinais” de Edemar. “De manhã, tiro textos de livros e monto minha receita diária. A vida é feita de hábitos. Medo, ira e inveja são hábitos que você cria”, explica. Materialista, o ex-banqueiro não tem religião nem acredita em vida após a morte. “A gente não pode fugir da realidade. E a realidade acontece todo dia. Só conheço esta vida, e, quanto mais animada, melhor. Assim, hoje à noite vou sair com meu cunhadinho, levá-lo no restaurante do meu filho [L’Entrecôte de Paris]. Vou ser agradável, sorrir, olhar para a câmera e pensar ‘eu te amo’. Vou me vestir bem, me apresentar corretamente, cuidar do meu corpo. Não vou exagerar na carne. Posso comer aí uma ou outra menina na semana, mas nada de comer todo dia. Eu adoro a carne!”, declara Edemar, talvez uns dez quilos acima do peso. Outros hábitos diários incluem um Rivotril pré-travesseiro e, antes, vinho – segundo ele, uma taça. “Diga aí, Zé, quanto eu bebo todo dia?” O copeiro vesgo sorri sem graça: “Ah… uns 500 mililitros de vinho, né, doutor?” Edemar diverte-se: “Não fica exagerando para a imprensa!” Mas nada de charutos cubanos nem garrafas de Chateau Pétrus. Na semideserta adega da mansão havia somente destilados e vinhos nacionais.
“Não comprei nada nos últimos sete anos”, afirma Edemar. “Nem mesmo uma meia. Eu tinha tudo!”. Mas afinal, para que uma casa tão grande? O ex-banqueiro jura que sua mansão serviria de instrumento para convencer empresários e artistas para futuras exposições. “O diretor do Palácio de Versailles me hospedava na casa dele. Quando fui a Oxford, fiquei na casa dos diretores. Há um aspecto de credibilidade, que você inspira com seu ambiente. Eu levava empresários estrangeiros a Angra dos Reis, era um trabalho de sedução. Na casa da rua Gália, fiz um espaço para exposições e um puxadinho com 2 apartamentos para hospedar essa gente. É nesse relaxamento do charuto, do jantar, do vinho, do café da manhã, que você vai ganhando as pessoas… Minha casa mesmo tem só três quartos, é pequena. Eu vivia só no mezanino.” Mas dispor numa mesma parede Reischenberg, Portinari, Frank Stella, Sandro Chia, Anselm Kiefer e Baselitz não é um pouco megalomaníaco?
“Em casa eu colocava as coisas que eu gosto. Não tem um único prego na parede, elas ficam dependuradas. Então, fazia brincadeiras, mudava toda hora os quadros de lugar. A minha mulher implicava com a foto de uma fulana, que foi mulher de beltrano, não vou falar quem é, aí eu mandava a pelada pro acervo…”, ri Edemar. “Fulano” e “beltrano” são outras palavras muito usadas pelo ex-banqueiro. Embora afirme que a intervenção do banco Santos tenha advindo de um “acidente” do Banco Central – seu banco seria positivo e o rombo, um erro de interpretação –, Edemar não distribui nenhuma ofensa ou insulto a seus pretensos perseguidores. Pratica franciscanamente a política do “não sei, não vi, não conheço”.
Segundo testemunhas, seu padrinho José Sarney – que, em 1994, havia presenteado sua corretora com a licença para transformá-la em banco – o teria chamado de “moleque” quando soube do rombo. O senador não hesitou em resgatar as economias assim que a intervenção pareceu inevitável – e tal ato teria insuflado a boataria em relação à saúde do banco, o que acelerou as retiradas do correntistas. Foi a ficção da vida determinando o valor da ficção econômica: se nem o padrinho confia nesse banco, como vou deixar lá meu dinheiro? Apesar disso, Edemar só dirige elogios a Sarney (o ex-banqueiro é, aliás, padrinho da filha do senador, Roseana). “Quando vou a Brasília, eu o visito, ou o visito em sua casa em São Paulo. Quando ele estava de baixo de porrada eu o visitava!” E quem são seus melhores amigos hoje? “Ah, quando você tem esse problema, né… é difícil nomear. Amigos, mesmo, são poucos. Agora, ninguém me virou as costas, acredita? Mas também, eu não fiz nada pra ninguém. Não fui eu quem quebrou o banco, foi o Banco Central. O Banco Central quebra o banco que quiser!”
Em entrevista recente, Edemar lembrou que dois ex-diretores do Banco Central durante sua quebra hoje são diretores de bancos que atuam em segmentos concorrentes ao do Santos – o Safra e o Itaú. Coincidência? Durante a eleição para a presidência da Bienal, Edemar travou uma dura batalha com a então diretora do MAM, Milú Vilella – justamente herdeira do Itaú. Apesar da insinuação, Edemar afasta a hipótese de que interesses de outros bancos estivessem por trás do “acidente” que ocasionou a quebra do Santos. “Nossa disputa com dona Millu se dava no campo das artes”, esquiva-se. Sequer Vânio Aguiar, o administrador de sua massa falida e, em última análise, responsável direto por seu despejo, ganha algum veneno. “Vânio é uma sorte na minha vida”, sorri Edemar. “Somos amigos, temos uma cordialidade no trato. Ele está num córner muito difícil… Veio para acabar com meu banco e estou demonstrando que cometeu um erro. Ele usa da grande maldade de me fazer hospedar no vizinho para me humilhar, quer quebrar minha espinha. Mas eu não me humilho, porque vou vencer.” Edemar tem plena certeza de que neste ano mesmo o processo será encerrado, o dinheiro devolvido aos credores e devedores, a verdade restabelecida, a satisfação geral garantida e todos os seus bens de volta. Para quem observa de fora, sua inabalável pose confiante passa a impressão de certa irrealidade.
Se não há inimigos nem rivais, se tudo não passou de um acidente… O que teria acontecido de errado, Edemar? “Meu único pecado foi o da ‘edemasia’. Eu era muito ansioso, muito veloz, minha pressa deve ter passado por cima de muita gente”, sorri, compugido, a versão brasileira do Grande Gatsby – aliás, dono (ou ex-dono) de uma rara carta escrita por Scott Fitzgerald. Muito adequado a esse colecionador de coleções cunhar um pecado capital com seu próprio nome. À despedida, Edemar, um cavalheiro, aguarda que o carro da reportagem dê a partida antes de fechar o portão. A casa onde vive ostenta uma placa de “Aluga-se” e rachaduras podem ser vistas na fachada. Até que o carro faça a curva e passe pela fabulosa mansão do Morumbi, o pequeno Edemar despede-se com um sorriso afetuoso e convicto, o olhar de um homem que desfrutou de uma vida gloriosa – ou o olhar daquele velho parente que perdeu tudo mas soube preservar as aparências.
Que tetxto!