Resenhas: K. Dick, Mallo, mãe, Cercas

Boooooks

Tanta coisa pra ler que não sabe por onde começar? O velho Bressa te ajuda nessa. Toda semana seu querido Impostor traz notas curtas sobre lançamentos recentes ou nem tão recentes assim. Livros que resenhei para o Guia da Folha Livros Discos Filmes, para a revista Poder, onde titulo a coluna Cultura Inc., para outros veículos — ou para este blog mesmo. Tudo a um toque do botão Resenhas, aí em cima no menu. Fiquem com as seguintes dicas, por ora. E porra, LEIAM; livro não é só pra enfeitar a mesinha de centro da sala, cazzo.

 

Capa fodona do Pedro Inoue para a coleção K Dick da Aleph
Capa fodona do Pedro Inoue para a coleção K. Dick da Aleph

FAMA X ANONIMATO

> Fluam Minhas Lágrimas, Disse o Policial (trad. Ludimila Hashimoto). Aleph, 255 págs.

Imagine que você é a Oprah Winfrey, o David Letterman, ou, vá lá, o Luciano Huck, e, de um dia para o outro ninguém te conhece, sua passagem nunca foi antes sentida sobre a Terra. Sobre esta premissa, Philip K. Dick constrói uma trama falando de sociedade de consumo, mídia, filosofia, alteradores de consciência — e a natureza mutante da realidade. O livro foi escrito em 1974, bem antes do culto global às supercelebridades, bem antes de qualquer zé-ruela ser famoso-só-porque-é-famoso. Mas fama e anonimato são apenas estados alucinatórios para K. Dick, que já nos anos 60 havia previsto essa nossa triste “sociedade dos figurantes” — segundo o pós-debordiano conceito de Agustín Mallo — e a trata com acidez e lucidez habituais neste que é um de seus livros mais sarcásticos. Como todo grande escritor de ficção-científica, passado o estranhamento com a terminologia futurista (suave, em K. Dick), e com a louca vida de Jason Taverner, astro internacional de TV, aos poucos nota-se que o futuro, infelizmente, já chegou.

Bela capa da Milena Galli
Bela capa da Milena Galli

BELEZA TERRÍVEL

Nocilla Dream, de Agustín Fernández Malo (trad. Joana Angélica d’Ávila Melo). Cia. das Letras, 211 páginas

 Lautréamont, em seus Cantos de Maldoror, elogiava a “beleza convulsiva” surgida do “encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação“. Em seu romance, Mallo diz ter se inspirado no encontro fortuito entre a leitura de uma reportagem sobre a estrada mais solitária dos EUA e o verso de YeatsTudo mudou, mudou por completo/ uma beleza terrível nasceu” impresso em um sachê de açúcar de um restaurante, lidos no momento em que ouvia a canção “Nocilla, qué merendilla“, da banda punk Siniestro Total. Mais para hiper-realismo que para surrealismo, Nocilla Dream consiste de 113 capítulos, vários sampleados da obra de cientistas, escritores, ensaístas, jornalistas, em um achocolatado de narrativas que vão formando o que Mallo chama de “docuficção” — “uma vez que extraídos dessa ‘ficção coletiva’ que chamamos de ‘realidade'” e também “da ‘ficção pessoal’ que denominamos ‘imaginação’“. Um livro aberto para qualquer direção — como os desertos, onipresentes na trama.
mãe apaixonou-se pelo trabalho de Nino Cais e lhe pediu uma capa
O portuga mãe apaixonou-se pelo trabalho de Nino Cais e chorou até ganhar essa bela capa

MULHERES-A-DIAS

> o apocalipse dos trabalhadores, de valter hugo mãe. Cosac Naify, 185 págs.

Com a PEC das Empregadas o Brasil se deu conta de que ainda funciona na idade média — pelo menos foi o que as bizarras discussões surgidas com a consolidação da lei nos fazem crer. De nossa pátria-mãe, surge um livro para iluminar o outro lado da moeda. Nos rincões de Portugal, uma “mulher-a-dias” sofre um casamento tedioso com um sujeito bronco — e sua agonia aumenta porque o setentão dono da casa em que trabalha abusa sexualmente dela; para piorar, maria (grafa assim, caixa baixa) apaixona-se. Já sua confidente, a amiga quitéria, fatura trocados chorando as pitangas em enterros, e quebra a infelicidade namorando ucranianos emigrados. Sempre em minúsculas, o autor nos apresenta de modo engenhoso o pequeno mundo dessas mulherinhas, construindo o lirismo através de cenas, diálogos e pensamentos mínimos, recusando a pieguice e a adjetivação fácil; das franjas da sociedade portuguesa se revela o mundo contemporâneo — especialmente a mesquinhez dos poderosos e a capacidade de redenção dos humildes.

Foto do grande Howard Sochurek para uma capa de design convencional
Foto do grande Howard Sochurek para uma capa de design convencional

VIETNÃ ESPANHOL

>  A Velocidade da Luz, de Javier Cercas (trad. Sérgio Molina), Biblioteca Azul, 248 págs. 

Não é fácil casar a metaficção — aquela em que a própria literatura se torna tema e protagonista da trama — com uma narração concreta e descritiva, e ainda por cima permeada de reflexão esvaziada de retórica ou pompa, tudo isso partindo de referências autobiográficas… Terreno onde muitos autores contemporâneos têm derrapado, ou por excesso de cabotinismo, ou por levar-se a sério demais; ou por mera chatice. Não é o caso deste romance do espanhol Cercas, que narra a amizade, na universidade de uma cidadezinha norte-americana, entre um catalão professor de literatura hispânica com outro professor de espanhol — porém norte-americano, e ex-combatente do Vietnã. O catalão vai catar na história do outro um material para um romance — e o processo desta escrita é desvendado em uma escrita deliciosamente ágil por Cercas, que redigiu o livro para curar-se do sucesso avassalador de seu Soldados de Salamina.

 

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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