Depois do dilúvio de lançamentos, o que vale — e o que não vale — ler nas adaptações literárias aos quadrinhos
Nada parecia tão careta quanto representar Deus como um velhote barbudão. Eu teria preferido um Mr. Natural, mas Robert Crumb achou melhor definir o Deus do Velho Testamento e da Torá à maneira fixada em nossas mentes desde pequenos. Aquilo me desanimou. Enquanto ia folheando as páginas do Gênesis (Conrad) adaptado aos quadrinhos pelo mestre norte-americano, meu desânimo só crescia: como é que o gênio do underground dos anos 60, um dos mais provocadores artistas vivos, tinha traduzido o primeiro livro de maneira tão convencional? Crumb teria abraçado o conservadorismo no fim da vida?
Em uma segunda leitura, comecei a notar que se dava exatamente o contrário. Crumb havia feito uma leitura, de fato, realista da Bíblia — e, ao mesmo tempo, todo o peso de neuroses, transgressões, perversidades sexuais e chutes em dogmas variados presentes em toda a obra do pai do gato Fritz esvaía-se naquele traço inconfundível (suas mulheres de bundas e coxas grossas e seus homens fracos e inseguros estão todos lá), de certa maneira emprestando sua sujeira aos nada edificantes relatos do primeiro livro bíblico. Sua adaptação, assim, era ao mesmo tempo fiel, humana e crítica — sem mexer em uma vírgula do texto original, talvez escrito no século V a.C. Depois de ter adaptado outros autores — como Bukowski e Kafka —, Crumb tinha conseguido de novo uma das maiores façanhas para um quadrinista: tornar sua uma obra alheia. Na terceira leitura, eu já começava a pensar que o autor do Gênesis era o mesmo autor de Blues (também publicado pela Conrad). Vitória da contracultura sobre o berço da cultura ocidental.
Mas este é um raro capítulo dentro da história da arte sequencial e seu longo diálogo com a arte literária. Nem sempre uma adaptação de uma obra literária para os quadrinhos ganha o status de obra de arte autônoma — poucas vezes isso acontece, na verdade. Muitas vezes o excessivo respeito que o artista de quadrinhos tem pelo texto literário acaba por determinar a inferioridade do meio estruturado em imagem e texto em relação ao meio fundado na palavra. Esquece-se, aí, que a arte sequencial é na realidade um meio bem mais antigo do que a literatura — conforme Scott McCloud prova em seu imprescindível Desvendando os Quadrinhos (M.Books). Nesta segunda mais importante história em quadrinhos sobre as histórias em quadrinhos (a primeira é Quadrinhos e a Arte Sequencial, do mestre Will Eisner, editora Martins Fontes), McCloud demonstra que as HQs surgiram no Egito… há nada menos que 32 séculos.
Não há razão, portanto, em ver os quadrinhos como uma arte “menor” em relação à literatura, nem pensar que uma adaptação de uma narrativa literária aos quadrinhos seja “inferior” ao texto que lhe serviu de inspiração ou ponto de partida. Se isso ocorrer, é por conta do roteirista e do artista que não souberam explorar as potencialidades de arte sequencial presentes na narrativa original — aí incluídas a fábula, os personagens, as descrições, as cenas e até mesmo o estilo do escritor. Como no caso do Gênesis de Crumb, os quadrinhos podem mesmo tornar a narrativa original mais poderosa do que aquela expressa somente em palavras.
Inexiste uma fórmula que garanta a qualidade de uma adaptação. O primeiro ponto é a ambição da obra: se o objetivo é que a adaptação seja um auxiliar ao texto original, exige-se que ela seja o mais fiel possível. Se a meta é uma releitura, espera-se dos autores que utilizem os recursos da nova linguagem tão bem quanto o autor do texto original. O problema é que a maior parte das adaptações literárias, em geral leais aos originais, são tediosas, simplórias e sem criatividade. E o culpado é o governo — sempre ele! Quer dizer, em termos. Em 2006, o governo federal lançou o programa Biblioteca na Escola, visando incentivar o hábito da leitura em estudantes de escolas públicas do ensino fundamental e médio — e o programa incluiu histórias em quadrinhos de cunho educativo no acervo que distribui a estabelecimentos de ensino de todo o país. Atualmente, o programa distribui 6,7 milhões de livros para cerca de 68 mil escolas de ensino médio no Brasil, a um custo de 66 milhões de reais.
O programa acabou por explodir o universo das adaptações literárias em HQ — praticamente se tornou um subgênero nas livrarias, lembrando a época dourada em que a editora Ebal lançava clássicos como Dom Quixote roteirizados por Clarice Lispector, nos anos 60, vendendo milhares de exemplares. Obviamente, existem editoras que têm feito adaptações com pouco cuidado, às pressas, com o claro intuito de vender para o governo. Por outro lado, o programa tem permitido a quadrinistas viverem finalmente de quadrinhos. Recentemente, o crítico Luiz Antônio Giron caiu em cima das adaptações literárias: “Em geral, transposições de má qualidade, criadas por editores oportunistas, sequiosos de aproveitar a falta de vontade de ler da mocidade. As ilustrações são feias e caricatas, limitando-se a servir aos balões e descrições extraídas diretamente do livro. Sob o pretexto de facilitar a leitura, esse tipo de adaptação destrói a vontade de ler”, afirmou. “Adaptações literárias em geral geram uma perda de informação. Obviamente, a melhor lei não é a do menor esforço, e esses livros servem como incentivo a futuras viagens de leitura. Convém não confundir esses quadrinhos oportunistas com a grande arte de Will Eisner, Crumb, Frank Miller, Alan Moore e Joe Sacco”, relevava o crítico.
Cuidado com o degrau
Giron tem uma razão — hum, uma razão e meia. Está certo no que diz respeito à falta de qualidade da maior parte das adaptações literárias, feitas literalmente a toque de caixa — e só com o intuito de fazer caixa. A meia razão é que nem toda adaptação literária gera perda de informação: nos melhores casos, agrega outro tipo de informação — um vocabulário visual mais sofisticado, por exemplo. É uma questão análoga à famosa Teoria do Degrau. Segundo esta teoria, aquele que desse seus primeiros passos na literatura lendo Paulo Coelho, Fernão Capelo Gaivota ou EL James um dia subiria para o universo de Dostoiévski, Kafka e Borges. Infelizmente, a Teoria do Degrau pode ser facilmente derrubada apenas se observando a realidade: caso se concretizasse, clássicos ou livros de alta sofisticação literária também estariam naturalmente tranfegando pela lista dos mais vendidos — afinal, se tratariam das leituras seguintes àquelas de formação, certo? Os milhões que leram Paulo Coelho estariam agora comprando milhões de exemplares de Clarice Lispector, Ian McEwan ou Roberto Bolaño… Todos sabemos que isso não funciona: leitores familizarados com livros de baixa densidade estética sempre lerão livros de baixa densidade estética. Este é o perigo das adaptações ruins, conforme criticava Giron: acostumar o leitor a HQs pouco exigentes jamais ajudará a seduzi-lo para desvendar um universo literário mais rico.
No que diz respeito ao diálogo entre literatura e quadrinhos, é sempre divertido recorrer à famosa frase “escrever sobre música é o mesmo que dançar sobre arquitetura”. A sentença apócrifa (já foi creditada a Elvis Costello, Steve Martin e Bernard Shaw) indica que o diálogo entre meios não é tão direto. O mesmo se dá na transposição da literatura aos quadrinhos. Ao ler um livro, você imagina uma cena, um personagem; as palavras o induzem a raciocínios muitas vezes longínquos da narração à sua frente. Com os quadrinhos, vemos os personagens, os cenários, não os imaginamos; o tempo da narração também é mais acelerado.
No entanto, as imagens também nos sugerem paisagens interiores diversas, sensações mais ricas ou mais pobres — vai depender do talento do quadrinista. Para o artista Fábio Moon, que ao lado do irmão Gabriel Bá transpôs o conto O Alienista, de Machado de Assis, uma das maiores preocupações na adaptação é o espaço para contar a história. “Quando se está escrevendo, o mundo que você cria está nas palavras e na imaginação do leitor, enquanto nos quadrinhos você tem que mostrar tudo aquilo. Se você tiver um número de páginas limitado, terá de escolher melhor as imagens para caber tudo isso dentro da história”, analisa Fábio. “Você pode trabalhar a imagem para traçar melhor o clima da história. Outra coisa melhor é trabalhar melhor o silêncio; na parte escrita, quando um personagem faz silêncio, é preciso descrever isso. É quase como se estivesse acontecendo alguma coisa. Já nos quadrinhos, esses momentos silenciosos e de troca de olhares funcionam melhor.”
Fábio também crê que a união de imagem e texto tem uma dinâmica de leitura mais interessante para as crianças e para os jovens. No caso de O Alienista, tanto faz a ordem em que o clássico for lido: “Você pode ler o livro e depois os quadrinhos e vice-versa, acho que os dois são bacanas o suficiente para entreter o leitor”, diz ele, que, sempre ao lado de Bá, está agora transpondo o romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, a sair pelo Companhia das Letras. A editora, que criou o selo Quadrinhos na Cia, tem marcado presença na literatura em duas frentes. Uma é a das adaptações, como Jubiabá, de Jorge Amado, recriado com excelência gráfica por Spacca, ou Clara dos Anjos, de Lima Barreto, lindamente aquerelado por Lelis. Outra é criando parcerias inusitadas entre escritores e cartunistas, agora criando sobre roteiros originais — como em Guadalupe, de Angélica Freitas e Odyr e A Máquina de Goldberg, de Vanessa Barbara com Fido Nesti (este, aliás adaptou Os Lusíadas). Em 2013 ainda devem sair parcerias entre Emilio Fraia e DW, e Marcelino Freire e Guazzelli.
O mel do melhor
Para fazer uma boa adaptação é preciso um mergulho profundo na obra, pesquisando imagens de referência: geografia, arquitetura, mobiliário, roupas, costumes e formas de manifestar os sentimentos. É um trabalho bastante delicado de documentação, confome se percebe, por exemplo, na adaptação de Dom Casmurro, de Machado de Assis, pelo desenhista Rodrigo Rosa e o roteirista Ivan Jaf (Ática). Rosa, também autor de premiada adaptação de outro grande romance brasileiro — o capítulo “Luta” de Os Sertões, de Euclides da Cunha — recriou lindamente a famosa metáfora dos “olhos de ressaca” de Capitu. O romance machadiano aliás tem nada menos que quatro adaptações em quadrinhos (algumas bem toscas, diga-se). A mais recente (da Devir) é outro belo exemplo, assinado por Mario Cau (desenho) e Felipe Greco (roteiro), este com um traço mais contemporâneo e atmosfera mais sombria.
A versatilidade na transposição de Machado prova que há basicamente duas maneiras de adaptar um livro: ou extremamente fiel ao original (e aí temos muitas vezes balões e legendas enormes, com um texto antiquado que não combina com as imagens, parecendo anacrônico) ou adaptando-se a linguagem — o que faz surgir uma nova obra. “Como são linguagens diferentes, com recursos diferentes, há inevitáveis mudanças em relação ao texto original, independentemente do nível de fidelidade que se tenha. É, portanto, outra obra. Há uma tendência de se enxergar as duas produções (a original e a adaptada) como uma mesma obra, o que é um equívoco”, escreve o professor e pesquisador de quadrinhos Paulo Ramos.
De todo o joio despejado pelo mercado desde 2006, felizmente há dezenas de boas adaptações e um punhado de obras-primas. Há autores que têm um traço tão marcante que suas adaptações, a exemplo do que fez Crumb com o Gênesis, engolem o original — é o caso do romance A Relíquia, de Eça de Queiroz, conforme quadrinizado por Marcatti (Conrad). Outro autor cuja excelência na arte sobrepõe-se ao mais clássico dos textos é Marcelo Quintanilha, autor da linda Sábado dos Meus Amores, que adaptou O Ateneu, de Raul Pompeia (Ática), com grande criatividade.
Não só romances, como também peças de teatro, têm sido adaptadas à HQ, como é o caso de O Beijo no Asfalto, de Nelson Rodrigues, recriada com fidelidade pelo cartunista e roteirista Arnaldo Branco e o desenhista Gabriel Góes. O Pagador de Promessas, peça de Dias Gomes base do único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, foi esplendidamente adaptada por Eloar “Alemão” Guazzelli. O hiperativo gaúcho também responde por outra bela adaptação, agora d’A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães (Ática), também com o roteiro fluido de Ivan Jaf, e foi ainda mais longe no experimentalismo ao adaptar Os Demônios, de Aluísio Azevedo, pela Peirópolis. Esta editora, aliás, vem se especializando em adaptações pouco convencionais: lançou O Corvo, de Edgar Allan Poe (em tradução de Machado de Assis) no traço pop e sujo de Luciano Irrthum, e um divertido Dom Quixote em que Cervantes adaptou-se ao estilo bem humorado de Caco Galhardo.
E por falar em casamentos entre brasileiros e estrangeiros, esta é uma linha seguida pela Nemo, que lançou no mercado nada menos do que seis peças de Shakespeare retrabalhadas por artistas nacionais: Hamlet, Macbeth, Otelo, A Tempestade — e, o mais intrigante, Romeu e Julieta, que se destaca do lote por ser adaptado por duas garotas, a roteirista Marcela Godoy e a artista Roberta Pares — que deu ao trágico casal de Verona os olhos amendoados de personagens de mangá. A Nemo ainda entregou o clássico de Julio Verne, 20 Mil Léguas Submarinas, para o roteirista João Marcos e o artista Will, em um trabalho gráfico de alto apelo icônico.
Quando vemos gringos adaptando gringos, percebemos que ainda precisamos comer muito feijão com arroz no quesito desrespeitar-a-obra-original-para-criar-uma-obra-única. Guido Crepax fez isso lindamente, tomando para si tanto o Drácula de Bram Stoker (Martins Fontes) quanto a Justine de Marquês de Sade (Pixel) — ambas super trabalhadas na sensualidade. Compatriota de Crepax e tão safado quanto, Milo Manara usou o clássico manual indiano Kamasutra para uma história autoral de alta voltagem erótica (Conrad). Mostrado através de uma peça dentro do roteiro de quadrinhos, o shakespeariano Hamlet virou apenas mais um capítulo na saga do herói de aventura Ken Parker, nas mãos dos italianos Ivo Milazzo e Giancarlo Berardi, em Um Príncipe para Norma (dificílimo de achar, já que a Cluq só pôs pra vender uma tiragem de mil exemplares). Tim Hamilton fez um trabalho maravilhoso em Farenheit 451, autorizado pelo próprio autor, Ray Bradbury (Globo). E demonstrando total desapego em relação ao texto original, Seymour Chwast cometeu uma obra-prima pop ao adaptar A Divina Comédia de Dante (Quadrinhos na Cia.).
Um dos maiores escritores do século 20 foi quadrinizado em três roupagens distintas. O sombrio conto Na Colônia Penal (Quadrinhos na Cia.), de Franz Kafka, foi adaptado em cores quentes pela dupla francesa Sylvain Ricard (texto) e Maël (arte). Desenhista da clássica série de HQ pop Spy vs. Spy, Peter Kuper verteu histórias kafkianas ao mais puro expressionismo alemão em Desista! & Outras Histórias e A Metamorfose (Conrad). Por fim (só para terminar o texto com o mestre da contracultura), a vida do genial autor tcheco foi contada com maestria por David Mairowitz e desenhada, com o humor estranho de sempre, pelo incontornável Robert Crumb.
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*originalmente publicado na Revista da Cultura de maio de 2013