A era de ouro dos quadrinhos brasileiros

Select falou com quadrinistas, editores e críticos para entender: o Brasil chegou mesmo à Era de Ouro dos Quadrinhos?

Mauricio de Sousa dar autógrafos por cinco horas seguidas é uma cena normal – afinal, trata-se de uma lenda viva dos quadrinhos: seus personagens já venderam 1 bilhão de exemplares no mundo todo. Mas presenciar autores independentes autografando e rabiscando fanzines durante o mesmo período era uma cena impensável anos atrás. O clima de beatlemania em relação aos quadrinistas nacionais, com direito a assédio de marias-nanquim e paparazzi-mirins rolou no recente FIQ, o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte. O tradicional evento reuniu 150 mil pessoas em cinco dias – há dois anos, havia a metade disso –, culminando uma sequência de eventos internacionais da arte serial que começou na Gibicon de Curitiba, em julho, e se popularizou na RioComicon em outubro. O clima de “yes we can” nos três festivais, somados à cena fervendo de novos artistas e expressivas vendagens – só a Companhia das Letras, que publica quadrinhos há apenas 2 anos, vendeu mais de 160 mil exemplares de seus romances gráficos –, faz formular o diagóstico: o Brasil vive sua Era de Ouro da HQ. Quem é do meio confirma; mas vários pedem calma, e alguns até refutam essa tese.

 

“Sim. A HQ brasileira vive sua Era de Ouro”, afirma categoricamente Rogério de Campos, diretor editorial da Conrad, responsável por trazer ao mercado tanto luxuosas edições de gringos como Milo Manara e Robert Crumb quanto por apresentar com classe graphic novels de Marcelo Quintanilha e Allan Sieber. Campos acredita que houve momentos em que os quadrinhos eram mais fortes nas bancas de revistas e tinham tiragens maiores que as atuais – e também houve um tempo em que o gênero tinha mais influência cultural (como no Pasquim, por exemplo). “Mas nunca tivemos tantos quadrinistas com tanto domínio técnico e tanta variedade de estilos e gêneros sendo explorados ao mesmo tempo”, analisa. “Acho que o
reflexo desse momento bom de produção só vai aparecer mais tarde, e
enquanto isso é preciso manter o trabalho”, diz André Conti, editor do selo Quadrinhos na Cia, da Companhia das Letras. “Nossas vendas excelentes mostram duas coisas: que há público para os mais diferentes tipos de quadrinhos e que o crescimento das HQs nas livrarias não é em detrimento das bancas – somente demonstra que há um público novo, ou que parte do público das bancas migrou para as livrarias, seja por interesse (diversidade de gêneros etc) ou por ter amadurecido junto com as HQs”, explica. Afinal, os volumes editados pela Quadrinhos na Cia. são romances gráficos longos, às vezes de 300 páginas, narração sofisticada e preço fora dos padrões das bancas – caso tanto dos nacionais Memória de Elefante, de Caeto, Cachalote, de Rafael Coutinho e Daniel Galera, quanto dos livros de David Mazzucchelli e Chris Ware.

 

O quadrinista e editor Odyr Bernardi sublinha: “Agora, além de termos mais roteiristas – alguns, vindos do cinema e da literatura –, temos artistas pensantes, com um jeito todo particular de contar histórias e gerir a carreira”, analisa Odyr, que também tem uma graphic novel no forno da Quadrinhos na Cia. Jornalista especializado em quadrinhos, Delfin lembra que a HQ nacional viveu época dourada nos anos 50/60 com sua superpopulação de gibis de terror e mistério, e também nos anos 70, quando surgiram Laerte, Angeli, Glauco e Luiz Gê – publicações como Chiclete com Banana, de Angeli, vendiam 100 mil exemplares mensais, seguidas pelos 40 mil exemplares da Circo, de Laerte e Gê. “Mas acho que temos uma Era de Ouro despontando diante de nossos olhos desde a publicação do primeiro fanzine 10 Pãezinhos, de Fábio Moon e Gabriel Bá”, diz.

 

De fato, a carreira dos gêmeos paulistanos os coloca como os popstars dessa Era. Agraciada com o Prêmio Eisner, considerado o Oscar do gênero, sua HQ Daytripper figurou entre os livros mais vendidos da lista de quadrinhos do New York Times, provando ser possível debutar no mercado americano desenhando super-heróis e mais tarde devolver ao mesmo mercado uma história brasileira e nada heróica – como é a trajetória de Brás, um obituarista que sonha em viver uma vida menos ordinária. Télio Navega, que cobre quadrinhos no jornal O Globo, também aponta os gêmeos como principais nomes desta cena otimista, mas tempera a euforia com o fator econômico. “A boa fase está atrelada à estabilidade brasileira, ao dólar baixo e ao grande número de livros comprados pelo governo federal através do Programa Nacional Biblioteca da Escola”, lembra.

 

Pera lá!

Há, no entanto, quem prefira ir devagar com o andor. É o caso do jornalista Eduardo Nasi, que recorda: a expressão Era de Ouro nos quadrinhos apareceu nos EUA dos anos 50, quando os títulos de super-heróis vendiam milhões – e sequer eram considerados uma forma sofisticada de arte, como hoje. “Estamos muito dentro do movimento para definir se é uma grande era ou uma onda passageira. Ainda temos um mercado pequeno tentando acomodar muitos talentos emergentes”, diz. Também desconfia da falta de medidas para o mercado. “Dados concretos? Só a diversidade e a qualidade dos trabalhos que surgem. Há livros que esgotam e eventos movimentados, há bons títulos estrangeiros, uma produção nacional de ótimo nível… mas, tirando Mauricio de Sousa e Disney, não se sabe tiragem e vendagem de quase nada de uma forma concreta”, alerta.

 

Embora imerso na arte serial até o pescoço, o escritor Joca Reiners Terron é frio ao analisar o momento. Responsável pelo projeto que, através da produtora de cinema RT Features, idealizou a série de graphic novels reunindo escritores e quadrinistas publicada pela Companhia das Letras, Terron detesta expressões do tipo “Brasil, celeiro de gênios”. Crê que, para uma época perfeita se consolidar, será necessário assistir à produção dos artistas atuais por algumas décadas e ver se ela se mantém. “A Era de Ouro continua a ser os anos 40/50/60. Talvez, sim, estejamos assistindo a uma época dourada de divulgação das HQs, com talentos sólidos ou em vias de, campos de atuação mais amplo, do papel à webcomic, diversidade de estilos, gêneros, formatos, editoras interessadas em publicar HQ brasileira ao lado do melhor da HQ mundial”, pondera.

 

Fato é que quem põe a mão na massa prefere curtir o momento com esperteza. O jornalista Sidney Gusman, do site Universo em Quadrinhos, tem um excelente ponto de observação para observar o fenômeno tanto do lado industrial quanto do autoral: é editor da Mauricio de Sousa Produções. Ali criou a série MS50, em que quadrinistas da nova geração recriam os personagens da Turma da Mônica, e também o Graphic MS, convidando artistas como o premiadíssimo Danilo Beyruth a narrar histórias longas (Beyruth redesenha o Astronauta, Gustavo Duarte o Chico Bento, os irmãos Cafaggi a Turma da Mônica, e Shiko o Piteco). “Nos anos 40/50 publicou-se muito quadrinho, mas não era autoral como hoje”, recorda. “Trabalho desde 1990 e nunca vi nada igual: editoras publicando álbuns para livrarias às dezenas, fanzines virando revistas, talentos em todas as cidades.” Daí ter convencido Mauricio – que já vinha dos 400 mil exemplares mensais só com a Turma Jovem – a adaptar suas criações ao público adulto. O notório faro comercial do pai da Mônica não costuma falhar.

 

Cadê o meu?

Mais realistas, os próprios quadrinistas se ressentem da falta do ouro nos bolsos para consolidar esta Era. “Economicamente ainda estamos no bom caminho, mas falta muito pra tal era dourada”, avalia Rafael Coutinho, desenhista e co-roteirista da graphic novel Cachalote e, não custa lembrar, filho de Laerte Coutinho (“o Buda das HQs”, segundo Eduardo Nasi, por ser considerado não só um grande mestre como também um guia para os novatos). “Temos que lidar com o baixo consumo de livros e HQs em comparação com Argentina, França, Japão, EUA e Bélgica. Mas, há cinco anos, não havia uma estante de quadrinhos nas principais livrarias do país, e hoje todas têm, nem tanto editor gringo vinha pessoalmente rastrear a cena e convidar autores para projetos”, indica ele, que conta ser chamado a palestrar pelo país o ano todo: “Ler quadrinhos hoje é cool como era ler os beatniks nos anos 60”, brinca. “Vivemos é a Era do Fervor”, prefere Rafael Grampá, também detentor de um Prêmio Eisner, faturado com sua revista Mesmo Delivery – aliás, sendo adaptada ao cinema por Mauro Lima (Meu nome não é Johnny). “Temos boas HQs, muitas medianas e inúmeras ruins, mas pouquíssimas excelentes. Precisamos que o público consuma mais boas HQs brasileiras para as editoras pagarem melhor os autores. Mas o fervor em volta da HQ nacional já gera ótimas expectativas”, condimenta.

 

Todos os profissionais ouvidos por Select lembram: o bom período da arte serial pode ser só o início de uma fabulosa convergência de plataformas artísticas, editoriais e comerciais. “Com o livro digital e a impressão em demanda, encontrar seu público espalhado pelo mundo se tornou possível”, explica Odyr, ele mesmo responsável pelas caprichadas edições de suas histórias nonsense. “Os quadrinhos digitais chegam com tudo e as tablets vão se difundir mais rápido que o esperado”, aponta Delfin, ainda um tanto descrente em relação a adaptações ao cinema e animações: “Turma da Mônica também chegou ao mundo dos pixels e nada mudou”, diz. Nasi vê um futuro ainda instável: “Como as editoras vão ficar num mundo pós-Kindle, com livros digitais, pirataria, autores publicando por conta própria? O que vai acontecer se o mercado editorial brasileiro não souber fazer a transição para o digital?”, questiona.

 

Nesse sentido, Rafa Coutinho é cauteloso: “Acho perigoso quando os criadores de HQ pautam sua produção em função da possibilidade de seu trabalho virar franquia de game ou filme, o que pode empobrecer o conteúdo – é o que acontece muitas vezes com adaptações literárias ou o quadrinho histórico”. Seu xará Grampá adiciona: “Sempre há a chance de vermos picaretas fazendo quadrinhos horríveis só para tentar produtos derivados – ainda mais se essa proposta de reserva de mercado de 20% para quadrinhos nacionais for aprovada no Congresso”, cutuca. Outros entendem que os artistas mais interessantes são justamente os que transitam entre várias plataformas. “Gosto do Dahmer, que faz poemas, fotografa e pinta, do Lourenço Mutarelli, que é também romancista e ator, do D’Salete, que faz graffitti, e do Grampá, envolvido com cinema”, enumera Nasi.

 

Tudo bem, mas, digamos que essa Era de Ouro do quadrinho brasileiro se consolide e se multiplique em livros, revistas, games, tablets e telas. Teremos um estilo único, forte para brigar na cena internacional? “Já ouvi que temos um estilo solto e ‘sinuoso’, que valoriza traço gestual em detrimento da precisão realista”, conta Coutinho. Terron e Nasi lembram que o estilo brasileiro funda-se no humor dos cartuns. Já Navega e Delfin acham que nossa HQ prescinde de uma marca. “E torço pra que não tenha: quanto mais plural, melhor”, pede Navega; “a HQ brasileira pode se alegrar de não ter estilo nem estigma”, define Delfin. Grampá lembra que, para sobreviver, os brasileiros já fizeram de tudo. “Tem artistas que passaram por design, animação, graffitti, artes plásticas, HQ de super-herói… Tudo isso influencia o quadrinho. Daí nosso estilo ter mais… ginga!”, finaliza.

 

BOX

TOPFIVES

 

Artistas e profissionais ouvidos por Select falam quem são os talentos consolidados e quem são as apostas para o futuro da HQ brasileira

 

JOCA REINERS TERRON

Já é

Laerte, Guazzelli, Angeli, Lourenço Mutarelli, Fábio Moon & Gabriel Bá

Se liga

Rafael Coutinho, Rafael Grampá, El Cerdo, Gabriel Góes, Eduardo Medeiros

 

TÉLIO NAVEGA

Já é

Fábio Moon & Gabriel Bá, Beleléu (El Cerdo, Stêvz, Lafa e Eduardo Arruda), Mondo Urbano (Rafael Albuquerque, Mateus Santolouco e Eduardo Medeiros), Samba, Golden Shower

Se liga

Vitor Cafaggi, Chiquinha, André Kitagawa, Rodrigo Rosa, Shiko

 

ODYR BERNARDI

Já é

Rafael Coutinho, Daniel Galera, Lobo, Lourenço Mutarelli, Guazzelli

Se liga

Caeto, Marcelo D’Salete, Pedro Franz, Felipe Nunes, Matheus Aguiar

 

EDUARDO NASI

Já é

Lourenço Mutarelli, Laerte, André Dahmer, Fábio Zimbres, Jaca

Se liga

Marcelo D’Salete, Yuri Moraes, Bruno Maron, Maturi, Tito

 

RAFAEL COUTINHO

Já é

Fábio Moon & Gabriel Bá, Rafael Grampá, André Dahmer, Marcelo Quintanilha, Lourenço Mutarelli

Se liga

Heitor Yida & Mateus Acioli, Wesley Rodrigues, Pedro Franz, Vítor & Lu Cafaggi, Gêmeos Marcelo e Magno Costa

 

DELFIN

Já é

Fábio Moon & Gabriel Bá, Rafael Coutinho, Beleléu (coletivo carioca), Quarto Mundo (coletivo nacional indie), Lobo

Se liga

Vitor & Lu Cafaggi, “Os moleques” (Felipe Nunes, Pedro Cobiaco e João Montanaro), Quadrinhos Rasos (Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho), Mario Cau, Danilo Beyruth

 

SIDNEY GUSMAN

Já é

Fábio Moon & Gabriel Bá, Danilo Beyruth, Rafael Albuquerque, Gustavo Duarte, André Diniz

Se liga

Vitor Cafaggi, Mário Cau, Eduardo Damasceno, Luís Felipe Garrocho, Shiko

 

ROGÉRIO DE CAMPOS

Já é

Laerte, Lourenço Mutarelli, Marcelo Quintanilha, Angeli, Allan Sieber

Se liga

Fábio Moon & Gabriel Bá, Arnaldo Branco, Chiquinha, André Dahmer, Cinthia B.

 

RAFAEL GRAMPÁ

Já é

Fábio Moon, Gabriel Bá, Rafael Coutinho, André Dahmer, Marcelo Quintanilha

Se liga

Eduardo Medeiros, Pedro Franz, El Cerdo, Gustavo Duarte, Mateus Acioli & Heitor Yida

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*Originalmente publicado na revista Select de março de 2012

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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