Fora de lugar

Karen Blixen por Stephen Alcorn

A história de Karen Blixen, uma dinamarquesa que viveu aventuras na África que, quando voltou à terra natal, não se reconhecia mais como européia. Vivia entre a realidade e a fábula. Matéria de capa da revista MIT

Karen Blixen era uma mulher fora de lugar. Do começo ao fim de sua longa vida, a inadequação de existir foi sempre uma chave para a interpretação do mundo. Hoje é uma das senhas que permitem o entendimento de uma vida e uma obra tão fascinantes quanto enigmáticas.

Karen Dinesen Blixen nasceu em 1885 em Rungstedlund, Dinamarca, numa família de longas tradições aristocráticas porém já decaindo para a classe média. A mãe, a unitarianista Ingeborg Westenholz Dinesen, foi a primeira dinamarquesa eleita para uma câmara de vereadores. Quando Karen tinha 10 anos, seu pai, o militar, escritor e desportista Wilhelm Dinesen, suicidou-se – provavelmente movido por um ataque de nervos causado pela sífilis. Karen estudou em Copenhage, Zurique, Paris e Roma, e desde sempre o sangue ferveu na direção da literatura e da aventura. Começou a publicar cedo, aos 22, já usando um pseudônimo: Osceola, nome de um famoso líder indígena seminola (o pai de Karen havia vivido um ano entre os índios chippewa; outra hipótese para o suicídio teriam sido as saudades da vivência selvagem na América).

Karen levava uma juventude um tanto sufocante – e, enquanto publicava contos nos jornais locais e participava de modorrentos jogos de salão, sonhava com um título aristocrático e uma vida menos ordinária. A chance para fugir da doce porém chata existência burguesa veio através de um primo sueco, o barão Bror von Blixen-Finecke. Karen havia se apaixonado por seu irmão gêmeo Hans, que não queria nada com ela; Bror, mais focado em aventuras, tampouco pretendia levar uma vidinha de casado; assim, um arranjo entre os independentes jovens poderia ser interessante.

O pacote de casamento incluía uma fazenda no Quênia, no planalto ao norte de Nairóbi (na verdade, um sítio de 2 milhões de m2, mais tarde de 20 mi). A decisão de ir para a África foi determinante em toda a vida de Karen – e recebida com espécie na sociedade dinamarquesa; afinal, no início do século 20 não era nada natural que mocinhas da sociedade se metessem em um continente ainda desconhecido e selvagem.

A fazenda africana

Karen logo percebeu que a independência proposta pelo primo-marido era a sério: mais interessado em mulheres, safáris e viagens, Bror passava longos meses fora de casa. A relação entre os dois esfriou ainda mais quando Karen descobriu que era portadora de sífilis, mesma doença que teria levado o pai ao desespero – sabe-se que, em seus momentos finais, a enfermidade contraída por escritores como Dostoiévski e Baudelaire também causava esquizofrenia e psicose maníaco-depressiva. Na época, ter sífilis era como ter Aids. Karen retornou à Dinamarca por um ano, para se tratar da doença.

De volta à África, para ocupar os dias imensamente livres, Karen teve a idéia – mais tarde perceberá, uma infeliz idéia – de plantar café na fazenda. Teve muitas dificuldades nisso; afinal, seu terreno, no sopé das magníficas montanhas Ngong, ficava na altitude de 1800 metros, e pouco se entendia nos anos 20 de plantação de café em terras altas. Porém, a lida com a fazenda irá trazer um caráter prático importante para sua formação como escritora, além de uma força rara em mulheres dos anos 20, uma vez que teve a ajuda do irmão Thomas somente por alguns períodos.

Afinal, ter uma fazenda de café no Quênia não é o mesmo que cultivar em Minas Gerais. Conforme Karen conta em suas clássicas memórias Out of Africa (no Brasil, A fazenda africana, Cosac Naify), leões e leopardos passeavam ao redor da casa grande, à noite, em busca de bois apetitosos ou seres humanos distraídos. Do lado dos nativos, nem todos os quicuios, etnia local, eram simpáticos à concepção civilizatória de Karen, que implantou uma escola em sua fazenda, ensinando os nativos a ler em inglês (o Quênia era uma colônia inglesa; o país também era habitado por escandinavos, indianos, muçulmanos, e, com a Segunda Guerra, alemães).

Certa vez a processadora de café foi arrasada por um incêndio (no filme Out of Africa, no Brasil Entre dois amores, o incêndio concorre para que Karen saia da fazenda, ao contrário do que aconteceu na realidade). Outra ocasião, durante a primeira guerra, em que a Dinamarca era um país neutro, Karen resolve atravessar o Quênia para recuperar os equipamentos de um safári de caça norte-americano e entregá-los a um destacamento do exército inglês. O divertido episódio, que durou três meses, está descrito no capítulo “Um safári em tempos de guerra” e é especialmente curioso pela maneira simplista como Karen se exibe salvando a vida de seus bois das garras de um par de leões: “Enquanto eu segurava o lampião para o pessoal que tentava erguer a carroça, um leão atacou um dos bois a três metros de mim. Com gritos e estalos de chicote, pois meus rifles não estavam à mão, conseguimos assustar o leão”.

Essa maneira desassombrada de descrever uma cena dramática é típica da literatura de Karen Blixen. Não serão poucas as ocasiões em que a fazendeira irá se haver com leões, porcos selvagens, rinocerontes ou búfalos desgovernados. Sua resposta, porém, será sempre serena e grave, e por vezes bem humorada. É uma postura que remete tanto à sobranceria típica da família quanto a uma característica tipicamente dinamarquesa – como se Karen observasse o drama da existência sem esperança mas também sem desespero.

Segundo ela, é uma característica da aristocracia que, curiosamente, a torna igual às classes mais humildes: “A verdadeira aristocracia e o verdadeiro proletariado são iguais no entendimento da tragédia. Para eles há um senso fundamental do divino e uma mesma chave para a existência. Diferem da burguesia, que nega a tragédia, sequer a tolera, e para quem a tragédia não é algo mais que profundamente desagradável”.

O amante

Em 1918, já separada do primo-marido, Karen conhece o grande amor de sua vida: Denys Finch-Hatton. Caçador, explorador e aventureiro inglês, Denys era o sonho de consumo para uma garota carente de emoções que tinha como modelo um pai tão ausente quanto aventureiro (no filme, Denys é encarnado por Robert Redford, mas na vida real ele não era assim tão bonitão). Filho de almirante, Denys tinha sido um popular estudante de Eton, famoso pelas habilidades em futebol, golfe e críquete. Com 24 anos viajou à África e passou a conhecer o continente em detalhes como explorador, caçador e organizador de safáris – foi guia de magnatas norte-americanos e do príncipe de Gales. Tentou ser piloto de guerra, mas um acidente no pé o afastou da aeronáutica. E, em 1930, Denys comprou um pequeno aeroplano Gypsy Moth.

A bordo desse teco-teco, Karen descreve uma das passagens mais epifânicas de seu livro de memórias – é também um dos momentos mais grandiosos de Entre dois amores, filme de Sydney Pollack de 1985 que levou 7 Oscars. Denys leva Karen para conhecer a África de cima: “Quando estamos no ar, somos levados até a plena liberdade das três dimensões; após longas eras de exílio e sonhos, o coração nostálgico se atira nos braços do espaço. Toda vez que eu subia aos ares num aeroplano e, olhando para baixo, percebia estar livre do chão, tinha a consciência de uma grande e nova descoberta: ‘Agora entendo’, pensava, ‘essa era a idéia. Agora compreendo tudo’.

Os treze anos passados ao lado de Denys foram, pelo que Karen conta em A fazenda africana, algo de sublime – infindáveis safáris, jantares e conversas sofisticadas, sempre regadas a sinfonias de Mozart (idolatrado por ele) e vinhos caros (louvados por ela – lembre-se que Karen Blixen era uma grande gastrônoma e é autora da narrativa que originou o filme Festa de Babette, um dos contos de Anedotas do destino). Um estilo de vida tão raro que somente altos aristocratas poderiam almejar: “E o que é o homem senão uma máquina ingênua que transforma, sem o menor charme, vinho tinto de Shiraz em urina?”, perguntava-se a escritora, com charmoso desdém.

Essa felicidade foi somente abalada por dois abortos de Karen, talvez por conta da sífilis, e pelas constantes ausências do errante Denys, que recusava a se casar e levar uma vida sedentária, ao lado do seu suposto bissexualismo – tema de veladas reclamações de Karen nas cartas que enviava à família na Dinamarca.

Felicidade, sim, tem fim, e este foi o trágico acidente de avião de Denys. Em outro capítulo especialmente tocante, Karen conta como a sepultura do aventureiro, nos contrafortes das montanhas Ngong, era visitada por um casal de leões: “Nada mais apropriado que tenham transformado sua sepultura num monumento africano”. Anos mais tarde, Karen é obrigada a declarar a falência da fazenda – que, em 17 anos, nunca produziu café a contento. Resolve vender tudo e voltar à Dinamarca.

Quase Nobel

Em 1934, lança, sob o pseudônimo de Isak Dinesen, seu primeiro livro, Sete narrativas góticas. O livro demonstra de saída o não-lugar de Karen: ela escreve seus contos em inglês, e então os verte para o dinamarquês – por isso é considerada uma raridade literária comparável a poucos escritores bilíngües, como Samuel Beckett. Sucesso no mundo anglófono, os contos de acentuado sabor romântico porém de fatura clássica, efeito de suas leituras de Edgar Allan Poe temperadas pela vivência entre aventureiros, são recebidos com frieza na Dinamarca.

Enquanto continua escrevendo sem parar (“Sou apenas uma contadora de histórias”, definia-se), Karen assombrava a crítica literária internacional pela originalidade dos relatos e a classe da escrita, cujo ponto alto é A fazenda africana, de 1937, imediatamente sucesso mundial – nenhuma mulher havia escrito nada parecido até então.

Em 1954, ao receber o Prêmio Nobel, Ernest Hemingway – um aventureiro do porte de Denys Finch-Hatton – lamenta que o tenha vencido “no lugar da extraordinária Karen Blixen”. Três anos mais tarde, teria negado seu Nobel em favor de Albert Camus. Durante essa época, tem sua saúde fragilizada pela sífilis e por ataques de síndrome de pânico, e vive uma estranha relação com o poeta Thorkild Bjornvig, contada por ele no romance O pacto.

Torna-se a personagem central da literatura dinamarquesa – conhecida por Hans Christensen Andersen – e famosa pela figura excêntrica e atos de grande generosidade. Até sua morte, em 1962, quando pesava apenas 37 quilos (o arsênico que ingeria para tratar da sífilis havia devastado seu estômago), nunca mais retornaria à África.

Até sua morte, sim: pois mesmo vivendo na alta sociedade dinamarquesa, a solitária Karen Blixen permaneceria habitante de uma África somente sua, um continente perdido entre a realidade e a fábula.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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