Iluminado

Em Blanco Nocturno, talvez sua obra-prima, Ricardo Piglia concebe um romance criminal em que tudo o que está à vista é ilusão

Em 1967 Ricardo Piglia publicou seu primeiro livro, A Invasão, dez contos com temas, cenários e personagens que atravessariam depois toda a sua obra: a ficção histórica, o peronismo, o jornalismo, o amor entre homens casca-grossa, as mulheres sacanas e, claro, a traição. Depois deste, publicou diversas obras vagando entre o romance, o ensaio e o conto. Mesmo os gêneros que escolhe são traiçoeiros: nas reuniões de ensaios Formas Breves (Companhia das Letras) e El Último Lector (Anagrama), Piglia mescla páginas de seu diário pessoal a leituras de Kafka e Borges; o romance policial Dinheiro Queimado (Cia das Letras) se transforma em uma intrincada narrativa fantástica com sutil mirada psicológica, assim como havia feito no clássico Respiração Artificial (Iluminuras). No primeiro romance após Dinheiro Queimado (1997), Piglia acerca-se do gênero criminal já praticado em livros como Nome Falso e A Cidade Ausente (Iluminuras) – porém, daquele jeito muito pligiano de mostrar que as coisas nunca são o que parecem. Essa ilusão jamais foi transmitida de modo tão claro quanto em Blanco Nocturno (Anagrama – a edição brasileira sairá em 2011, pela Cia das Letras, com o título Alvo Noturno).

Título admirável, inspirado nos visores infravermelhos usados pelos soldados ingleses na Guerra das Malvinas. Essa qualidade de enxergar bem à noite sob bombardeios é uma perfeita tradução para a escrita de Piglia, que nunca foi tão solar, direta e veloz. As digressões sobre literatura e filosofia são vôos rápidos, porém densos e repletos de enigmas – bem como as 42 notas de rodapé, elas mesmas formando em si uma narrativa ou um outro livro, um livro de ensaios (lembrando Noites do Oráculo, de Paul Auster). Blanco Nocturno está cheio de curtas alusões à literatura, ao funcionamento da polícia, à psicologia de Carl Jung, a como traduzir a primeira linha de certa novela inglesa, ao grande geógrafo russo Kropotkin e a vários outros assuntos  – nem todos alheios ao desenvolvimento da trama.

Ménage à trois

“Tony Durán era um aventureiro e um jogador profissional e viu a oportunidade de ganhar a aposta máxima quando topou com as irmãs Belladona. Foi um ménage à trois que escandalizou o povo e ocupou a atenção geral durante meses. Sempre aparecia com uma delas no restaurante do Hotel Plaza, mas ninguém podia saber qual era a que estava com ele porque as gêmeas eram tão iguais que a letra era idêntica. Tony quase nunca se fazia ver com as duas ao mesmo tempo, isso o reservava para a intimidade, e o que mais impressionava a todos era pensar que as gêmeas dormiam juntas. Não tanto que compartilhassem ao homem, mas que se compartilhassem a si mesmas.”

Quem pararia a leitura depois de um início fabuloso como este? Em 1972, o mulato norte-americano Durán, nascido em Porto Rico, um bonitão que parece estar sentado na bufunfa, é assassinado numa cidadezinha ao sul de Buenos Aires. Ele chega atrás das gêmeas Sofia e Ada Belladona, que havia conhecido em Nova York e que são as patricinhas de ouro locais, filhas do lendário engenheiro Cayetano Belladona. Durán se hospeda num hotel, faz uma estranha amizade com o japonês Yoshio, desfila com as damas entre passeios no Jóquei Clube – até morrer, 94 dias depois. Então entram em cena o comissário Croce, notório por usar mais a intuição que algum método (tiração de onda com o filósofo liberal Benedetto Croce), e seu Watson, o melífluo Saldías. Este é substituído por outro investigador, Emilio Renzi, correspondente do diário El Mundo, que acaba se apaixonando pela gêmea Sofía – e atua como espécie de alter ego de Piglia.

Renzi é um cosmopolita que sente atração pelo populacho sujo e tenebroso onde os Belladona não passam de uns caudilhos – e o eixo para sua compreensão é o ciclo faulkneriano (Piglia é fã de Absalom, Absalom). Portanto, se trata também de um romance do pampa, de gaúchos e estancieiros. É talvez o romance gauchesco nunca escrito por Borges: sua sombra aqui é mais larga do que a de Arlt, cujos personagens esquisitões são a matriz dos atores piglianos (Piglia apontou o autor de Sete Loucos como o maior escritor argentino do século 20, e o fez personagem em uma narrativa de Nome Falso). Quando entramos no monumental edifício construído por Luca, o irmão caçula das irmãs Belladona, desprezado pelo pai Cayetano, um herói contraditório e torturado na melhor tradição de Arlt, distinguimos desde o terraço todo o pampa, o deserto, a planície, lagos, estradas, animais, a cidade toda e a ferrovia – como uma lembrança do Aleph borgiano, este lugar que contém todos os lugares.

Os fragmentos sucessivos de conversas e encontros sexuais de Renzi e Sofía formam uma história de amor contida e sensível. Já a segunda parte contém um discurso alucinatório, enunciado de algum lugar próximo à mente de Luca, o homem que vendo além da realidade quer converter a matéria sonhada em objetos reais. O jogo entre ficção literária, realidade e teoria da literatura alcançam encontram seu nível mais alto, terreno que Piglia conhece muito bem e que sabe dosar com maestria. Piglia contou, em entrevista ao jornal El País, que Luca foi inspirado em seu primo, um industrial que, prestes a perder sua fábrica, teve um surto e pôs-se a escrever os próprios sonhos nas paredes de sua propriedade. “Encontrou um livro de Jung que lhe deu conteúdo ao seu delírio, que consistia em que ele podia perceber o que estaria por acontecer se fosse capaz de ler seus sonhos. Queria contar essa história, mas não em tom familiar, queria um tom épico – daí o portorriquenho, o crime, as gêmeas”, explica o septuagenário escritor.  Em outra entrevista, ao semanário Perfil, ao explicar a mistura de gêneros de suas obras, Piglia reflete que os gêneros são também personagens. “A chave de Blanco Nocturno, na minha cabeça, é que se trata de um romance de personagens – e cada personagem arrasta um gênero. Durán, por exemplo, é a figura do forasteiro, arrasta em si toda a categoria do forasteiro na literatura”, analisa.

Luz cegante

A luz branca é onipresente no livro. Vai dos impecáveis ternos de Durán ao âmbar que banha os encontros de Renzi e Sofía, da luz ameaçadora da fábrica de Luca à luz fantasmagórica que incide sobre as conversas de Renzi e Croce. A luz branca mais confunde e cega do que ilumina: o romance não é um romance criminal, não é um texto autobiográfico, nem uma novela do pampa, nem uma reunião de notas sobre literatura. Na metade do livro, o comissário Croce diz a Renzi que lhe interessa mostrar que as coisas que parecem o mesmo, são, na realidade, diferentes. Para isso desenha um pato que, olhado por outro ângulo, parecerá um coelho.

“Este é o núcleo do romance”, diz Piglia ao El País. “Há um elemento endogâmico na cidadezinha, de expulsar qualquer forasteiro que não tenha semelhança com o universo em que se move. Me interessou isso, esse jogo de parecer-se com outra coisa.” As gêmeas – que em si trazem todo outro gênero, este cinematográfico, contido das duplas de musas dos filmes de Alfred Hitchcock, Brian De Palma e David Lynch – são iguais; os inocentes são falsos; a luz da traição transforma tudo; o sobrenome Belladona lembra tanto uma famosa estrela pornô quanto a planta alucinógena que dilata as pupilas: todos elementos alegóricos de uma realidade em constante mutação. “Pequenas distorções na percepção: este foi o núcleo secreto do romance”, analisa o escritor, com clarividência de crítico sobre a própria obra.

Livro de enigmas, Blanco Nocturno, mesmo que ambientado nos anos 70, numa cidade do interior argentino, fala, paradoxalmente, sobre nossa época globalizada de informações velozes e fragmentadas, esperando por ser explicadas e reunidas sob um único sentido. “Existe algo na cultura de massas que é a aspiração à interpretação”, segue Piglia em sua conversa ao Perfil. “Todo mundo está ansioso por ser interpretado. Me dei conta disso nos Estados Unidos com essa mania pelas séries. Por exemplo, Lost: a cada dois dias havia uma quantidade de interpretações tamanha que quando você via o episódio seguinte já se sentia saturado. Essa lógica está muito presente hoje, e a fragmentação do blog e do Facebook aceleram essa situação”, reflete Piglia. Feliz da época que vê surgir um novo romance de Piglia, em que o jogo à caça de um sentido é mais divertido do que a óbvia definição de um sentido único, que brilha no escuro confundindo o atirador-leitor.

 

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*Originalmente publicado no Suplemento Pernambuco de novembro de 2010

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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