
A vida em Vargem Grande, comunidade que habita um astroblema – cratera formada pelo impacto de um corpo celeste – em plena periferia de São Paulo. Reportagem publicada na saudosa revista Continuum no começo de 2010.
Saci-Pererê tem 44 anos e usa uma gravata azul com listras cinzentas e pretas. No bolso esquerdo de sua impecável camisa branca, leva um papelzinho com uma lista de tarefas laboriosamente escritas em letras maiúsculas azuis. “É para não me embananar e não esquecer de nada“, explica o Saci em suavizado sotaque carioca, os dentes muito brancos brilhando na cara muito escura. Como o Saci veio parar ali no cemitério de Colônia? Do alto de seus 1,80 m, muito bem posto sobre as duas pernas, Saci coça de leve a cabeça de cabelos cortados bem rente – ele não usa mais carapuça – e respira fundo: “Ih, rapá, é uma longa história. Minha vida dava um livro…“.
São cinco da tarde de uma quarta-feira de outono e o sol se aconchega numa das bordas da Cratera de Colônia, próxima ao cemitério onde trabalha o ilustre morador do bairro vizinho, Vargem Grande. Antes de contar como o Saci assombra o mais antigo campo-santo da cidade, mergulhemos em outro mistério de além mundo. Pouca gente sabe, mas a periferia da quarta maior cidade do planeta oculta um astroblema, cratera provocada pela colisão de um corpo celeste. “O evento ocorreu entre 5 e 35 milhões de anos atrás“, calcula o geólogo Victor Velásquez, da USP, que estuda a cratera há cinco anos.
Só em 1961 foi descoberta a depressão entre os distritos de Parelheiros e Engenheiro Marsilac, extremo sul de São Paulo, a 50 km do centro, um círculo de 3,6 km de diâmetro e bordas entre 150 e 250 metros de profundidade, que pode ter sido formada pelo impacto de um asteróide, talvez meteoro, quem sabe cometa. Até então, a Cratera de Colônia escondia-se na chácara de um certo João Rinsberg. Seu único habitante era um índio proscrito pelos krucutus, uma das duas aldeias guaranis que residem em Parelheiros. “O índio sumiu pouco depois que a gente veio para cá“, conta o bibliotecário Eduardo Francisco entre os 18 mil volumes que guarda na biblioteca pública de Vargem Grande, bairro paulistano cercado pela Mata Atlântica.
Clima sobrenatural
No começo dos anos 90, o alemão vendeu a chácara à União das Favelas do Grajaú, Unifag. Três mil famílias vindas de bairros e favelas do sul paulistano compraram lotes de 250m2 para erguer sobrados na várzea. Vinte anos depois, ali vivem 45 mil alienígenas – suficientes para lotar o Estádio do Pacaembu. Um povo orgulhoso de seu passado extraterrestre. “É comum esse sentimento de auto-estima em comunidades que construíram as próprias casas“, conta Marli Catucci, arte-educadora que trocou a vida num bairro de classe média para ser professora na cratera.
Por coincidência, vinte anos antes Marli havia morado numa casa bem em frente ao repórter – mas nunca haviam trocado um olá. “Aqui isso seria impossível: todos se conhecem.” Marli guiou Continuum por dois dias de incursões ao bairro. O outono tinha chegado forte: o distrito de Parelheiros registra as mais baixas temperaturas da cidade, e não raro a cratera fica toda coberta pela neblina. Durante o dia tem mesmo um aspecto fantasma, uma vez que a maior parte dos residentes trabalha “em São Paulo“, como referem-se aos bairros de fora do buraco, voltando só para dormir.
Vargem Grande abriga cem igrejas evangélicas, dois templos católicos e um número inexato de terreiros de macumba – “atrás de toda igreja tem um terreiro“, diverte-se Marina Nunes, agente da Achave, Associação Comunitária e Habitacional de Vargem Grande. “Difícil saber o que é igreja: tem boteco que vira templo a cada quinze dias, e vice-versa“, ri. Quatro supermercados, duas escolas, uma creche, um posto policial, uma lan-games, uma lan-house, nenhum semáforo e 32 ônibus, que servem os alienígenas das 3h30 à meia-noite; às cinco da manhã os carros partem totalmente lotados.
Somente uma quadra de esportes, zero cinema, zero centro cultural – assim, jovens e crianças ficam zanzando de rua em rua; seus pais voltam lá pelas 9, 10 da noite. “Mas as tardes são tranquilas“, afirma o bicicleteiro Fernando Souza, que pedalou para Vargem Grande atrás de sossego. Segundo os moradores, a criminalidade restringe-se a brigas de casal ou futebol; vários afirmaram não conhecer ninguém que havia sido assaltado. “Se tem roubo, os próprios irmãos [do PCC] resolvem, não ficam esperando a polícia não“, segreda um morador. “Morte mesmo, só entre traficantes, disputa de boca de fumo e pó.” A política do “não sei, não vi, não conheço” impera: você não mexe comigo que eu não mexo contigo e beleza.
Povoada por lojas de materiais de construção, lingerie, tudo-a-1-real e lanchonetes como a Cinquentão, que vende deliciosas coxinhas a cinquenta centavos (R$ 16 o cento), a via principal é a Avenida das Palmeiras – embora não ostente nenhum coqueiro. Trata-se da “única rua do mundo que tem um rio“, conforme o bicicleteiro Souza, também bicampeão do torneio Big Biker. É que, quando chove, a água desce da borda da cratera formando um córrego de águas cristalinas entre o calçamento e a curta calçada. “Uma vez vi uma senhora aí lavando um bife que tinha pego do lixo trazido pela enxurrada, pra dar pro filho comer“, conta Maria. “Aquilo me deu um negócio… corri e peguei uma cesta básica da Achave. Mas dei pra ela como se fosse um presente meu. Porque se não já viu, no dia seguinte tinha fila na porta da associação, e a gente não dá conta.”
Embora existam miseráveis – morando nos lotes ao final das ruas, na porta da mata, onde às vezes se empilham 16 pessoas na mesma casa –, o bairro é carente porém não pobre. Celular não pega e não existe banda larga, mas há casas com piscina, outras com lareira; há quem venda lotes na Palmeiras por R$ 40 mil; e 60% dos alienígenas têm carro. É difícil se perder aqui: todas as 89 ruas são quadriculadas e numeradas – agora porém rebatizadas com nomes de pássaros, flores e animais. Além das dezenas de botecos/igrejas, a Palmeiras acolhe a Pizzaria Cratera’s, cuja moda-da-casa é a Pizza da Tia: bacon, carne seca, bacon, calabresa, bacon, mussarela, bacon, cebola – e bacon.
A cozinheira Tia Cida adora Vargem Grande. “Uma vez peguei um tiú na minha cama!“, entusiasma-se a tia. A fauna do buraco exibe de veados a suçuaranas, passando por cascavéis, preguiças, tamanduás, lobos, capivaras, antas, joaninhas de cores exóticas, muitos macacos e, pasme o urbanóide, uma farta variedade de tatus-bolinha. “Óa, vê se tu acha uma aranha dessa lá em São Paulo“, desafia o mateiro Pernambuco, cutucando com a peixeira uma teia gigante numa trilha das imediações. Isso sem falar nas plantas raras. Mesmo com tanta riqueza, Renato Andrade, o Alemão, desdenha que o poder público deseje o progresso da comunidade. Sequer acredita na queda de um corpo celeste ali. “Cê acha? Se tivesse caído mesmo alguma coisa do espaço, os ricos já tinham vindo. A prefeitura quer é expulsar o povo daqui“, exalta-se, esbugalhando os olhos azuis.

A irregular “Alphavella” não foi a primeira ocupação do astroblema, e sim o Centro de Detenção Provisória, que abriga 1200 detentos – num dia bom. Criado no governo Quércia, o presídio devastou enorme área na cratera, hoje uma faixa de mil m2 de terra vermelha e escura, que jamais viu nascer árvore, parecendo um teatro abandonado. A terra nomeia o principal curso d’água, o Ribeirão Vermelho, que recebe sem tratamento os dejetos da prisão.
Vargem Grande, que só há um ano ganhou saneamento, assenta-se sobre mananciais: a água bebida provém de 4 poços artesianos. O presídio representa perigo tanto ao meio-ambiente como para o ambiente do meio. Bocas-de-fumo locais alimentam os detentos, que recebem suas guloseimas nos fins de semana de visitas. Então, a entrada da penitenciária atulha-se de barracas que vendem comida, cigarros, DVDs e alugam moletons e havaianas (vestimenta permitida aos visitantes). O lixo se joga na beira da estrada do presídio, na mata e até nas bicas de água que descem do Vermelho.
Vargem Grande vive a encruzilhada de sua história. Por ter crescido demais, o condomínio original está “congelado”, não pode mais abrigar construções – algo impossível de fiscalizar. O Condephaat tombou a cratera, o que dificulta a edificação de obra sociais. O bairro não está regularizado porque a escritura original ainda está em poder da Unifag, desbravadora da área, cujo grupo foi substituído pelo grupo da Achave.
As trilhas mata adentro, que poderiam ser abertas ao turismo, estão “lacradas” porque a cratera vive sob a Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos, bacia que no futuro pode vir a abastecer São Paulo. Ainda assim, não falta interesse pelo local. A Universidade Mackenzie presenteou a comunidade com um plano urbanístico que prevê retirar as famílias que ocupam os lotes próximos a mananciais e córregos. Há projetos para um parque ecológico. “Tudo parado na prefeitura“, reclama a presidente da Achave, Marta de Jesus.
Agora sim o Saci
Se cientistas são visitas frequentes, há uma torcida para que a região seja descoberta pelo turismo ecológico. Afinal, o interior da cratera abriga uma turfeira a 450 metros de profundidade – matéria orgânica em decomposição desde o surgimento do astroblema. “Esses sedimentos podem conter registros das mudanças climáticas dos últimos 4 milhões de anos“, afirma o geólogo Claudio Riccomini, da USP. “Por ainda estar fechada e isolada por suas bordas, essa cratera é única.”
De fato: só existem mais 6 crateras do tipo no Brasil, 11 na América Latina e 170 no mundo. Riccomini imagina que o impacto da queda – dez bombas atômicas – tenha matado animais que viviam num raio de 50 quilômetros, assim como o choque de um asteróide no México abriu a cratera de Chicxulub, principal evidência de que o impacto de um corpo celeste teria extinto os dinossauros. Como não há vestígios desse astro, Riccomini crê que o impacto tenha sido causado por um cometa. “Por isso não deixou vestígios: como um punhal de gelo que se desfaz depois de um crime“, sugere. O punhal de gelo teria penetrado na terra, misturando-se aos lençóis freáticos – donde se deduz, talvez com um exagerozinho, que a água degustada em Vargem Grande tenha vindo do espaço.
No mundo só existe outra cratera habitada: a cidade medieval de Ries, Alemanha, que sobrevive da renda gerada pelo turismo. Este é o sonho de muitos habitantes de Vargem Grande, comunidade surgida, por coincidência, ao lado de uma vila alemã – o bairro de Colônia. Logo após a Independência, dom Pedro I, comovido com os insistentes pedidos da esposa oficial, a imperatriz austríaca Maria Leopoldine, importou de Innsbruck 226 colonos para povoar a região entre Itapecerica, Santo Amaro e Parelheiros. Muitos se fixaram em Colônia, onde viviam do carvão e da salsicha, trocados com a “cidade” por sacas de sal. Os alemães fundaram o primeiro cemitério particular do Brasil, em 1827, e a igreja de Santo Expedito, em 1910. O campo-santo, bem como a associação de cemitérios protestantes e a Oktoberfest – aqui, Colônia Fest – são tocados por André Luiz Barboza, um boa-praça cidadão da favela do Vidigal, Rio de Janeiro.
“Fui o primeiro Saci“, orgulha-se André do passado global. “Sempre fui metido a besta, queria ser artista. Você percebe como eu gosto de falar…“, ri o magro diretor do cemitério, inflando a impecável camisa branca. “Mas, depois da primeira temporada no Sítio do Picapau Amarelo, em 1977, tive uns probleminhas. Um diretor quis que eu fosse seu namorado! Me neguei, e minha carreira não deslanchou. Pedi uma força pro Milton Gonçalves, aí ele disse que os atores negros tinham que se virar sozinhos…“, lamenta André.
“Mas beleza! Trabalhei na construção de um hotel, dali pulei pra uma uma empresa que imprimia datas de validade nos produtos. Essa empresa me mandou pra São Paulo. Quando procurava lugar pra morar, descobri o loteamento em Vargem Grande e comprei uma casa na rua 1, número 50, hoje rua dos Jatobás. Aí vim pescoçar emprego em Colônia. Soube que precisavam de um funcionário no cemitério e me apresentei“, conta André, hoje formado em administração, gestão ambiental e falante fluente do alemão.
Ao lado de André, o paraibano Severino Carlos, vice-presidente da Achave, conta que vem se dissipando a antiga rivalidade entre colonenses e vargem-grandenses. Fermentam idéias de aproximar os bairros, mudando o nome de Vargem Grande para Cratera de Colônia – o que uniria a tradição de um assentamento à força do outro. Se depender dos orgulhosos alienígenas que ocuparam essa região da Mata Atlântica, pode ser que mudanças ocorram em ritmo acelerado. Onde uma hora cai um corpo celeste, milhões de anos depois vivem 45 mil pessoas; em dois séculos, indígenas são trocados por paulistas, nordestinos, alemães; em vinte anos, um mini-astro de TV se reinventa como diretor de cemitério. Em São Paulo, as histórias acontecem num rabo de cometa.