
O romance Solar, de Ian McEwan, é uma corrosiva tiração de onda do discurso politicamente correto da sustentabilidade. [Uma das derradeiras resenhotas pro extinto caderno cultural Outlook, morto por miopia…]
Todo Prêmio Nobel é inatacável, inimputável e insuportável. Ganhar a comenda máxima do planeta é ser transportado imediatamente ao panteão dos santos. Ou pelo menos é assim que se imagina Michael Beard, o Nobel de física que protagoniza Solar, do escritor inglês Ian McEwan (Companhia das Letras, 338 págs., trad. Jório Dauster). Beard, um cinquentão calvo, pança em adiantado estado de evolução e alcoolismo idem, faturou o Nobel com uma certa Conflação Beard-Einstein. (Não me peça para explicar: tem algo a ver com fótons e o mais pop dos cientistas. McEwan escreve com tal inteligência que é possível, sem perder a trama, pular seus caôs quânticos, descritos com destreza mas despidos de fundamento científico.)
Após faturar o prêmio, Beard – mulherengo serial que se esconde em sucessivos casamentos de fachada – movimenta tão bem a conta bancária quanto a cama. “Ele pertencia àquele gênero de homens – vagamente feiosos, quase sempre carecas, baixos, gordos e inteligentes – que exercem uma atração inexplicável sobre certas mulheres bonitas“, abre o romance McEwan. “Entretanto, naquela altura da vida era um homem de funções mentais limitadas, desprovido de impulsos hedônicos, monotemático, ferido.”
A causa: Beard acabara de ganhar um par de chifres. Casado com uma mulher parecida com Marilyn Monroe, o físico a maltrata com casos que não tem o menor pudor de esconder. Até descobrir que a esposa o corneia com ninguém menos que o pedreiro toscão que reformou sua residência. Um vexame. A mulher nem dorme em casa – e até sofre pelo amante, como numa cena em que aparece de olho roxo. O cientista toma atitudes ridículas: para se vingar da galha, finge à esposa que está com uma amante no quarto, só aumentando o volume da TV. Ao mesmo tempo, sem fazer força Beard descola um belo cargo e um salário fenomenal ao colocar seu nome como cientista-chefe de um obscuro instituto de pesquisa, meio financiado pela rainha meio bancado por empresários da “sustentabilidade”. O instituto se revela um golpe de sorte – e profundo azar – na vida de Beard.
Entre 2000 e 2010, o físico acumula uns 30 quilos de banhas, milhares de dólares, mais mulheres e muita atenção da imprensa por conta das atividades como inventor de uma engenhosa usina de aproveitamento solar, além de displicente autor de gafes sexistas. Com humor, McEwan cria um personagem em tudo o contrário do idealismo que simboliza: acena com um futuro de energia limpa, um planeta ecologicamente correto, porém ele mesmo não contém o desejo por pratos engordurados, pick-ups enormes e porres quilométricos (no que lembra o cafajeste protagonista de Grana, do compatriota Martin Amis, ou o tarado Bunny Munro de Nick Cave).
Mesquinho e egoísta, tão preocupado com a sobrevivência quanto uma barata, Beard é uma alegoria dessa espécie ocupada em levar vantagem em tudo, certo? Posando de benemérito, quer se dar bem acenando com o apocalipse climático que se aproxima – para o qual, claro, só ele tem a solução. Quando o sócio capitalista duvida do sucesso de seu empreendimento sustentável, Beard o motiva: “Acredite em mim. É uma catástrofe. Fique tranquilo!“.
O transparente texto do autor de Reparação nunca foi tão farsesco. Fazia tempo, aliás, que McEwan não nos dava um livro tão engraçado. E, mesmo que gozemos da pequenez de Beard, lá no fundo torcemos por este sátiro gorducho. A trama tem surpresas e reviravoltas, mas sua urdidura é matemática: se um urso polar aparece em dado momento, é certo que não será jamais um detalhe no cenário. Ante a noção causal e cristã de culpa, McEwan oferece o contraponto dramático do karma. Tão amoral e insustentável quanto a gula de uma sociedade que aumenta a chama do fogão esquecendo-se que está boiando no óleo da panela.
Achei “Solar” fraquíssimo. Obra de um escritor treinado e astuto, mas sem alma. As três partes se juntam com dificuldade, e há um decréscimo de interesse. Beard é um dos personagens mais inconsistentes de Ewan, e só seus fãs ou leitores bem intencionados o podem ver mais que um esteriótipo desproteinado de Mickey Sabbath. Até “Sàbado” é superior a esse romance. É divertido: mas eu achava que McEwan fosse do primeiro time, não um autor com uso de todas as técnicas literárias para se fazer lido. É fraco, mas demonstra o quanto, parafraseando o Jatobá, a crítica literária é supérflua e disposta a propagandear a diversão rala. Amis, em “Grana”, é muito melhor que Ewan, em sua sujeira esquemática mas menos omissa em sua despreocupção em medir palavras para continuar no nicho que a imprensa lhe dedica. Escrevi sobre “Solar” em meu blog: http://charllescampos.blogspot.com/2010/11/solar-de-ian-mcewan.html
Estou lendo “Solar”, ainda não acabei, mas já deu para notar que “Sabado”é muito melhor e mais consistente. Gosto muito do estilo dele, neste último porém, acho que faltou um pouco do Mc Eawan, ele veio incompleto. Fazer o que? Mesmo os melhores, as vezes não são tão bons assim.