Uns viajam em busca de paisagens indescritíveis, outros querem lugares bacanas para fotografar, terceiros caçam templos de compras, e há os que vão à estrada para fazer amigos. Eu viajava para reencontrar o nada
A praia como lugar de escape. Ensaio para a Vida Simples 92

Uns viajam em busca de paisagens indescritíveis, outros querem lugares bacanas para fotografar, terceiros caçam templos de compras, e há os que vão à estrada para fazer amigos. Eu viajava para reencontrar o nada, o “doce nada de não ter um mísero nada“, como canta Lou Reed em “Sweet nuthin'”. Mas meu destino não seria uma barraca imunda em Trindade nem um ashram indiano. A idéia era reencontrar a quintessencial idéia de praia. Um ambiente que, me segredaram, aceita poucos turistas, não tem luz elétrica nem badalação noturna, onde a vegetação é escassa e as sombras, durante o dia, são raras. Duas praias observadas por um farol. Lobos marinhos, cavalos, gaivotas. Seres humanos silenciosos. Quilômetros de dunas. Resolvi não pesquisar muito para me surpreender ao vivo – e assim fui com a namorada passar uma semana em Cabo Polonio, Uruguai.

Quando voltei, alguém me lembrou que Cabo foi o balneário de infância do escritor argentino Alan Pauls, conforme conta em La vida descalzo (Sudamericana). Pensei então em tornar este relato de viagem uma leitura do livrinho de Pauls, uma compilação de ensaios sobre praias. Entanto a escrita perambulou por outros espelhismos, como não poderia ser uma leitura de uma leitura – assim como qualquer praia é uma leitura de alguma inacessível praia da infância e todo olhar de uma criança é um túnel para o olhar de outra criança. Caminhando pelas fantasmais areias de Cabo, olhos semicerrados, recordava as praias onde fui quando moleque. Cheguei no litoral de Santos… e me senti incomodado. Ir à praia sempre foi uma tortura.

Minha pele branquela nunca aprendeu o idioma da morenidade – a única opção seria aquela favorita da Xuxa e do Galvão Bueno, o bronzeamento artificial. Descendente de alemães, Pauls também sofreu em sua primeira visita a Copacabana: “Compreendi cedo até que ponto a relação entre a pele e o sol decide o classismo (e o racismo) que impera na praia“. Além da inferioridade melanínica, jamais fui fã de esporte, que é o que todo garoto saudável deve praticar na areia sob pena de ter sua masculinidade contestada. Tímido, me retraía em espaço tão aberto, em que qualquer um está disponível: a pelanca da vizinha, a grosseria do mané de sunga vermelha, o mau gosto musical da galerinha no quiosque, a fixação por castelos de areia (saudades do meu Forte Apache) e a volúpia em fantasiar-se de bife à milanesa (a praia é o paraíso da vergonha alheia). Sobretudo, a massa de corpos fritando aglomerados me semelhava uma carnificina, um esquisito e voluntário holocausto. Ir à praia me deixava tão cego de mau humor que, anos depois, entendi perfeitamente como o descontrole emocional de Merseault n’O Estrangeiro o fazia matar um árabe sem mais nem menos e depois pôr a culpa no sol. Se o personagem de Albert Camus tivesse vagado pela extensa orla de Santos, teria mandado mais meia-dúzia para o céu das 72 virgens.

Para quem nasceu longe do litoral, numa cidade sufocante como São Paulo, a praia é o lugar do escape, da alteridade, da possibilidade de um horizonte infinito, do refúgio que zera qualquer significado. Mas onde estaria aquela praia original, símbolo de todas as praias? “A praia é um território livre de imagens“, escreve Pauls; “todo seu sex appeal – e também a invejável capacidade de alheamento – descansa nessa espécie de castidade icônica que as paisagens marinhas só compartilham, creio, com um de seus precursores naturais: os desertos (o outro precursor é a ilha)“.

Ao fim e ao cabo
E assim chegamos ao sul. Cabo Polonio é um parque nacional uruguaio criado para proteger as dunas e a rica fauna marinha, que procura as ilhas próximas ao farol. Poucas árvores, muitas rochas e um clima enigmático – às vezes sopra um vento forte e gelado, às vezes o ar pára; o céu pode amanhecer oculto pela neblina e entardecer com todo o gradiente possível entre laranja e roxo; a temperatura pode variar de 35º de dia para 10º à noite (no mar, a sensação térmica é de zero grau). Só de 4X4 se chega às duas praias, cada uma de um lado do farol, que há 127 anos ostenta seus 25 m de altura. A praia Sur, que conduz ao balneário La Pedrera, é a de areias mais fofas e brancas; a Calavera, de areia batida e amarela, é o caminho para o balneário Valizas, então vem Punta del Diablo e, não muito depois, está Chuy, na fronteira com o Brasil. Ambas de lados opostos do cabo – o que permite assistir ao sol se pôr na Sur e à lua cheia nascer na Calavera, quase ao mesmo tempo.

No estreito gramado entre praias espalham-se, sem muros, umas 100 casinhas, a maioria de paredes brancas pretendendo-se mediterrâneas; em outras, o estilo hippie faria sucesso numa WallPaper freak. Como é proibido acampar ou construir e uma casa simples não sai por menos de US$ 120 mil, é preciso sorte e tempo para achar hospedagem; tem quem alugue um chalé um ano antes de ir. No caminho para Valizas, pode-se ver casas soterradas pelas dunas. E para lá enveredamos, doze quilômetros de caminhada. A tarde começava, o céu era absolutamente azul. Na mochila, dois litros de água – e um LSD.

Dunas, dunas, dunas… Fazia uma hora que andávamos quando o ácido bateu. A conhecida sensação de bem-aventurança pânica, espécie terrível de felicidade, encontrava nova paisagem para se espraiar. Subi numa pedra para descansar, adivinhando nas formas dos rochedos e das nuvens e das dunas vozes e figuras misteriosas. No iPod, o shuffle decidiu-se por “Ocean”, do Velvet: “Here comes the ocean/ And the waves/ Down by the shore/ Washing the soul of the body/ That comes from the depths of the sea“. A dezenas de metros, lobos e leões marinhos se aglomeravam em uma ilhota. Um lobinho chegava nadando, subia uma pedra com dificuldade, as nadadeiras se colando à rocha, seus colegas guinchavam para que não se metesse na área deles; tomava uma mordida, mandava outra, a briga logo caía num deixa-disso e o bicho se unia à rocha e ao sol. Aqueles seres quase cegos, adoradores do sol, vagais surfistas de jacaré, estavam ali há milhões de anos fazendo sempre a mesma coisa – o que me comovia às lágrimas. Subimos umas rochas e logo presenciamos o espetáculo da paisagem cem metros abaixo. O farol era um brinquedo, os lobos de pelúcia, as casas de Cabo peças de dominó. Trezentos e sessenta graus de amplidão; zero seres humanos. Quase deixava me levar crer que o céu, a areia, o vento, o oceano e eu éramos, como cantava Arnaldo Baptista, “uma pessoa só“. Só que ironia não rima com lisergia, e o resultado foi um arrepio e uma gargalhada. O mar rugia nas pedras lá embaixo, chamando, chamando… Seria aquela a praia de origem, ou a praia que lembrava aquela outra praia? Antes que eu também virasse um lobisomem marinho, minha namorada me cutucou e nos colocamos de novo em marcha.

Uma hora e muitas subidas e descidas depois, após passar por muitas casas soterradas pelas dunas, chegamos à barra de Valizas. A piscina natural à entrada da praia foi o pretexto para dissolver o ácido no sal marinho – “que doce agrado é o mar”, cantaria Junio Barreto. A espécie humana nunca me pareceu tão extraterrestre. A obsessão chimarrônica faz com que o uruguaio não desgrude da cuia e da garrafa térmica, e muitos se vestem na praia tipo quem vai a uma rave. De dentro do mar, com aquele chiado platino a ciciar nos ouvidos, de novo me veio a sensação de irrealidade oferecida por uma praia estrangeira – como se vivêssemos dentro de uma bolha inviolável e o mundo do lado de fora fosse um aquário habitado por peixes; e somente pelo fato de ser estrangeira a língua desses peixes se emudecesse. O sol caía, assim como o efeito lisérgico. Tínhamos mais doze quilômetros de caminhada; compramos água e partimos de volta ao farol.

O vazio (grelhado)
Psicodelia à parte, me dei conta dos poderes alucinatórios motivados pela exaustão quando, duas horas depois, o ataque: escuridão por todos os lados. Outra vez o clima conhecia uma mudança repentina – o vento pampero soprava na cara, redobrando nossos esforços para caminhar, e eu sentia que em breve ele arrancaria meu couro cabeludo, comeria meus miolos, me libertaria da consciência, afinal. O vento zumbi era a única companhia para o silêncio. As dunas, antes tão deliciosamente cor de creme, se tornaram infinitos, gigantescos e fantasmagóricos edifícios: o céu havia se fechado em uma massa compacta de nuvens lilases e roxas. O farol, uma luz de fósforo, uma ficção. A cada quinhentos metros tropeçávamos em um lobo marinho morto. A flutuante jornada de ida virava pesadelo: aterrissava a taquicardia e sua habitual dúvida – o coração batia mais rápido porque eu prestava mais atenção nele ou prestava mais atenção nele porque batia mais rápido? Fosse como fosse, os batimentos subiam, a água tinha acabado e, para piorar, comecei a ouvir uns cochichos… achei melhor nem avisar a namorada, mas era óbvio que havia seres acompanhando o passeio. Aliás, já fazia um tempo que eu mais era arrastado pela mão dela que por meus próprios pés… o psicoativo claramente havia derretido minhas reservas de adrenalina, o vento ajudava numa incipiente hipotermia. E alguma paranóia. Há quantos dias zanzávamos na esteira infinita desse deserto? Então ergui a cabeça e vi o nada.

O nada era um ponto escuro no centro de um vórtice de nuvens. O nada me queria, e eu queria o nada. Mas eu também morria de medo do nada. Os espíritos me sussurravam para eu não ter medo… era só estender a mão. As nuvens me rodeavam e me puxavam para cima. O nada tombava do ar, fazendo com que todo o espaço ao meu redor – dunas, oceano, vento, farol, lobos, namorada – não existisse mais. O nada era lindo, o nada era fatal, o nada era doce – nada justificava o nada. Eu tinha sonhado com aquele nada desde que nasci. Foi de lá que eu vim. Eu precisava voltar…
(Falando aqui no nada, é como se o traísse – não é possível revelar algo que deve se manter oculto para que tenha sentido; pois o lugar do nada não pode ser na linguagem: o nada só existe fora do texto, se basta na página branca. Do mesmo modo, sob pena de perder seu significado volátil, Cabo Polonio não se pode revelar.)

– E aí?
A namorada apertava minha mão cadavérica e de novo me devolvia à trilha. Assim, sem mais, me despedi do nada. Tentei fixar os olhos no farol – vamos chegar, vamos chegar. Mas em vez da luz que ia e voltava, vi… um bife. É. Como numa HQ, do farol surgia um balãozinho em que levitava o suculento entrecôte grelhado do restaurante Sargento Pimenta, que havíamos comido na noite anterior, acompanhado de cerveza Patricia y papas rusticas.
– Ahhh… o entrecôte!
Trocaria o vazio por um vacío. A segunda epifania funcionou: minhas pernas voltaram a deslizar pela areia. Talvez seja meio patético comprovar que uma epifania psicodélica seja vencida por um prato de comida, mas é verdade. E, epifania por epifania, um belo jantar com seu amor é bem mais interessante que aquele nada no meio do túnel de nuvens. (Entretanto, até hoje o nada me visita nos sonhos. Por falar em sonhos… preciso concordar com Alan Pauls: como se sonha em Cabo Polonio! Pelo menos cinco longa-metragens por noite.)

Após o jantar o tempo abriu e a lua cheia retomou seu camarote vip no céu. Deserta, a praia da Calavera convidava à última contemplação antes do desmaio na pousada. Vez em quando o farol iluminava as partículas de areia e gotículas de água que flutuavam sobre o mar do sul, formando uma aura fantasmal sobre nós. O silêncio era onipresente e nas pálidas areias me senti em casa. Em casa, na fronteira: afinal compreendia o drama essencial de toda praia – o limite entre terra e água, realidade e ficção, vida e morte. Outra praia tão rara quanto esta, quem sabe, só na Lua. Ou no nada.
Nada a ver com o post: Coracão Apertado é exasperante no sentido ruim ou no sentido bom?
lindo texto! só espero que, revelado agora o segredo de Cabo Polonio, não vire um lugar turístico…beijo,
raffa
que fotos lindassssssssss!!!! parabéns, pelo texto e pelas fotos! beijos e saudade. beth.