Monstros da razão


Com a noveleta Corrida selvagem, o inglês JG Ballard satiriza os excessos de uma civilização higienista – e adverte para os massacres criados dentro dos mais ordeiros subúrbios. Resenhol para o Estadón de domingo

Ballard à frente de Le miroir, do belga Paul Devaux

Muito antes de serem construídas as torres neoclássicas do Parque Cidade Jardim, maior empreendimento imobiliário das Américas, cuja vista para as funéreas águas do rio Pinheiros é a cereja de um bolo em que as camadas são moradia, diversão, trabalho e compras, tudo bem cercadinho por seguranças, câmeras e pobres (do lado de fora), a literatura já havia se ocupado desse edificante estilo de vida. O primeirão da lista é, obviamente, o Éden, que seria um lugar bacana desde que seus moradores não se metessem a enfiar o nariz na árvore onde não haviam sido chamados. Digna do involuntário trocadilho, outra casamata criada pela ficção é o subúrbio francês hi-tech Alphaville, homônimo do filme de Jean-Luc Godard – e homônimo de um condomínio fechado na região metropolitana de São Paulo (acredite, seus empreendedores não estavam sendo irônicos). Mais uma obra dessa nobre genealogia dos subúrbios, com algum atraso nos chega a noveleta Corrida selvagem, de JG Ballard (José Olympio), cujo cenário é um dos temas favoritos do escritor inglês: os bairros artificiais, em que tudo o que interessa está do lado de dentro. O livro será a terceira obra ballardiana a virar filme – após Império do Sol, de Steven Spielberg, e Crash, de David Cronenberg, Running wild estréia em 2011, com Samuel L. Jackson no papel principal, dirigido pelo estreante Kevin Kerslake, conhecido diretor de videoclipes (Soundgarden, Cypress Hill, Red Hot Chili Peppers).

O argumento de Corrida selvagem é simples e terrível. Em 1988, no condomínio Pangbourn Village, em Reading, cidade a oeste de Londres que hospeda corporações de TI (Microsoft, Oracle, Intel), 32 ocupantes das aprazíveis mansões (590 mil libras cada) foram assassinados. Executivos, banqueiros, psicólogos, choferes, empregadas etc foram fuzilados, enforcados, atropelados, asfixiados, esfaqueados e eletrocutados num período de tempo, segundo a polícia, de meros 20 minutos. As onipresentes câmeras de segurança nada pegaram. Pior: as 13 crianças que moravam na propriedade desapareceram; nenhum sequestrador reclama o crime nem pede resgate. O livro é narrado por Richard Greville, um psiquiatra forense – o que concorre para que a linguagem de Ballard intensifique seu habitual jeito sereno, frio e detalhista de descrever horrores. Clareza nunca se dissocia de ironia em Ballard, tanto é que um dos primeiros procedimentos adotados pelo narrador Greville para investigar o crime é… assistir ao vídeo produzido pela polícia, que passeou com sua objetiva lente duas horas depois do massacre. Assim, o narrador vê a cena do crime através de uma tecnologia que deveria a princípio proteger os cidadãos: uma câmera.

Enquanto assiste ao filme, o psiquiatra tem um insight para entender as razões por trás do crime, mas não presta atenção e prossegue sua pesquisa, auxiliado por um certo sargento Payne – tão esperto quanto o Lastrade, o tira da Scotland Yard sempre dois dias atrás de Sherlock Holmes. Assim, logo passam a criar uma série de teorias para o massacre: um psicopata, um exercício militar mal-orientado, terrorismo internacional, crime organizado, ETs… Até que uma das crianças desaparecidas ressurge, catatônica. Mais o resenhista não abre, sob pena de ser estapeado pelo leitor. O que se pode dizer é que tanto a forma cerebral conforme é contado quanto os motivos por trás do crime apontam seu dedo acusador para a razão. Menos adepto das fantasias da ficção científica mainstream e de olho nos monstros criados pelos sonhos da razão, Ballard criou um mundo cujas regras rígidas, calcadas na obediência à máquina e às convenções civilizatórias, irremediavelmente arrastam seus personagens a algum prosaico apocalipse. Longe dele se interessar por seres desequilibrados: seu foco era quase sempre a previsível classe média alta.

“Ballard tinha um faro apurado para pressentir que algo de podre no ar ao tratar do mundo dos profissionais liberais em ascensão nos anos 1980“, afirma o repórter d’O Estado Antonio Gonçalves Filho no ótimo prefácio desta edição. O escritor inglês, que nasceu em Shangai e viveu num campo de concentração, de onde assistiu, distante alguns milhares de quilômetros, à explosão da bomba atômica no Japão, sabia bem como a razão que gerou os horrores do nazi-fascismo também era invocada pelo liberalismo que o destroçaria. Uma de suas grandes clarividências foi perceber que a mesma razão que inspira fundamentalismos políticos sacramenta tanto os crimes de Corrida selvagem quanto os massacres cometidos por estudantes de ordeiras, fechadas e aristocráticas instituições educacionais norte-americanas. Em entrevista a’O Estado, alguns anos antes de sua morte, em 2009, Ballard advertiu: “Cultura e civilização são a verdadeira Natureza. As florestas estão todas dentro de nossas mentes. Criadas pela razão e pelo Iluminismo, ciência e tecnologia agora servem para os nossos mais perversos e desviantes impulsos. Os seres humanos são profundamente perigosos, e ficarão ainda mais“.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

3 pensamentos

  1. não entendi o motivo do corte…será que o parque cidade jardim anuncia no estadão? que independência editorial hein! mas ótima resenha, como sempre, vou atrás do livro, beijo

    tt

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