Três jovens escritores ampliam as intersecções da poesia escrita com o audiovisual, as artes plásticas e a música [saiu no fim de dezembro na pg 57 do Outlook]

Devagar a coleção Ás de Colete/ Série Bolso (7Letras/Cosac Naify) vai mapeando a poesia contemporânea. Desta vez, recebemos três autores bem diferentes que, em comum, dão perdido nos demônios ventríloquos do drummondismo, do cabralismo, do concretismo, do beatniquismo e outros brasilismos que nos aporrinham os pacovás. Os livrinhos, desenhados pelo poeta Age de Carvalho, remetem a moleskines – cadernos portáteis de notas de viagem, bons de levar no bolso, por aí, para usar como bóia de salvação num instante de perigo.
Nada mais distante dessa definição que o livro do DJ e performer paulista radiacado em Berlim Ricardo Domeneck, 32 anos. Já no título Sons: Arranjos: Garganta percebe-se-lhe o ritmo engasga-gato. E é o que temos: poemas cuja diversão parece circunscrita a um passeio entre o poeta e a caneta, longuíssimos períodos em prosa quebrada, lotados de substantivos abstratos. Sem querer emular o autor e cagar regra, a chatice pode ser pecado mortal em poesia. Entanto, o que salva Domeneck é uma vontade perdida de escapar a tanto racionalismo, como no estelar poema bilíngüe “Cage of chance/ Jaula do caos“. Note-se ainda a dicção particular e a quase impossibilidade de extrair um verso para exemplificar o todo da obra; o interesse do autor reside antes no processo de descoberta da poesia do que no texto em si. E, apesar de raro no meio da enrolação teórica, vez em quando emerge um sensualismo: “Alisa-me o couro/ até o sangue, ignora/ estas camadas/ inúteis/ entre meus ossos/ e teus pelos./ Incha-me/ sem pomadas, aprovo/ teu fogo de paliativos./ Nina-me,/ embala-me/ como o martelo/ ao prego“.
Com o artista plástico mineiro Walter Gam, que aos 26 anos publica o segundo livro com Ambiente, a leitura se desanuvia, por conta da clareza sintática e uma estranha ausência de ego. O autor, que trabalha com vídeo, instalação, desenho, pintura e fotografia, procura uma dissolução entre escrita e artes plásticas – o que traz aos versos uma frieza concreta; quase como se a própria matéria falasse. O risco é o não-dito, o hermético: “Atravessar/ um/ terreno/ minado/ do/ monocromático/ ao/ invisível/ sem/ qualquer/ controle/ para/ o/ erro/ há/ o/ peso/ que/ encobre/ quando/ respira comigo“. Imagens ferruginosas habitam esses textos abstratos, em que Gam dissolve o mundo nos sentidos, borrando as margens entre objetivo e subjetivo. “Recorre ao/ intermediário, a favor/ do apagamento. aplica/ uma lente difusa./ olhava aquilo e/ partia pra longe/ atrás de um impacto/ progressivo/ reverberando/ sem prazo./ o aparato de projeção/ dimensiona/ uma espécie de reservatório/ há luz forte nas paredes/ desacelera/ a colagem de lugares hoje/ ficamos por aqui sem mais/ explicações“.
O cineasta paulistano Felipe Nepomuceno, 34, morou no México, na Europa, nos EUA e hoje vive no Rio de Janeiro. Não por acaso lança esta Mapoteca – que reúne três livros anteriores, além de inéditos. Sua poesia está a caminho, como sugere o poema de abertura, “Movimento“: “Cata-vento/ não gira em avenida/ Velas, dunas e páginas/ não vivem sem Movimento“. Assim, poemas com nomes de cidades se sucederão: Kingston, Bilbao, Havana, Porto Alegre, Tijuana, Nova York, Laranjópolis. De sintaxe fluida, próxima à fala infantil na obsessão por fulgurações, a poesia de Nepomuceno caminha com ossos de narrativa: “Apenas/ uma Cartagena,/ um navio./ O cheiro das amêndoas amargas,/ a vida inteira“. A reiteração de imagens que remetem a uma saudade ancestral torna Mapoteca uma viagem tão prazerosa quanto excruciante: “Por que te escrevo, se não estás aqui?“. Um livro misterioso como um missal, um I-Ching a que se acorre sempre que necessário um sentimento nômade. Como em “Tânger número 2“: “Muitos otimistas/ procuram Tânger, / cidade dramática,/ os navios chegam, ninguém parte“.
Irregulares, por vezes soando antipáticos na recusa tanto ao lirismo que cheira mole em tanta poesia de antanho quanto em muita poesia de sacadinha atual, sublinhe-se nos versos desencontrados do trio o sabor de desterro, de risco, de inesperado desencanto. No dizer de Gam: “A gente não tem onde/ se segurar./ quem sabe faz parte das regras:/ vá lá e não se prenda/ a nada“.