
>> Resenha de Clarice, Uma Biografia, seguida de entrevista com o autor – para o Outlook de 21-11
“Estou atrás do que está atrás do meu pensamento”
Com Clarice, Uma biografia, o crítico, tradutor e ensaísta norte-americano Benjamin Moser investiga as raízes judaicas de Clarice Lispector e a afirma como “autora da maior autobiografia espiritual do século 20”
Até a 183ª página de Clarice, (Cosac Naify), Benjamin Moser conta a história de Chaya Pinkhasovna Lispector, linda e talentosa menina judia que escapou miraculosamente do extermínio antisemita na Rússia. Dali por diante é que o biógrafo irá se concentrar na brasileira autora de Perto do coração selvagem. Porém, para Moser, mesmo antes da estréia espetacular aos 22 anos até a morte por câncer, aos 57, Clarice Lispector jamais abandonou a obsessão pela palavra de origem: “Estou atrás do que fica atrás do meu pensamento“, conforme ela escreveu em Água viva. Segundo a densa investigação de Moser, esta palavra de origem seria a conjuração de um milagre impossível – salvar a própria mãe de uma doença incurável, missão falhada que sombreia toda a sua obra.
Para além do feito de sintetizar a vida da nossa mais importante escritora e um rico panorama da literatura e da história brasileiras, em 647 páginas de prosa elegante, o mergulho na ancestralidade judaica de Clarice é a perspectiva que, até então inexplorada, torna a biografia tão original. Ao pesquisar as origens da autora de A hora da estrela, nascida em 1920 na minúscula aldeia de Tchetchelnik, na Ucrânia, Moser faz um inventário dos horrores e perseguições sofridos pelos judeus nos pogroms (devastação, em russo) que expulsaram 2 milhões de pessoas da Rússia entre 1881 e 1920. Nesses ataques, de agressão sistemática só comparável ao Holocausto, cerca de um milhão de pessoas morreram de fome, centenas de milhares foram assassinadas – e milhares de mulheres, violentadas. Uma delas teria sido Mania Lispector, mãe de Clarice.
Em episódio descrito pela irmã, Elisa Lispector, nas memórias No exílio, Mania é barbaramente agredida por um bando de soldados. Foi assim que, já mãe de duas meninas, Elisa e Tania, Mania teria contraído a sífilis. Para os pais de Clarice, o mágico tratamento seria a concepção de um terceiro filho. Naquele pequena região perdida na Ucrânia, povoada por místicos e sábios judeus, havia a crença de que o nascimento de uma criança curava males fatais da mãe. Moser cita Clarice, n’A descoberta do mundo: “Fui preparada para ser dada à luz de modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. (…) Só que não curei minha mãe (…) Não me perdoo“.
Moser reconstitui a odisséia da família Lispector ao sul da Rússia e no leste europeu com especial foco no heroísmo do pai de Clarice, Pinkhas, um erudito convertido à força em mascate que sofre todo tipo de humilhação até desembarcar com a família em Maceió, em 1922; Clarice tinha um ano e meio. Mais tarde, vivendo no Recife, a menina de nove anos exibe seus primeiros passos de inventora ao fabular histórias rocambolescas que sempre terminam com a salvação de Mania, uma triste mulher que jamais saía de casa, sofrendo de paralisia e mutismo. As palavras mágicas não foram suficientes: Mania morreu aos 42 anos, seguida de Pinkhas, 13 anos mais tarde.
Rigor e paixão
“Foi difícil escrever sobre essas violências“, contou Benjamin Moser ao Outlook. “Você quer dar um final melhor às pessoas. Na cena do incêndio [quando Clarice quase morre devido a um incêndio provocado involutariamente, quando vivia em um apartamento no Rio de Janeiro], você quer tirá-la daquele quarto, falar ‘não fume quanto toma bolinha para dormir!’. A história da mãe foi dificílima de enfrentar… E a do pai também, aquele herói humilhado que salva a família de modo tão incrível: você quer que ele saiba que seu sacrifício não foi em vão, que o nome dele é falado no Brasil e no mundo todo. Mas não adianta, ele morreu sem saber disso. Essa talvez seja a grande dor em escrever uma biografia: não poder melhorar a realidade“, sensibiliza-se, talvez espelhando a frustração de Clarice, o crítico literário de 32 anos nascido em Houston, Texas.
Moser tinha 19 anos quando descobriu Clarice. Anos depois, durante viagem pelo Brasil, ficou tão fascinado com A paixão segundo G.H. que decidiu escrever uma biografia da escritora. Já fluente no português (fala mais seis línguas e conhece outra dezena), Moser, filho de pai judeu, aprendeu iídiche nos cinco anos que escreveu o livro somente para confrontar a escrita da brasileira com a dos sábios cabalistas e dos estudiosos dos pogroms. “Era a mesma voz“, afirma: “Sabia da ascendência judaica da Clarice, mas desconhecia até que ponto suas raízes alcançariam seu texto. Fiquei espantado com a semelhança da escrita de Clarice com os cabalistas. E a gana pela vida… Pensava: de todos os povos citados na Bíblia, tantos foram dizimados, não sobrou nada deles… e os judeus ainda estão aí, como as baratas! [risos]. A perseguição, a opressão e o exílio não deixaram as pessoas se dispersarem. Tudo derivado da crença no poder divino da palavra: a palavra como entidade transformadora e modeladora do mundo“, conclui o entusiasmado crítico.
Haverá quem estranhe o peso que Moser deposita na ascendência judaica enquanto chave da obra, assim como alguns leitores poderão se espantar com a tese do estupro materno como episódio central na formação da psicologia da escritora. Nádia Battella Gotlib, autora de Clarice: Fotobiografia e da alentada biografia Uma vida que se conta (cuja 6a edição, revista, será publicada pela Edusp), entende que esta hipótese “não pode ser considerada como fato; e os dados em que me apoio estão publicados nos meus livros“. De todo modo, Clarice, uma biografia ganhou críticas amplamente favoráveis no mundo anglo-saxão (onde a autora sempre foi pessimamente traduzida), o que motivou sua redescoberta internacional como um dos maiores nomes da literatura do século 20.
A caudalosa biografia, plena de fatos espantosos, surpreendentes e que por vezes rondam o inacreditável, foi escrita com rigor histórico e texto apaixonado, tecida com centenas de entrevistas e dezenas de viagens entre Ucrânia, Maceió, Recife, Rio de Janeiro, EUA e Europa. Se saímos de sua leitura com mais perguntas que respostas, a culpa (o mérito) só pode ser da mágica menina Chaya. Nome hebraico que, não por acaso, significa Vida. Segue a íntegra da entrevista de Benjamin Moser.

Quantas viagens você fez para escrever esse livro? Tenho dois passaportes, mas acho que fiz seis viagens para o Brasil. Pernambuco, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, muitos amigos. E eu fui para a Ucrânia. É uma aldeia com uma rua, o Bulevar Lênin. Cheguei na biblioteca e a senhora ficou espantada comigo, saiu correndo… parece que eu espanto as pessoas. [Benjamin é bem alto – deve ter uns 2m.] Depois ela voltou com o vestido que vai para a igreja, para receber o estrangeiro. É uma região muito isolada.
Você estava comentando que vai agora de novo pro Recife. Sabe que por lá os pernambucanos juram que fundaram NY… Não está longe da verdade, pois refugiados portugueses e da Holanda que estavam no Brasil não podiam voltar para Portugal e foram para fundar uma colônia em NY. Gosto muito de Pernambuco, pois sou judeu e moro na Holanda. Esse amor é novo, porque Guararapes é o momento da fundação da nação brasileira, quando se juntaram os povos negro, índio e português. Essa coisa holandófila é nova, e esquece que 80% da população da época estava sob cadeias. Acho bonita a sinagoga como está agora, me sinto muito feliz naquele lugar.
Você teve de fazer centenas de entrevistas para o livro. Essa foi a parte que eu mais gostei. Eu não tinha a prática de fazer isso, eu faço crítica de arte. Tinha muito medo disso. É uma coisa bem invasiva. Você mexe com vida de pessoas que você não conheceu. Eu estava numa mesa com o biógrafo do García Márquez e via o cara ligar pra ele: “Sua esposa foi para Miami em 58 ou 59?”. O Márquez está aí, vivo. Eu não tive isso. Estou mexendo com uma vida totalmente alheia. Mas as pessoas gostavam dela, e gostavam de me contar suas vidas, sobretudo as pessoas idosas, fiquei muito amigo delas, conheci uma senhora do Rio, no Leblon, que presenciou a Revolução Russa! Isso ainda existe. Uma senhora do Rio, que esteve com a FEB na Itália, se lembrou da Clarice cortando as unhas dos dedos dos pés dos pracinhas brasileiros. Falam da Clarice como esfinge enigmática e tal, mas você não imagina a Clarice fazendo uma coisa dessas. Viu um soldado ferido, não conseguia cortar a unha, ela foi lá e fez isso, algo que você não imagina. Em Miami chegou uma senhora brasileira velha, conheceu Clarice nos anos 50, veio e me contou várias histórias…
Quem bancou sua pesquisa? Fui totalmente à toa. Sou crítico literário da Harper’s, traduzo às vezes, edito várias coisas, escrevo ensaios… paguei Clarice com isso. Quer dizer, paguei nada, coloquei tudo no cartão de crédito. Ainda estou endividado [risos]. Mas valeu a pena.
Você descobriu a Clarice quando veio morar no Brasil? Estava estudando português na faculdade, e depois vim para cá estudar um semestre, e viajei até a Argentina de ônibus. Acho que foi em Florianópolis que eu descobri GH. Não quis mais nada. Aquela barata! Foi tão forte… Achava uma pena que ninguém conhecesse a fundo a Clarice nos EUA, alguém tinha que fazer isso.
Sabia da ascendência judaica da Clarice? Sim, mas não conhecia até que ponto ia a extensão das raízes judaicas de Clarice. Até aquele momento, eu tinha lido muita literatura cabalística. Fiquei espantado com a semelhança do texto de Clarice com os cabalistas, por isso coloquei um trecho do Abraham Abulafia na epígrafe do livro. É quase a mesma voz. Fico pensando: de todos aquelas povos citados na Bíblia, tantos foram dizimados, não se sobrou nada deles… e os judeus estão aí, como as baratas! [risos] A perseguição e essas experiências histórias de opressão e exílio não deixaram as pessoas se dispersarem. Eu nunca tive essa experiência nos EUA. Se você é um negro está em NY e chama um táxi e ele não pára, pode ser que o taxista esteja indo para outro lado – mas, como negro, você pode pensar que ele não pega negros na rua. Eu, como judeu, nunca senti isso; se o táxi não parou, é porque não parou. Mas, durante dois mil anos, o judeu era um ser diferente, marcado, não conseguia, não tinha direito de participar da sociedade. Talvez em cinco gerações os judeus dos países livres não tenham necessidade de serem judeus, talvez desapareçam. Escritores como Philip Roth se considerarem “judeus americanos” só são possíveis porque os EUA são um país livre, cai-se no folclórico, pode-se até contar piadas e brincar com o tema, como faz Woody Allen. No Brasil também havia anti-semitismo, em todo lugar houve. Ser judia não era brincadeira no Brasil. Ela tem o medo da refugiada. Ela é muito judia, mas nunca isso aparece diretamente, porque ela não veio como emigrada. As pessoas tinham medo dos judeus, com o integralismo e o Estado Novo, os judeus eram discriminados. Quando ela se casou com um católico, em 42, 43, foi algo muito ousado. Havia medo de judeu, as pessoas não confiavam.
Clarice sabia do passado místico, miraculoso de sua região natal? Não sabia, mas naquela crônica que ela fala da cura milagrosa toca isso. Tem o misticismo dos pobres, onde tem coisas típicas do pagador de promessas, um misticismo mágico. Talvez por isso Clarice vá para cartomante, goste de ocultismo. E por outro tem um conhecimento sofisticado, porque o pai dela era da elite religiosa, embora não fosse rico.
A Clarice ainda não havia sido lida pela ótica da origem, do cruzamento desses dois saberes, o místico e o supersticioso… A obra de Clarice é muito judaica. Você percebe imediatamente a idéia da palavra como meio de atingir a Deus. A palavra sagrada não é, por exemplo, budista ou oriental, que usa o corpo como veículo sagrado. Os cristãos também usam a palavra, a palavra oral, transformada em oração. Agora, a palavra tornada sagrada enquanto escrita é típica do judaísmo. Ela nasceu lá mas viveu a vida toda aqui. Ela também tinha esse lado menos evidente.
Interessante que quase nunca se presta atenção a isso no Brasil. No máximo se fala que é ucraniana… Ela não é ucraniana, é judia. Os ucranianos falam outra língua. É importante entender que ela é judia para entender que não é possível uma contradição entre ser judeu ou brasileiro, as duas coisas juntas são a mesma. Mas ela não se encaixa na tradição de imigração. Sua família era de refugiados, havia sido expulsa. Isso afetou muito a psicologia dela. Daí talvez a paixão dela pelo Brasil, pois o país salvou sua família. Isso é típico de uma estrangeira que sentia uma obrigação de agradecer esse país. Senão, teriam sido mortos, como tantos outros. Esse foi um lado que me interessou.
Foi por anti-semitismo que nunca se tocou nesse assunto? Não. Vi isso apesar de ter morado mais da metade da minha vida fora dos EUA. Nos EUA há literatura negra, indígena, latina, judaica. NY é uma cidade totalmente judaica, até os portorriquenhos falam iídiche. Ainda é novo esse processo de entender a Clarice desse ângulo, e eu absolutamente não quero fechar essa questão, não é o único aspecto da vida dela, mas é bem importante.
O cantor Cazuza leu Água Viva 111 vezes, muita gente fica siderada pela leitura de Clarice, eu mesmo, quando a descobri, tive de dar um tempo, porque não conseguia ler outra coisa. Por que ela é tão vertiginosa, tão fascinante? Tem essa ligação da Clarice com bruxaria, mas o que me chama atenção é que… ela nos conhece muito melhor do que a gente. Eu nunca vi essa mulher, tinha 1 ano de idade quando ela morreu. Mas quando li, parecia que ela estava falando diretamente comigo. Não sou daqui, mas na primeira página senti um vínculo com ela que nunca mais consegui largar. Ela se abriu tanto, e pagou um preço alto por isso… eu aqui é uma sensação esquisita. Eu não preciso apresentar a Clarice para o Brasil, todo mundo já conhece. Eu fiz esse livro para os estrangeiros. E agora que ela volta aqui, nessa turnê minha, é um pouco esquisito, porque eu não queria que fosse um culto só da gente, queria abrir a roda dela, compartilhar isso com o mundo. A arte universal é internacional e vale a pena ser estudada na China, Mongólia, tanto com o Brasil, porque sua relevância é com Deus, a morte, o nascimento. É uma seqüência fabulosa de livros que ela conseguiu fazer aqui. Eu não conheço outro prosador, por isso acho que é a maior autobiografia espiritual do século 20, ela fala do ser humano moderno de uma maneira como ninguém conseguiu fazer. Tudo o que você lê depois dela, como ela mesma diz em Macabéa… é café frio.
Nunca se cansou de Clarice, nesses cinco anos? Uma amiga estava fazendo a biografia de Colette, que escreveu 80 livros, estava adorando. Aí ela descobriu que a Colette era nazista, drogada, coisas desagradáveis. Ela tinha 58 romances para terminar de ler. Mas já tinha pego um bode… mesmo recebido dinheiro, 400 páginas escritas, não aguentava mais. Comigo foi o oposto: quanto mais eu pesquisei a Clarice, cinco anos totalmente devotados a ela, não poderia fazer coisa melhor para minha vida. Eu saía da cama sem saber se as pessoas iam gostar. Felizmente todo mundo está gostando do livro, estão reimprimindo seus livros, voltaram a falar de Clarice, era isso o que eu queria.
Talvez agora Clarice realmente seja levada a sério por aqui. O Brasil tem essa necessidade de ser chancelado pelo estrangeiro… Isso existe em todo lugar. O tango não era conhecido pela sociedade portenha, só se interessou quando ele começou a ser dançado em Paris. Eu não estou dando validação nenhuma a Clarice, não fiz nem acho que seja preciso isso. A única coisa que quis fazer era dar outro ângulo à sua obra. Acabei de saber que Moby Dick, um clássico nosso, só foi totalmente traduzida agora. Então, do mesmo modo, fico curioso em saber o que os brasileiros acham de Melville. É uma coisa que pertence à cultura mundial, e é assim que deve ser visto. Clarice é uma glória nacional mesmo, espiritual e artística, não militar nem econômica, é isso que deve ser relevante.
Você acha que a Clarice vai ser lida de outra maneira fora do país? Meu livro acabou abrindo muita coisa. Ela tem dois problemas: as traduções são horríveis. E não é como Guimarães Rosa. Clarice é uma coisa delicada, esquisita. Agora, Clarice mal traduzida, é muito ruim, é pior do que uma literatura normal. Na Espanha, na Argentina e na França, ela só era lida nos círculos acadêmicos. Outra noite, num jantar em Nova York, uma amiga ouviu de alguém – que não sabia da nossa amizade – que era uma falta de educação não saber quem era Clarice Lispector.
Acha que pode acontece com ela o sucesso de Bolaño? O Bolaño tinha agentes, jornalistas e críticos que gostam dele, a Clarice não. Quem sabe se o sucesso dura mais que duas semanas… Enfim, publicá-lo já valeu. Não fiz isso para ficar rico.
Como você vê a angústia de influência dos escritores pós-Clarice? Porque se fala muito aqui, principalmente na academia, que “depois de Machado, de Graciliano, de Clarice, de Rosa, não há nada de interessante…” Esses escritores também não começaram assim. Estava falando disso com o Bernardo Carvalho. Na época de Clarice, se falava muito sobre a questão da brasilidade, Graciliano, Jorge Amado, tinha essa coisa de brasileiros falando com brasileiros sobre o Brasil. Isso absolutamente não me interessa. Todo país tem isso: o que é a Bolívia, o que é a Mongólia, o que é o Canadá, o que é a América… Isso é bom para a sociologia, mas para a arte atrapalha muito. Na Finlândia não tem ninguém interessado no sertão, na Hungria ninguém quer saber da Amazônia. Agora, os temas universais interessam a qualquer pessoa no mundo. A Clarice escrevendo sobre esses temas universais é muito mais interessante. Por isso gostei quando vi o Bernardo escrevendo sobre a Mongólia, em vez de escrever sobre a Amazônia, ou sobre Ipanema. Nesse sentido, a influência da Clarice é benéfica, porque ela demonstra que o escritor tem que escrever sobre o que quiser. É a mesma coisa de mostrar que há uma contradição em ser judia e brasileira. Eu vejo muitos escritores bons hoje no Brasil, e peguei pra mim essa missão de divulgar a literatura brasileira no exterior.
Parece que você não conseguiu falar com Lygia, por quê? Estava num hotel, queria muito falar com a Lygia, mas não sabia onde ela estava, se poderia me receber, tinha um pouco de pudor. Todo dia tentava e não conseguia. Depois de seis semanas em São Paulo, pego o táxi para um aeroporto. Quando estamos na Marginal Tietê, ele me pergunta o que vim fazer. Disse que estava escrevendo sobre uma escritora brasileira. Ele falou, que curioso, tem uma escritora na rua em que peguei você. Era a Lygia… a casa dela era vizinha do meu hotel! Quem sabe eu consiga falar com ela agora.
Se tiver que falar com a Lygia, ela vai te contar um monte de hisórias, você vai ter de mexer no livro… Clarice nasceu em 1920 e morreu em 1977. Como me disse o Alberto Dines, uma vida acaba, mas uma biografia não acaba. Tive de tirar muita coisa do livro, e já tenho muito material novo, surgido por conta desse livro. Quem sabe, como Alberto Dines, que biografou Stefan Zweig e todo ano lança uma edição revista, daqui a alguns anos eu tenha de revisar meu livro. Clarice é uma figura legendária. Mas tive de fazer escolhas.
Quais são seus projetos agora? Agora estou ocupado com a Clarice no Brasil. Tenho curiosidade em saber o que as pessoas vão achar do meu livro. Depois vou descansar. Difícil pensar em literatura brasileira depois. Tudo fica café frio depois… Não conheço outro assunto literário tão fascinante quanto ela. Acho que vou escrever sobre política, história, talvez tente um romance. Preciso esquecer a Clarice um tempinho…
Não pensa em estudar alguém tão enigmático quanto… Fernando Pessoa? Ah, mas esse já tem biógrafo, um amigo meu chamado Richard Zenith. Mas seria uma pessoa que me interessaria sim. Mas não tenho um compromisso com a literatura brasileira, eu morei em muitos países, então temas de outros países me interessam… e falo outras línguas, acabo descobrindo outras literaturas…
Quantas línguas você fala? Que eu falo assim como o português, sete. Há línguas que eu não tenho fluência, mas com duas semanas praticando, já pego, como o sueco e o hebraico. Uma coisa bacanada desse livro da Clarice é que me forçou a estudar iídiche, eu adorei. Muitas memórias da família dela estavam em iídiche, como um tio dela. E tem toda uma literatura sobre os pogroms que estão em iídiche.
Existe uma controvérsia sobre se aconteceu realmente o episódio do estupro da mãe, que você afirma no livro como crucial para o entendimento da psicologia de Clarice… Mas aconteceu! Sugere-se na obra da Elisa, mas foi confirmado fortemente por várias pessoas. Uma coisa tão horrorosa. Foi uma coisa muito dolorosa para mim, descobrir isso. Imagine, uma mulher estrangeira, não falava a língua, tendo de conviver com isso, semiparalisada, sem poder criar suas próprias filhas, condenada a essa pena por dez anos. Foi muito difícil escrever sobre isso. Você quer dar um final melhor às pessoas. Na cena do incêndio, você quer tirá-la daquele quarto, quer falar para ela “não fume enquanto está tomando bolinha para dormir”. A história da mãe foi assim. A do pai também, aquele homem absolutamente heróico, que salvou as filhas de uma maneira tão incrível, um homem sofisticado, que sofreu as maiores humilhações diárias, durante anos, condenado a viver de migalhas, a sobreviver num meio cultural muito abaixo de suas pretensões de juventude. Você quer que ele saiba que seu sacrifício não foi em vão, que o nome dele é um nome falado no Brasil e no mundo inteiro. Mas não adianta, ele morreu sem saber disso. Essa talvez seja a grande dor em escrever uma biografia: não poder melhorar a realidade. Você não quer que as pessoas sofram tanto. Mas a história foi assim, e não podemos mudar. A Clarice tinha a mesma coisa com as personagens, ela tinha essa vontade de mudar magicamente a vida, ela queria.
É o episódio central da vida dela. Ela sabia disso, embora não tivesse nascido ainda, ela foi criada para isso, para curar a mãe, pois havia uma crença mágica que o nascimento de uma criança poderia salvar a mãe da sífilis. E ela sabia disso, mas viu a mãe morrer quando ela tinha nove anos de idade. Isso foi fundamental para sua psicologia. Uma pessoa me falou, prima do Recife, que Clarice ficava contando histórias quando pequena, e eram histórias que sempre se resolviam com uma reviravolta mágica final, algum santo, algum anjo, algum milagre salvava a mãe. Ela teve a mesma vontade de salvar as pessoas em sua literatura.
muito bacana… mas você não perguntou de amor? sempre fiquei curiosa porque o casamento dela acabou e porque ela era tão só… tem no livro?
Sim, muito. Segundo o Benja, Clarice só teve 3 amores. Lúcio Cardoso, o primeiro amor, mas era gay. Maury Gurgel, o pai de seus filhos, que a amava mas era muito diferente dela. E o Paulo Mendes Campos, que foi sua grande paixão, mas não teve culhão pra abandonar a mulher e ficar com ela. Mais nada. Triste, né?
super. depois que saí daqui, acabei lendo um artigo do josé castello na bravo! que fala disso. de título “infelicidade inspiradora”, imagina, propõe a solidão como condição essencial para a escrita. será?
Dizer que a obra de Clarice é facinante e invadiu minha vida completamente, assim como a de Moser, é cair no senso comum. Embora já tenho ouvido muitas pessoas dizerem que o que Clarice escreveu é ininteligível, só posso afimar que sinceramente sinto por elas. Ninguém entendeu mais nossas dores. E é simples assim: Clarice traduz.
Por enquanto não tive a oportunidade de ler a biografia, mas ocupo meu tempo agora com “Minhas queridas”. Dá pra ter uma boa dimensão do ser humano que essa mulher foi. Simplesmente incrível!
Baita entrevista.
ai Bressa, n sou grande leitora da Clarice, então me diga vc: essa é mesmo uma biografia confiável? me dá a impressão que o Moser escreve o que ele acha ser Clarice com base numa psicologia toda própria.
Bom, se passei essa impressão, foi mal. A biografia da Nadia é excelente, tem uma carga de crítica literária mais densa. Já a do Moser tem esse viés original de apresentar Clarice sob uma perspectiva judaica – além de ter ido mais a fundo nas origens da escritora. Ele ouviu mais gente que a Nadia, fez um trabalho sério e rigoroso. É um grande livro.
Muito boa a entrevista. Bem escrita, aliás, é possível “ler” o sotaque de Moser nas respostas. Quanto ao Clarice,, não li a tradução em português, mas recomendo a todos que dominarem a língua inglesa lerem o livro do Moser no original. É muito interessante o olhar de um estrangeiro sobre uma obra escrita em outra língua (não sei se o tradudor conseguiu captar quando as análises se estendiam às particularidades da língua portuguesa) Além do que, ao ler no original sabemos se o autor manteve as citações em português e as traduziu nos rodapés, ou não. Sinceramente, não gostei que um poema do Cabral de Melo Neto foi traduzido no corpo do texto.
Abraços,
Vera
Leio, releio e volto a reler. Adorei essa entrevista. Encaminho isso pra tudo mundo que dá. Foi por causa dela que li Água viva… É fabuloso. Será que alcanço Cazuza? rs
Parabéns!