Como por encanto

Paul Auster, Siri Hustvedt, Vila-Matas
Paul Auster, Siri Hustvedt, Vila-Matas

“Pra mim Auster parece um escritor que desperta geralmente toda simpatia literária e que em qualquer caso sempre me parece simplesmente encantador. Da mesma forma que lhe perdôo tudo”, diz Vila-Matas

Não sou Auster

por Enrique Vila-Matas

Pobre Paul Auster: agora uns sujeitos deram pra falar mal dele. Creio que a curva do apreço por sua obra iniciou uma perigosa queda quando se supôs que não era tão conhecido nos Estados Unidos como na Europa. Na Espanha – país corroído pela inveja, grande esporte nacional – a notícia de que aquela pessoa tão sortuda – aquele homem inteligente, rico e bonito e bem-sucedido – não era valorizado nos Estados Unidos, como nós o valorizávamos, se espalhou como pólvora. “Já te dizia. Somos uns panacas“, começaram a falar. Uma certa irregularidade em sua obra mais recente terminou por adubar o fértil terreno da inveja nacional e começaram a aparecer os rancorosos e pobres de espírito.

Contudo, pra mim Auster parece um escritor que desperta geralmente toda simpatia literária e que em qualquer caso sempre me parece simplesmente encantador. Da mesma forma que lhe perdôo tudo, lhe agradeço os acertos. Tem a graça como aliada, pertence a essa classe de escritores (como Stevenson, por exemplo) que Fernando Savater diz que têm encanto: “Já sei que esta não é uma categoria científica de crítica literária (…) Todavia, qualquer verdadeiro leitor sabe a que me refiro e só para bons leitores escrevo esta página“. Para Savater o encanto em literatura é uma propriedade mais fácil de descrever negativa que positivamente, um algo que não é gênio, nem profundidade, nem brio, nem perfeição formal, nem vocação inovadora ou clássica: talvez seja um “quê” que um autor menor pode ter, e ainda assim estar ausente do topo das letras universais. É um encanto que pode criar vício quando se combina com outras qualidades que nos são queridas. “O mais parecido com encanto” – conclui Savater “é a simpatia que despertam à primeira vista certas pessoas afortunadas e que nos permite admirar suas virtudes sem invejoso receio e desculpar graciosamente seus defeitos. Essa simpatia literária é o que possuem Voltaire, De Quincey ou Borges, mas não Anatole France, Goethe, Pérez Galdós ou Máximo Gorki“.

Toda a minha vida, quando topei com uma entrevista com Auster, a li imediatamente porque me dava prazer e novas idéias. É um autor que sempre me estimula, me empurra a escrever. Talvez por isso não termino com facilidade seus livros e nem sequer suas entrevistas, porque é tanta a vontade de escrever que acabo parando a leitura. Na entrevista que acabo de deixar de ler para escrever estas linhas, perguntam a ele quais os autores que o influenciaram e citam Cervantes, Dickens, Kafka, Beckett e Montaigne. São precisamente os autores que formam o eixo central da roda de meu mundo literário. “Levo todos comigo“, diz Auster, “levo dezenas de escritores comigo, mas não creio que meu trabalho se pareça a nenhuma de suas obras. Não estou escrevendo seus livros, e sim os meus“.

Tenho certeza que poderia dizer exatamente o mesmo. “Levo todos comigo” é uma frase que vem corroborar essa sensação que tem Auster – que eu também tenho, desculpe – de que quanto mais experiência de solidão alguém tem, mais paradoxalmente se vive a sensação de que essa experiência não é precisamente de ostracismo ou de isolamento, senão de proximidade com os demais. “É surpreendente que não possamos começar a compreender nossa relação com os demais até que fiquemos sozinhos. E quanto mais sozinho alguém está, quando mais se funde à solidão, mais profundamente sente essa relação“, diz Auster. É uma boa definição da solidão do escritor.

Os outros (falo dos outros escritores, e dentre esses só os de que gostamos, os que levamos conosco) atuam de um modo estranho que faz com que seja impossível nos distanciar deles. Por mais longe que alguém se encontre no sentido físico (mesmo que esteja em uma ilha deserta ou preso em uma solitária), descobre que está habitado por outros. Que distante esta sensação ou esta idéia daquilo que acontecia ao sinistro Unamuno, pensador de primeira ordem mas um ridículo egoísta, que chegou a suspeitar que os outros não existiam, que eram só uma invenção sua para evitar a angústia que lhe provocaria descobrir que estava sozinho no mundo. Às vezes, estou falando com os amigos e me lembro da idéia lerda de Unamuno e brinco que os estou vendo como uma invenção minha. Não consigo nunca que digam o que eu queria que dissessem, mas é certo que às vezes, vistos dessa maneira unamuniana, me parecem fazer parte de algum estranho jogo teatral e cospiratório, como de uma trama de filme de David Mamet. Há dias em que todo mundo parece ter se colocado de acordo para me dizer tudo o que eu esperava que me dissessem. Mas isso só me acontece de vez em quando.

Não existe uma forma maior de menosprezar alguém do que o jeito como o imaginamos. Unamuno olhava até o mais profundo de seu ser e encontrava só a si mesmo. Auster, ao contrário, ao olhar até o mais profundo de seu ser, não só encontrava a si mesmo, mas encontrava também o mundo. Ler Auster é encontrar o mundo? Ao contrário, é encontrar o outro. E aprender a levá-lo comigo quando me sento em frente ao meu computador, como agora mesmo nesta manhã de inverno. Se penso direito, creio que é todo um gesto de dissidência por Auster o que faço sentado ante o computador e não em frente a uma máquina de escrever. Porque o que realmente essa manhã me empurrou a falar de Auster foram umas palavras suas sobre sua necessidade de abandonar sua máquina de escrever: “Tenho ela desde 1974, agora já mais da metade da minha vida. Nunca quebrou. Tudo o que tenho que fazer é mudar as fitas de vez em quando, mas vivo com medo de que chegue um dia em que não existam mais fitas à venda, e então terei que usar o computador e entrar no século 21“.

Essa confissão de amor por sua máquina me encheu de vergonha, porque me lembrou da frivolidade (não tive paciência para procurar mais) com que passei para o computador seis anos atrás, quando andei por toda Barcelona atrás de fitas para minha máquina de escrever e, ao não encontrá-las, me rendi. Não achei as fitas nem sequer em uma pequena loja perto da praça de Ulquinaona que resistia ao impulso dos avanços técnicos de nossa época e continuava vendendo fitas e máquinas de escrever: uma loja que eu visitava com a impressão de que tudo aquilo era um milagre e seus donos (percebi isso por seu jeito fanático de me falar das máquinas Olympia) uns fervorosos defensores do antigo teclado elétrico.

Ignacio Martínez de Pisón, a quem contei a história dos donos desse comércio (um estranho matrimônio que lutava contra a modernidade), chegou a escrever um conto em que se inventava que, diante dos revendedores fanáticos das máquinas Olympia, alguém montava uma loja de computadores, que constituía a ruína da pequena e resistente loja. Parecia que ia ser um conto profético, mas o matrimônio fanático, temeroso que ocorresse realmente o que relatava Martínez de Pisón (devem ter lido seu conto), passaram da noite para o dia aos computadores e me obrigaram a fazê-lo também, pois nunca havia duvidado que essa loja de máquinas de escrever fosse a última da cidade.

Mais sorte teve Paul Auster, pôde seguir fiel à sua Olympia, mas isso deve ser certamente porque vive em Nova York. Que sejamos ele e eu distintos nisso (e em tantas outras coisas que agora me ocorrem, mas me calo, porque saio perdendo demais) me produz um grande alívio, porque me permite seguir estando sozinho, ainda que levando a todos meus escritores preferidos comigo e escrevendo não seus livros, mas os meus. Do contrário, Auster seria eu. E então, que faria eu neste mundo sem nem sequer poder sentir inveja ele, desejo de ser como ele?

Conheci-o ano passado em Nova York e recordo que todo mundo se empenhava em encontrar coincidências entre os dois. Nos vestíamos muito parecido aquela tarde, isso é certo. Os dois havíamos vivido em Paris exatamente na mesma época dos anos 70. Também isso era certo. Os dois havíamos tido relações complicadas com Sophie Calle. Os dois tínhamos na Espanha o mesmo editor. Os dois nos achávamos confortáveis falando. Ambos gostavam de Nova York… Mas aí, em Nova York, tudo divergia. Só Auster morava nessa cidade.

Comecei a pensar que se havia coisas entre os dois que coincidiam, resultava muito mais fácil encontrar aspectos em que não tínhamos o menor ponto em comum. Por sorte. Se há algo que – à parte uma máscara: as máscaras dão uma tranqüilidade assombrosa – tranqüiliza enormemente é que haja alguém que, com toda segurança, tenha mais encanto que você: alguém a quem poderia ser com quem se parecesse mas com quem, faça o que quiser, não se parecerá nunca. Por sorte. Porque assim não se sentirá sozinho no mundo. Assim sempre terá alguém a quem admirar. Assim sempre terá a outro, e em vez de encontrar-se sozinho com você mesmo, poderá no caminho, por acaso, encontrar-se também com o mundo.

Barcelona, 5 de junho de 2008

Ella era Hemingway/No soy Auster, Cuadernos Alfabia [traducción RB – con auxílio luxuoso de Ju Vettore]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

4 pensamentos

  1. Muy bueno texto…!
    A irregularidade do Auster é extramente saudável para nós leitores.
    Imagino que para escritores tb. Deve ser um respiro, um alívio.
    “Distraídos venceremos”, já dizia o grande Leminski.
    abs

  2. Leio “Conversa na Catedral”, no início com relutância e, agora, viciado na leitura (parei há pouco na página 320 e poucos, nos 30 minutos que tirei do almoço, horário em que raríssimamente leio). Estava refletindo sobre essa,sei lá, compulsividade diante de um livro envelhecido (a própria edição que tenho em mãos é um putrefato exemplar do Círculo do Livro achado há uns dois anos – comprei e relutei a começar a leitura – no Sebo do Messias), sem conseguir entender o motivo de seguir em frente, com sensação de perda de tempo. Taí, estou encantado.

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