Morreu um parente



Em 1984, você andava pelo Largo 13, Santo Amaro, Sumpaulo, e de longe, olhos semicerrados, via a estranha mancha vermelha semovente. Se aproximando, percebia que a mancha era formada por dezenas de jaquetas. Paradas, nos camelôs, ou gingando nos corpos de todos os formatos do povão na correria: as jaquetas vermelhas de Michael Jackson usadas nos clipes de ‘Thriller’ e ‘Beat it’. Aí descia os olhos e via as meias brancas sobre os tênis pretos e sob as calças cigarrette – a indumentária do rei do pop, copiada em dúzias de concursos em programas de auditório, onde tantos, como nós, tentavam ser ele.

É estranho pensar que o homem desapareceu completamente da paisagem, nos roubando um gigantesco repertório gráfico, musical, coreográfico, comportamental etc. MJ era um pouco aquela tia doidona e genial que volta e meia inventa uma moda ou se mete em encrenca, nos tirando do cotidiano previsível com a sensação de irrealidade: ‘Soube da última do Michael Jackson?’.

A última do Michael Jackson é morrer do coração – algo mais estranho que imaginar um mundo sem Pelé. MJ se recusava a um acordo com a norma. A idéia de convencionalidade nunca caiu bem para um sex symbol virgem que começa a trabalhar com 5 anos de idade e desde então se dissolve entre macho e fêmea, entre fluidez humana e movimentos robóticos, entre bicho-papão e menino, entre negro e branco. MJ foi o primeiro self made ET da história da arte.

Pai de todos os artistas transformers, lugar-comum que desafia qualquer clichê, não por acaso seu gesto imortal é engrenar a ré dando a ilusão de se mover à frente – como uma vez Xico Sá descreveu o moonwalking, MJ ‘foi o primeiro negro a andar no lado escuro da Lua’.

Sair fora assim, duas semanas antes do que seria a sua última turnê, me parece a última tirada de onda de um master freak. Be careful of what you do ‘cause the lie becomes the truth. Não vou estranhar nada se Michael Jackson ressurgir daqui a 50 anos vestindo uma jaqueta vermelha comprada no Largo 13 dançando ‘Billie Jean’, o maior hit de pista alltimes. Na boa – vou torcer por isso.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

6 pensamentos

  1. É Brenaldo, vamos povoando um mundo cada vez mais linear e previsível, como os grandes encrenqueiros indo embora assim, sem avisar nem nada! E muito, muito antes do combinado

  2. Cara, tava de boa assistindo à Cultura, quando no Entrelinhas sobre Poe me aparece na tela um nome e rosto conhecido: Bressane. O rosto me fez pensar (por estas configurações erráticas do subconsciente) no cantor Ralph, daquela dupla sertaneja.(me desculpe!). Demorei angustiosos minutos para me lembrar de um comentário de há muitos que eu havia escrito para este blog, sobre o Bolaño, de onde, claro, havia te conhecido.

    E que bom que, ao retornar, encontro este reconhecimento ao Homem Elefante Jackson, que não está entre minhas preferências, mas é um gênio para o que se propôs.Você salientou um belo detalhe destes caminhos imensuráveis por qual anda esta nossa efêmera espécie (bonito isso, né!): um ataque cardíaco é um dibre em qualquer expectativa feita sobre o ponto final deste artista imprevisível. Mas, com uma Providência tão bem humorada, me exercito pensar, tendo lido fartamente Pynchon para crer em conspirações paranóicas, que o Grande Jackson finalmente teve um despertar tão revelador sobre as desgraças que o sucesso e o abandono lhe causaram, que sua solução desesperada foi esta bem estruturada rede de subornos de médicos para desaparecer para sempre, livre da mídia, das dívidas, da sua família de canibais, da necessidade compulsiva de parecer convencionalmente bonito, dos ataques sobre suas excentricidades… E agora se encontra em um refúgio qualquer, numa ilha (talvez uma superequipada ilha Henderson, na Polinésia), respirando aliviado.

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