
A cena musical brasileira é uma orgia: ninguém é de ninguém e todo mundo toca com todo mundo. Materinha de capa pra Trip
Esqueça as paradas de sucesso, os prêmios que louvam os medalhões de sempre, os ganhadores de disco de ouro e aquele papinho “ah, mas a cena hoje não tem mais Chico, Caetano…”. Conversa. O riquíssimo panorama musical contemporâneo não tem nada a ver com a riquíssima cena dos anos 60. São outros públicos, outro jeito de a música chegar no ouvinte, outras propostas sonoras, a globalização aproximou músicos distantes, os grupos não são hermeticamente fechados e se abrem para novas combinações – e não há um inimigo comum, fardado e censor, a combater.
Existe um inimigo invisível: a multiplicação e a dispersão de sons e imagens. Qualquer músico pode criar uma página na rede, encontrar um buraco para tocar, bancar um CD bacana por R$ 3 mil. No entanto, se você não toca axé, pagodão, sertanejo, gospel ou rock emo e quer um som criativo e consistente, pegue sua senha. Talvez por isso tivemos tanto trabalho para chegar a esses nove ‘novos’ – a idéia não é só mapear os cabeças pensantes e cantantes da vez, mas observar nomes sólidos. Por isso temos figuras mais maduras que as elencadas pela revista Realidade nos anos 60.
“Nenhum homem é uma ilha, todo de si mesmo; cada homem é um pedaço do continente, uma parte da terra principal”, escreveu em 1624 o poeta inglês John Donne. O verso ilumina nossa busca pelos homens-arquipélago dos anos 00, no lugar dos músicos-estelares dos anos 60. Hoje, quem se isolar dos aspectos menos artísticos de seu trabalho some. Não funciona ficar no canto criando, à sombra de uma gravadora ou de um produtor. O artista precisa se mover para todos os lados, às vezes se ocupando de tarefas nada artísticas – pensar a arte do CD ou do site, a produção de um show, a agenda de um evento. Não basta ser gênio. Há músicos que são DJs, curadores de eventos, jornalistas, publicitários, artistas visuais, produtores, arranjadores, escritores, trilheiros, atores. Tudo ao mesmo tempo.
Agora que ficou consolidado que o CD é suporte para o trabalho ao vivo, antes meio que fim, ficou mais liberado todo mundo tocar com todo mundo. Solidariedade Ou Morra: a cena musical deriva concretamente da dinâmica das redes, que se tornaram o novo paradigma da comunicação (online e interativa, da internet e dos videogames), substituindo o de difusão (próximo dos festivais de TV e programas de rádio). Faz sentido a aproximação de artistas e bandas de gêneros musicais distantes. Isso não tem nada a ver com movimento: a liga é mais forma que conteúdo, mais modo de trabalho que programa artístico.
Obra aberta
O esquema “banda trabalha seu disco com a gravadora e sai em turnê” não funciona. Embora os álbuns sejam fundamentais à coerência de cada projeto, grupo ou artista solo, há tanta coisa rolando entre cada lançamento que se poderia dizer: o mais bacana é a obra em progresso – não à toa o sempre esperto Caetano Veloso pescou o conceito e o puxou para nomear o blog que deu origem a seu novo CD, Zii e Zie [por sinal bem chatinho].
Entre álbum e outro surgem parcerias inusitadas, projetos paralelos que ganham força e roubam os holofotes. Assim como não existem gêneros definidos, não há pólos centrais que aglutinam coadjuvantes em redor. Como em um filme do Quentin Tarantino ou em um livro do Roberto Bolaño, um personagem secundário em uma cena pode ser o principal narrador na seguinte, e vice-versa. Existem mais artistas-redes do que artistas-difusores.
O panorama musical dos anos 00 é fragmentário, interdependente, contextual. O último manifesto importante da música brasileira originou o último movimento organizado – o manguebeat. De certo modo, a morte de seu principal astro, Chico Science, explodiu a multiplicidade de talentos de sua banda, a Nação Zumbi, fornecendo subsídio a um modo de produção em que importa mais a galáxia retroalimentada que a estrela única puxando e espalhando luz. Em vez de se engessar em um modelo, os remanescentes da Nação se espalham entre álbuns da banda e projetos paralelos como Maquinado, 3naMassa, Sonantes, Los Sebozos Postizos, Autônomo etc, sempre com parceiros diferentes, reproduzindo o troca-troca e pega-pega típico da cena de rock indie de São Paulo, Rio e Porto Alegre.
Daniel Ganjaman, de uma célula “irmã”, o Instituto, reflete: “Não existe entre nós essa idéia de movimento; existem são diversas movimentações acontecendo ao mesmo tempo, para todos os lados, entre as mesmas pessoas e novas”. Rômulo Fróes teoriza: “Agora é que está finalmente acontecendo a Tropicália. A idéia de que todos iam criar tudo, apresentada pelos tropicalistas, só se realiza plenamente na nossa era”.
A real
Para descobrir os carros-chefe da nova geléia geral brasileira, voltamos ao passado pra beber em uma reportagem clássica da Realidade – que, em 1966, apostou em nove talentos. Mesmo: Chico Buarque tinha apenas 23 anos e era conhecido pelo hit “A banda”; Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos com 24, tentavam a sorte em festivais. Já os Nove atuais são figurinhas carimbadas a quem acompanha movimentações de palco e Myspace.
Todos são compositores; alguns ainda burilam o segundo álbum, outros são mais rodados – e dos nove, só Thalma (talvez a mais famosa, por conta do trabalho como atriz global) tocou com todos. No gráfico a seguir, você percebe as ligações perigosas entre os Nove e quase 50 artistas. Os links representam parcerias de canções e/ ou álbuns e/ou produções e/ou projetos paralelos e/ou parcerias em shows. Graficamente, demonstra-se como a tropicália dos anos 60, a vanguarda paulistana dos 70/80, o rock dos anos 80, o Manguebeat de 90, a cena hip hop e o rock dos 90/00 estão entrelaçados – a velha tese de que não existe ruptura na cena artística brasileira, em especial a musical.
>> O tal gráfico e os miniperfis dos noves dentro estão nas bancas ou aqui
cada homem é um pedaço de continente.
será??
Ronaldo meu mestre, vc emplacou duas matérias sensacionais na última Trip. A entrevista antológica com o Catra e essa matéria sobre os “colaboracionistas” foram fodas. Claro que na lista dos músicos sempre cabe mais um, dois, dez, que seja, mas o sumo estava ali mesmo. O tema rende muitos e muitos papos!
Grande abraço!