Mestre é o mundo


>>> Perfil do amigo de Nazaré da Mata para a Vida Simples

Da zona da mata pernambucana ele engendra o novo do velho. Depois de arcaizar o manguebit com o Mestre Ambrósio, o guitarrista, rabequeiro e cantor Siba reinventou-se na Fuloresta do Samba e agora repensa a viola sertaneja no belo álbum Cordas de Bronze. Próximo passo? Embebedar o rock com cana-de-açúcar

siba

Tudo começa com um assovio. O assovio do pai, seu Luiz, sujeito surgido num lugar chamado Olho d’Água de Dentro, Pernambuco fronteira com Alagoas. O assovio do seu Luiz ecoando pela casa canções de Luiz Gonzaga tecia a atmosfera da infância de Siba, dito mestre. “Mas não sou mestre; não fiz mestrado, só licenciatura”, ri o recifense de 40 anos. “Prefiro chamar os outros de mestre. Mestre é o mundo.”

Seja: do assovio do pai à flauta na escola, quase uma década. Vivia um mundo duplo – a folia da cosmopolita Mauricéia, cidade onde todo mundo é músico, e o mundo arcaico familiar, do pai advogado assoviador, da mãe professora e pintora, dos avós boiadeiros e aboiadores, chegados num canto de viola. Lá pros 14, Siba descobriu Jimi Hendrix, Cream, Led Zeppelin, Black Sabbath. Descolou uma SG gêmea da guitarra de Angus Young, do AC/DC, e o cabelo cresceu. Já lhe interessavam os riffs exatos e o poderio de uma banda, mais que o fraseado rebuscado ou a farofa do espetáculo roqueiro. “Gostava e gosto de hard rock, mas me sentia deslocado nesse meio”, recorda. “Fui percebendo que, só partindo de minhas referências, não chegaria ao nível daqueles caras”, reconhece.

Os tiozinhos de camisas pretas que me perdoem, mas heavy metal é uma fase na vida. Siba soube. Ao mesmo tempo em que foi estudar música na Universidade Federal, um acontecimento singular limitou a separação dos heróis da guitarra e a chegança dos forró heroes: a morte de Luiz Gonzaga. “Não digo que tenha sido um clarão que me iluminou… mas, observando aquela comoção toda em Pernambuco, senti que ali devia haver um caminho para outra coisa”, lembra. Mais tarde, já com vinte anos, outro marco nesse desvio de prumo foi a visita ao Chã de Cambará, sede do Estrela Brilhante, grupo de maracatu de baque virado chefiado por Mestre Batista em Aliança, cidade vizinha a Nazaré da Mata.

Levou-o John Murphy, etnomusicólogo da Universidade do Texas, autor de A performance do cavalo-marinho. Pois é: foi um gringo que o botou em contato com os próprios vizinhos. “Ali atravessei uma noite e descobri artistas em que reconheci as qualidades dos meus heróis do rock: o carisma cultivado, a confiança no próprio valor em relação ao público… De repente percebi que havia um centro do mundo perto de casa!” Estava aberta a trilha para que o guitarrista fuçasse outro instrumento: a rabeca.

Roqueiro rabequeiro
A rabeca é central no cavalo-marinho, folguedo clássico pernambucano que Siba desvendou nessa época. “Fui sortudo por ter um mestre rabequeiro, seu Luiz Paixão. Nesse universo da mata, a rabeca foi minha porta de entrada, porque estudava instrumento de corda mas ainda não cantava.” Embora Siba seja dos raros frontmen a tocar o rude violino, recusa-se a levar o peso de inspirador para jovens rabequeiros. “Antonio Nóbrega deu uma contribuição grande, e José Eduardo Gramani, professor da Unicamp, também trouxe novo olhar sobre a rabeca no início dos 90.”

Liderando o Mestre Ambrósio, Siba é legítimo espécime surgido do último movimento cultural no país: o manguebeat, ou manguebit, geração em cuja linha de frente formavam Chico Science e Fred Zero Quatro. Ao contrário do rock nacional dos 80, que se apoiava no rock anglo-saxão e recusava se identificar à musicalidade brasileira, a “geração sem sobrenome” propunha cavar um espaço distante tanto dos medalhões do rock e da MPB quanto da música comercial, baseada no sertanejo, no pagode e no axé music. De novo, no entanto, o mestre confunde pra explicar.

“No começo dos 90 começou-se a ouvir de novo música brasileira”, lembra. “Já se havia reabituado o ouvido com a língua portuguesa, as rádios tocavam o som nacional – ao contrário dos 80, quando parecia que a gente vivia noutro país. Era um prelúdio da globalização, uma reação àquela padronização da música anglo-saxônica. Assim, de certo modo, o axé e o sertanejo comercial prepararam o terreno para o manguebeat. Aliás, poucos lembram, mas a banda que originou a Nação Zumbi, o Lamento Negro, era mais próxima do samba-reggae que do maracatu”, ensina.

Como Science, nessa época Siba se interessava por jazz e afrobeat. Na expressão elétrica africana, que lia o som de raiz através da estética do rock urbano, pressentiu um atalho para potencializar o forró de pé-de-serra, a ciranda, o cavalo-marinho, o coco, os maracatus de baque virado e de baque solto. Ao lado de Helder Vasconcelos, Mazinho Lima, Eder O Rocha, Maurício Alves e Sérgio Cassiano fundou o Mestre Ambrósio.

Uma das primeiras bandas a assinar com uma multinacional, a Sony, assediada tanto pela onda do forró universitário quanto pelos roqueiros indies, foi um dos grupos mais populares do manguebeat. Durou quase uma década. A estética de longo alcance do movimento não chegou a atingir em cheio o povão. Ao mesmo tempo, no fim dos 90 o mercado mundial se modificava – as grandes gravadoras murcharam, as vendagens de discos miaram e o mp3 vingou: o CD passou a ser meio, não fim.

Toda essa metamorfose não chegou a atingir um artista inquieto como Siba. “Artistas do meu tamanho, nem grande nem pequeno, não ficam à vontade em um só formato.” Um combo incomum como o Mestre Ambrósio não se conformava às imposições burocráticas de uma multinacional. Ao mesmo tempo, a pluralidade de interesses de cada um dos seis implodiu a banda. Três álbuns depois, em 2002, separaram-se – “importante frisar que ninguém brigou”, coloca. “Mesmo assim, não acredito em volta. A não ser que fosse um show comemorativo.”

Com o fim do grupo, encerrava-se também a temporada de sete anos de Siba em São Paulo. Na música “Sêmen” ele cantava: “Como posso saber de onde eu venho/ se a semente profunda eu não toquei?”. Mudou-se de rabeca e cuia para Nazaré da Mata. Ali nascia a Fuloresta do Samba, grupo formado por velhos maracatuzeiros e cirandeiros da região.

“Entendi que havia uma mensagem forte dos meus avós e meus pais tornando diferente minha referência musical em relação ao mundo. Daí quis trabalhar com esses músicos de rua, que não tinham nada a ver com palco ou estúdio. Precisava colocar minha vida nisso! Só agora sinto amadurecer uma parceria profunda com esses companheiros de tradição. Claro, nunca se pode alcançar a semente… a gente é sempre a resemente”, rima.

“A relação de Siba com os brincantes de cavalo-marinho e maracatu-rural, para citar dois estilos que conhece como poucos, não é demagógica, nem paternalista, nem condescendente, nem deslumbrada”, apresenta o antropólogo Hermano Vianna. “É claro que ele respeita seus mestres, mas os mestres também o respeitam, não apenas como discípulo aplicado, e sim como mestre (de outras novas brincadeiras) também. Os dois lados da relação permanecem diferentes – e é porque são diferentes que têm algo de interessante para dizer um para o outro –, mas o contato é de igual para igual”, conclui.

A idéia era partir de uma gramática musical específica: percussão, metais, que respondem à pergunta da voz; daí agregar outros metais para compor uma paleta sonora mais expressiva. “Sempre com o foco na música direta”, diz Siba. “Pra cantar pra um público semianalfabeto, precisei chegar a uma linguagem profunda, mas simples – foi das conquistas que mais comemorei. É música pra dançar, precisa ser um soco no nariz: como um riff de rock”. Assim ele explica sua busca pelo básico – que não prescinde de pérolas como a faixa-título, “Toda vez que dou um passo, o mundo sai do lugar”, a composição favorita.

Hoje Siba divide seu tempo entre o bairro do Poço da Panela, bairro boêmio encravado em Casa Forte, Recife, e a comunidade de Nazaré da Mata, com esporádicas vindas a São Paulo ou a São Luís – onde mora o filho de três anos, Vicente, de quem mata as saudades diárias via Skype. Nas horas de folga, se enfia nos livros: leitor de João Cabral (“do Cabral mais cerebral, menos oral”, sublinha), volta e meia volta a Homero, mas agora está focado nos poemas de Jorge Luis Borges e nos artigos do antropólogo Viveiros de Castro.

Bicho caseiro, se não rala na estrada, pára no casulo. “Minha rotina é igual à de todos: sou meu próprio empresário. Parte da tarde passo em celular e computador; manhã e noite é pra criação. Acham que eu viro noite tocando maracatu, escrevendo verso na rede..”, ri. E pra quem pensa que viver rodeado de cana dá inspiração… “Não bebo muito; gosto de um conhaque antes do palco, tomo uma cachacinha, mas não sou farrista profissional”, esquiva-se – a única iguaria que o tira do sério é o ensopado de tatu preparado por dona Maria, mulher do parceiro Biu Roque, seu “padrinho-afilhado” na Fuloresta.

Seqüestraram a tradição?
Fato é que, quanto mais longe Siba bebe na tradição, mais moderno ele fica. Como se observa nos paradoxais versos da canção “Big Brother mental”, parceria com Roberto Corrêa: “Pergunto a todo momento/ será que meu pensamento/ vem de mim mesmo ou de fora?/ Num museu abandonado/ minha memória se esconde/ guardando não sei onde /tudo o que fiz no passado/ e o meu cérebro lotado/ de TV e de internet/ está clicando delete/ para apagar os arquivos/ que guardam os quadros mais vivos/ do meu tempo de pivete”.

Para quem já viu Siba rimar sem parar por mais de cinco horas seguidas – nos lendários desafios carnavalescos, quando seu Boi da Gurita Seca briga com o Boi do Cupim de Maciel Salustiano –, difícil crer que o mestre tenha algum problema na memória. “Ôxi! Claro que sim. A gente lida com informação demais o tempo todo, muito aparato fora do corpo, vai perdendo o uso. Agora, se um dia eu esquecer das minhas letras, tô lascado!”

Há sete anos Siba troca idéia com Corrêa. O primeiro álbum a juntar a viola de cocho e a viola caipira do mineiro com a rabeca e a viola elétrica de sete cordas do pernambucano chegou em 2009, com canções intimistas e temas instrumentais que tocam, numa prosa metafísica afeita a Guimarães Rosa (inclusive nos neologismos como “desentrevendo”), tanto temas da terra e do tempo quanto da busca pela poesia. Contudo, a caça à tradição não tem nada a ver com a repisada palavra “resgate”.

“Não acho que seqüestraram a tradição não!”, brinca o mestre. “Isso tem a ver com o jeito do brasileiro se ver. Transferimos à cultura a relação hierárquica: assim, tudo que lembra traços rurais é colocado em patamar inferior. Isso impede que as pessoas reconheçam o valor das coisas próximas”, analisa. Para 2010, está tramando com Fernando Catatau, da banda Cidadão Instigado, o projeto de um power trio de rock – ele seria o guitarrista, Catatau o baixista. “A idéia é aglomerar os músicos da Fuloresta ao redor desse power trio, criando uma dinâmica de rock. Tenho focado bastante nisso…”, segreda Siba, que aponta como show inesquecível uma apresentação no carnaval de 2009 em que à Fuloresta agregou-se o peso da Nação Zumbi.

E soma: “Engraçado como tantos no Brasil conhecem detalhes da história do blues, do rock, mas de nossas próprias músicas ninguém quer saber… Não se começa de fora da tradição. Nem que seja da tradição de quebrar a tradição. Entendo tradição como um gosto compartilhado – e certo sentido de espaço, tempo e história nessa escolha. Você pode olhar a tradição de duas maneiras: ou avançar negando, como no próprio rock; ou, na nossa tradição aqui, em que a retomada é constante, aguçando o sentido do passado para atualizar o presente”.

Tem jeito não, a aura de professor-menino de chapeuzinho é dura de dissolver. Nem quando se toca no assunto do imponderável da poesia. “Uma das coisas que herdei da família foi a concepção do poeta como ser sobrenatural”, recorda este fã do personagem Zé Limeira, poeta do absurdo reinventado por Orlando Tejo.

“A poesia improvisada era tida como outro mundo, mágica, superior. Aos poucos, passei a ver como ofício. Claro, existe o mistério da criatividade, incontrolável. Só que esses momentos acontecem com a prática constante. Tem um momento que não é prática nem técnica. Isso está em todo tipo de arte que implica na realização de um instante: existe esse tempo antes, da reflexão, do suor. A magia só não explica; só a técnica, também não. É questão de sintonizar lá dentro as duas coisas”, sugere o elegante professor, sempre com ar de príncipe tímido.

Tímido como o apelido, Siba. Que é apelido de apelido: vem de “sibito baleado”, gíria nordestina pra um cabra magro, parecido a um sibito – pássaro bem pequeno, que solta um pio ossudo tipo um assovio de vento. “Melhor Siba que ser conhecido por Sérgio Roberto Veloso de Oliveira, já pensasse?”. Não disse que tudo começa com um assovio?

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

3 pensamentos

  1. Oi Bressane
    sou a Lu do Lourenço.
    sábado, dia 23 de maio, completo 40 anos e vou lançar um livro “Impessoal”
    Livraria da Vila – jardins
    Alameda Lorena, 1731
    19:00 as 22:00
    se puder aparecer ficarei muito feliz e honrada porque confio no seu senso estético e crítico…rs
    um abraço

  2. Excelente e inspirador…
    O texto, o escritor e o artista!!!!!!!

    Parabéns a ambos pelo talento! Especialmente a Siba pela magia de sua pessoa e obra sem par.

    Muita luz…

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