Pode-se argumentar que uma porta aberta não apresenta mistério algum, nenhuma visão de perigo que nos possa causar medo, ou mesmo pânico. Através de uma porta aberta, por menor que seja a abertura, sempre conseguiremos ver o interior para o qual ela se abre. Se ali percebermos qualquer coisa estranha, simplesmente não entraremos.
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May the road rise up with you, master. Curitiba, terra de escritores raros e excêntricos, perdeu outro grande. Depois de Karam e Snege, foi a vez de Valêncio Xavier subir. Uma morte terrível – posto que o escritor, sempre pautado pela escavação e recriação da memória, própria ou alheia, se foi pelos labirintos do Alzheimer.
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Com um pontapé posso abrir a porta entreaberta, arrombando-a, derrubando pelo chão as velas e tudo o mais que tiver. Posso, então, acender o isqueiro que trago no bolso e aclarar a escuridão. Muitas coisas posso fazer para resolver este mistério idiota. Posso e devo. Esta é a minha casa. Não é uma casa de loucos, barraca de feira, tenda de culto ou coisa que o valha. Nem sou eu um alienado espectador, basbaque deslumbrado, aleijado. Sou o que sou. Eu sou eu.
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Não consigo imaginar morte pior para um escritor. Torço pra que – como disse o bróder Joker, que o editou, o propagou e o inventou personagem – Valêncio, em detrimento das nulidades que vemos replicadas por aí, não permaneça no limbo comum a autores brasileiros geniais; seria ironia demais para o destino deste paulistano tão tímido que escolheu a discreta Curitiba como cenário da maioria de suas histórias.
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Posso, devo e vou fazer alguma coisa. Tenho.
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Mas não, não vai: um autor sempre à frente de seu tempo por certo reencontra seus leitores. E fora o que ele já nos deixa de grande, histórias brilhantes como O mez da grippe e O minotauro, há material inédito – conforme conta Marcio Renato. Por muitos anos o cara vai seguir abrindo portas…
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Para isso, preciso me levantar desta cadeira imóvel. Para isso, devo largar a caneta e o papel. Devo deixar de me comunicar com você ue, já vi, em nada pode me ajudar. Sozinho tenho que aclarar este mistério. Depois, sim, posso retomar a caneta e o papel, e descrever para você aquilo que aconteceu, quando eu me levantar desta cadeira e me encaminhar em direção da porta entreaberta das três velas. Depois.
[De “O mistério da porta aberta”]
Que coisa, à algumas semanas atrás caminhando no centro da cidade encontrei um livro do Valêncio – O Mez Da grippe – que não trouxe de primeira, mas aquilo ficou comigo, eu tinha que trazer o livro, literatura é coisa para agora, ler enquanto o escritor ainda está vivo. Depois comprei o livro e agora o cara sobe. Que permaneça na lembrança.