> Perfil escrito pra Trip que está nas bancas – mas o perfil foi limado antes da edição; o motivo foi “repentinas páginas de publicidade”… Well, o mala do Kurzweil, que não quis me dar entrevista, também não ajudou muito. Pero mi trampo es hecho
Para o inventor, cientista e futurólogo norte-americano Ray Kurzweil, a eternidade é questão de tempo. Em somente duas décadas, nosso cérebro poderá ser baixado em um computador, replicado – e até pensar muito mais rápido. Depois disso, a mortalidade vai ser coisa do passado
Por Ronaldo Bressane
230 pílulas. É o que o sessentão da foto toma, todo dia. Digamos que ele durma razoáveis 8 horas. Sobram 16, ou 960 minutos. Isso dá uma média de uma pílula a cada 4,17 minutos. Esse é o preço que Ray Kurzweil paga para ter acesso à vida eterna.
Ou um dos preços. No livro que ele escreveu em parceria com seu médico, Terry Grossman, A medicina da imortalidade (Aleph), o inventor novaiorquino propõe ao leitor “reprogramar sua bioquímica” para atrasar o inexorável processo de degenerescência. Kurzweil, que teria se curado de uma diabete tipo B apenas mudando a dieta, alega ter “diminuído” sua idade biológica de 60 para 40 anos [pela foto, não dá pra ver se deu certo…].
Sua meta é prolongar esses “40 anos” durante um bom tempo – até que a medicina tenha meios de reverter o seu envelhecimento. Enquanto isso, ele se submete a uma rotina exaustiva de exames todo mês, a cada semana perde um dia tomando injeções em uma clínica e se impõe uma dieta severa: nada de carne vermelha, açúcar, quase zero de carboidratos, raras taças de vinho tinto ou xícaras de café, muito tofu e chá verde, e 10 copos diários de água alcalina.
Antes que você o veja como um maluco ou mais um picareta mago da auto-ajuda, é bom apresentar Ray Kurzweil como um dos mais notáveis inventores, cientistas e futurólogos em atividade nos EUA. Segundo Bill Gates, ele “oferece um olhar único para um futuro em que as capacidades do computador e da espécie que o criou ficarão ainda mais próximas uma da outra”. Os músicos que lêem essa matéria certamente conhecem o sobrenome: Kurzweil é a marca de um notório sintetizador. A ligação de Kurzweil com a música vem de berço.
Sua família, de ascendência judaica, chegou em 1939 nos EUA, fugindo dos nazistas austríacos. O pai era músico e o tio, engenheiro da Bell. Aos cinco anos de idade, o pequeno Ray enfiou na cabeça que seria inventor. Aos sete, foi matriculado numa escola em que se pregava o Universalismo Unitário – uma doutrina antidogmática que inclui todo tipo de religião, afastando o pequeno gênio judeu definitivamente de qualquer fé transcendentalista.
Ele diria anos depois que foi influenciado por uma experiência de seu avô, que lhe contou como sentiu a presença de Deus ao tocar em manuscritos de Leonardo da Vinci: “Esta foi a religião em que fui criado – a veneração pela criatividade humana e o poder das idéias” (The Singularity is near, Viking, 2005). Com dez, Kurzweil era um maníaco por ficção-científica. Com treze, já havia criado o primeiro software – um programa estatístico usado depois pela IBM. Aos 20, no MIT, em 1968, inventou um pré-Facebook, software que combinava características de cada estudante da universidade com o objetivo de encontrar e colecionar amigos.
Antes disso, ainda aos dezessete, Kurzweil apareceu no programa de TV I’ve got a secret, em que cada convidado levava uma surpresa. Subiu ao palco, sentou-se ao piano e tocou uma peça de feição clássica. O apresentador, com cara de tédio, perguntou: “Ok, garoto, e daí, o que é que tem demais isso?”. A execução em si, nada – mas a partitura havia sido criada por um computador, programado com um software que combinava padrões de obras de compositores clássicos. Este seria o primeiro de vários importantes experimentos de Kurzweil ligados ao som.
Ele criou o primeiro scanner óptico de texto, a primeira máquina de leitura para cegos (print-to-speech) e o primeiro sintetizador de voz (text-to-speech). Ao ouvi-lo na TV demonstrando suas invenções, Stevie Wonder o procurou – acabou bancando a primeira máquina reconhecedora de voz, e, mais tarde, o primeiro sintetizador de piano e orquestra, ainda hoje um dos instrumentos mais procurados por tecladistas do mundo todo. Foi um dos desbravadores da realidade virtual, da arte cibernética (criou um software que escreve poemas, por exemplo), e volta agora suas atenções para o desenvolvimento da inteligência artificial.
No entanto, seu mais ambicioso projeto, aquele para o qual Kurzweil toma 230 pílulas de nutrientes por dia e o faz sonhar com uma vida longa, leva o nome de Singularidade. Em 2039, ele antevê que uma inteligência artificial passará pela primeira vez pelo Teste de Turing – um questionário criado em 1950 pelo matemático britânico Alan Turing que determina se o testado é um ser humano ou um computador. Quando isso ocorrer, haverá condições para que o cérebro de um ser humano seja “baixado” para o hardware de um computador. Então se dará a Singularidade – quando homem e máquina serão afinal o mesmo ser.
Lei dos retornos acelerados
É preciso dizer que o exagerado otimismo e total crença na evolução tecnológica apregoados por Kurzweil encontram ressonância histórica – e teórica. Em 1965, um dos co-fundadores da Intel, Gordon Moore, cunhou a Lei que leva seu nome: uma tendência segundo a qual a área de superfície de um transistor, embutido em um circuito integrado, reduzia-se à metade a cada dois anos – o que duplica tanto o número de componentes em um chip quanto sua velocidade. A Lei de Moore tem orientado a aceleração exponencial da informática nos últimos 40 anos, e deve durar mais uns 20 – quando os transistores terão apenas alguns átomos de espessura.
A partir do estudo desse fenômeno, Kurzweil pensou uma tendência chamada Lei dos Retornos Acelerados: à medida em que a ordem aumenta exponencialmente, o tempo acelera exponencialmente – o intervalo de tempo entre eventos relevantes fica menor com o passar do tempo. Essa lei se aplica à evolução humana – e à introdução da tecnologia na Terra. Foi com base nessa lei que, em seu já clássico de 1990, A era das máquinas inteligentes [a noção de ‘clássico’ tem se acelerado…], Kurzweil previu que um computador venceria pela primeira vez um enxadrista em 1998 (Garry Kasparov foi derrotado pelo IBM Deep Blue em 1997).
O homo sapiens sapiens emergiu apenas dezenas de milhares de anos depois de seus antepassados. O estágio seguinte da evolução mediria alguns milhares de anos. “O próximo marco será a tecnologia criando sua próxima geração sem intervenção humana”, preconiza Kurzweil em A era das máquinas espirituais, de 1999 (Aleph). Na prática, o inventor crê que uma inteligência pode criar outra inteligência mais inteligente que ela própria.
“Se eu escanear seu cérebro e seu sistema nervoso com uma tecnologia não-destrutiva – uma ressonância magnética de alta largura de banda e resolução muito alta – , me certificar de que todos os processos relevantes de informação e, em seguida, efetuar um download dessa informação para meu computador neural, terei um pouco de você, bem aqui no meu computador pessoal. Se meu computador for uma rede neural de neurônios simulados feitos de material eletrônico em vez de humano, a versão de você em meu computador rodará cerca de um milhão de vezes mais rápido. Então, uma hora para mim será cerca de um milhão de horas para você, cerca de um século”, escreve.
Em 2025, um computador será capaz de produzir os mesmos 20 milhões de bilhões de cálculos por segundo que o cérebro humano consegue – a US$ 1 mil. A memória humana tem cerca de 100 trilhões de sinapses, ou bits. Em 1998, um pente de 128 megabytes, ou um bilhão de bits de RAM, custava R$ 1 mil. Pela Lei dos Retornos Acelerados, o mesmo preço comprará toda uma memória humana por volta de 2023. Porém, Kurzweil não se limita a crer na evolução da computação digital; vislumbra novos caminhos na computação óptica, na computação por DNA e na computação quântica, ou em combinações desses sistemas. Um CQ não calcula segundo a variação entre 0 e 1, como o digital: ali, um dado pode ser um e zero ao mesmo tempo. Essa ambigüidade, para Kurzweil, é perfeita para compreender a capacidade humana em criar arte.
Corpo sem corpo
A questão principal: onde mora a consciência? Para Kurzweil, um mestre em reconhecimento de padrões, o que nos forma não são nossas moléculas – que, como se sabe, estão sempre mudando (os átomos que fazem seu corpo hoje não são os mesmos de ontem) –, e sim o nosso padrão. Portanto, se Fulano baixar seu cérebro para um ambiente neural supersofisticado, qual deles será Fulano? Para o cientista, esse é um problema para as décadas seguintes resolverem. “Haveria nostalgia por nossas humildes raízes com base em carbono, mas também existe nostalgia por discos de vinil”, ironiza Kurzweil. Afinal, o inventor afirma que não existirá mortalidade no fim do século 21 – por uma simples constatação: “Nós seremos software, não hardware”. Qualquer indivíduo poderá ser transferido para um novo corpo.
Novo corpo? Mas este corpo será feito de quê? Kurzweil responde: a nanotecnologia, que arquiteta máquinas auto-replicantes no nível atômico, “poderia transformar o mundo. Nanobôs lançados em nossas correntes sangüíneas poderiam suplementar nosso sistema imunológico natural e buscar e destruir patógenos, células cancerígenas… será possível replicar a funcionalidade física e química de qualquer célula humana […]. No final do século 21, a nanotecnologia permitirá que objetos como móveis, prédios, roupas e até pessoas mudem sua aparência e outras características em um fração de segundo”.
Ao lado da nanotecnologia, outra especialidade acelerará sua evolução: a realidade virtual. Através dessa nova ciência, corpos simplesmente não precisarão existir – e a mente flutuará livre de peso, de hardware… na Rede. Mas isso só acontecerá em 2099. Até lá, Ray Kurzweil já terá ingerido milhares de pílulas – afinal, como inventor e cientista, ele não pretende deixar de impor sua teoria à prática. Como ele diria, ecoando outro gênio judeu, Woody Allen: “Algumas pessoas querem atingir a imortalidade através de sua obra ou de seus descendentes. Eu pretendo atingir a imortalidade não morrendo”.
Sensacional! Uma aula de reportagem, vou passar a ler a trip de agora em diante. Achei sintomático o nome dado ao projeto de extensão virtual da vida dele (Kurzweil): “Singularidade”…é um termo bem apropriado para descrever visionários geniais, e, quem sabe um pouco “excentricos” aos olhos do populacho (no qual me incluo).
Merece um Pulitzer