A história da humanidade não é a história de um tremendo equívoco. Fazemos o melhor que podemos. São poucos os que podem amar, dividir, compartilhar sabedoria e bens materiais. Mas isso não quer dizer que os que não conseguem fazer isso, as chamadas virtudes, estejam errados. Eles simplesmente não conseguem.
Certa vez a minha criatividade me deixou. Deitado na banheira cheia d’água, eu via as minhas pernas. Massas de carne e pêlo envelhecidas e maceradas pela espuma. Então eu tive uma idéia. Me penteei. Pus um terno, enlacei os sapatos e fui para a esquina de uma igreja. Eu esperava as pessoas saírem e… Não, não era aleatório. Sabe quando você vai a uma lanchonete e olha a lista? O que você quer comer já está decidido minutos antes de você entrar na lanchonete. A tabela apenas funciona como a bacia de Nostradamus, uma carta astral. Eu escolhia as pessoas assim, mas elas tinham um perfil, ou possuíam um tipo de composição. Depois, eu seguia a pessoa uns três dias. Era tão bom nisso que eu parecia um balão.
Quando eu não dependia de dinheiro para escrever, as idéias fluiam com facilidade. Passava a maior parte do tempo deitado, lendo ou assistindo TV. Eu tinha tempo, ou melhor, eu não tinha preocupações – eu criava quando queria, estados de tensão criativa – milimetricamente controlados e limpos. Mais tarde, existiria o aluguel para pagar, as mil contas, o divórcio, a criança insatisfeita, o trabalho desgastante cujo prêmio seria o sono de vinte e cinco dias. Não conseguia mais escrever. O bloqueio vinha não de dentro, mas de fora. Este tipo de ambiente não proporcionava um solo fértil para as idéias. Uma centelha surgia e logo se apagava, tudo morria de forma leitosa, não aparecendo bem no papel – uma droga. Então decidi que se as idéias não surgiam de dentro surgiriam de fora, seriam fisgadas no mundo. Funcionou. Provocava a criatividade com os assaltos a mocinhas indefesas, a coroas robustas, todas aquelas abordadas no meio do caminho e pelas encostas das seis e meia.
Lencinho. Luvas, sapato bem amarrado.
Não existe nada no universo que não seja um grito. O universo está em grito. Apenas feche os olhos. Estados de grito. Dá pra escutar. O barulho da água cozinhando é um grito abafado, o da criança nascendo um grito aberto, o dos homens trepando e o da máquina embolada entre fios. Os pássaros não cantam, eles gritam; quem inventou o canto dos pássaros foram os pintores.
Se eu continuo a escrever como antes? Tem gente que diz que eu não tenho mais a mesma pegada. Mas o passado não está localizado no tempo e sim no evento. Eu ainda sou o antes. De qualquer forma descobri de uma vez por todas o que realmente me fez vir ao mundo: descriar para criar melhor, mesmo que não seja eu, a frase:
Um dia isso acaba.
Esse foi o prefácio de Sereias de bengala, do JC; continue lendo aqui.
E Jorgeira chegou na Merça ontem. A segunda vez que ele vem pra SP, depois de tanto tempo longe. Pra quem esperava algo entre o Papai Noel e Jesus Cristo, topar com um simpático sósia tatuado do Evandro Mesquita foi anticlimático. Mas é como o que ele diz aí em cima. Jorge olha no olho das coisas, não desvia – e ri. E é isso que faz dele um puta cara sangue bom; ainda que não tenha medo de enfiar o pé na jaca do sangue turvo.
Dica: “Orace“, um dos contos mais assustadoramente belos que li ultimamente. Começa assim: “Dirigindo o Volvo pelas encostas escandinavas Orace bateu em um cavalo”…