Agrippino, o profeta da Tropicália


No Estadão de hoje: a epopéia pessoal do autor de PanAmérica, livro fundador do movimento que comemora 40 ano


Agrippino

Agrippino aos 30 anos, quando publica PanAmérica: um olho lá, outro aí
[Imagem do arquivo pessoal de Mari Stockler]

O que acontece quando some um buraco negro? É o que me pergunto em 4 de julho de 2007, aniversário dos EUA – e dia da morte de José Agrippino de Paula e Silva, o autor de PanAmérica. Faria 70 anos em 13 de julho. Desde o início dos anos 80, quando tem diagnosticada sua esquizofrenia, Agrippino é uma espécie de monolito de 2001, a separar a cultura brasileira em antes e depois – sem que ele mesmo jamais explicasse essa divisão. A história pessoal talvez lance alguma luz.

Meu pai ensinava solfejo para mim. Movimentava as mãos para o lado e dizia alto: um, dois, três, quatro; um, dois, três, quatro.” A presença paterna é poderosa no romance de estréia de Agrippino, Lugar Público. Não no nível psicológico: novidade na época, o romance propõe uma escrita em que os fatos surgem limpos aos olhos do narrador, sem justificativa social, psicológica, metalinguística, simbólica – e não se trata de literatura realista. “No romance já está presente a voz narradora não-identificada de PanAmérica – Eu, personagem melíflua fundida à multidão –, remetendo à máxima rimbaudiana je est un autre, eu é um outro”, anota o escritor matogrossense Joca Reiners Terron em seu depoimento na segunda Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), em 2005.

O pai de Agrippino, o advogado Oscavo de Paula e Silva, é figura central na família: severo, conservador, positivista. A mãe do escritor é a professora de história Claudemira Vasconcelos. Nascido em São Paulo em 1937 e batizado em homenagem ao tio paterno, Agrippino ganha um irmão sete anos depois, o arquiteto Guilherme Henrique de Paula e Silva, 63. Segundo este, o lar presidido por Oscavo é iluminado pela mãe, que nunca deixa faltarem na casa da Lapa paulistana livros de história, literatura, filosofia, bem como aulas de música.

Era freqüente conversar sobre literatura russa e francesa”, lembra Guilherme. A família vive em harmonia até que o doutor Oscavo morre, em 1957. Um abalo de que os Paula e Silva não se recuperam. Agrippino, que estuda arquitetura na FAU/USP, vai morar no Rio de Janeiro, onde retoma a prancheta na UFRJ até 1964. Neste período carioca, em que jamais trabalha e vive da pensão da mãe (aliás, nunca terá um emprego regular em toda a vida), Agrippino lê dramaturgia, arquitetura e filosofia, atua no teatro amador, freqüenta o cinema, namora bastante, vive num quarto-e-sala do Leme. E escreve Lugar Público.

Se, entanto, o autor recuse psicologia em sua prosa, é importante notar coincidências entre escrita e vida. “O seu pai dizia que a ele, o seu filho, faltava qualquer coisa de fundamental, como a falta dos braços.” Antes de a mãe morrer, diz ao filho Guilherme que o pai sempre achava algo “estranho” em Agrippino. A estranheza do romance causa impacto e logo o paulistano é figura cultuada. Na orelha do livro (Civilização Brasileira), Carlos Heitor Cony, que o compara ao nouveau roman de Alain Robbe-Grillet, não economiza: “Estamos diante do que de mais moderno existe em matéria de ficção”. Finda a faculdade, Agrippino vem a São Paulo lançar o livro, em 1965. Contata o núcleo que mais tarde ganhará o nome de Tropicália: o escritor Jorge Mautner, o designer Rogério Duarte, os compositores Gilberto Gil e Caetano Veloso. Dirige o primeiro show d’Os Mutantes, O Planeta dos Mutantes. E, principalmente, conhece a futura companheira, a bailarina Maria Esther Stockler.

Rito do Amor Selvagem

Mulher bela e altiva, olhos verdes, herdeira de família quatrocentona paulista – que irá falir nos anos 80 (o dinheiro vem da célebre casa financeira Haspa), Esther quer montar um espetáculo e Agrippino propõe-se diretor. É o início de uma parceria artística e amorosa que formará o epicentro da cena tropicalista. Em seu Verdade Tropical, Caetano Veloso aponta Agrippino como guru da geração – ao lado do físico Mario Schöenberg e do parceiro Gil, é o nome mais citado na obra. “Quando falava, todos silenciavam”, recorda Jorge Mautner. A grave, doce e lenta voz de Agrippino soa xamânica durante as psicodélicas festas patrocinadas pelo casal – que seriam inesquecíveis não fossem propícias ao esquecimento as muitas substâncias consumidas pelos convivas.

Enquanto bola o espetáculo com Maria Esther, com quem passa a viver na Bela Vista, sempre às expensas da bailarina, Agrippino escreve um dos livros mais citados e menos lidos da literatura brasileira do século 20: PanAmérica (Tridente, 1967). “Eu sobrevoava com o meu helicóptero os caminhões despejando areia no limite do imenso mar de gelatina verde”, abre o romance, todo sedimentado em frases diretas centradas num anônimo Eu.

Pela natureza íntegra e radical, o romance impõe-se como óvni na cultura dos 60. O escritor carioca Sérgio Sant’Anna reflete: “Havia um murmúrio no Rio, em Minas, em São Paulo: ‘Tem um cara aí com uma literatura absolutamente inovadora’”, diz. “Ao ler PanAmérica, meu coração começou a bater diante de uma grande revelação, o conhecer de uma literatura cósmica, a partir de uma primeira pessoa pronunciada por um diretor de produções hollywoodianas, filmando nada menos que a Bíblia. Toda a mitologia adolescente surgia como numa tela: James Dean, Marilyn Monroe, John Wayne e os grandes astros, numa linguagem que tirava sua força de uma repetição obsessiva até chegar ao Caos”, exalta o autor de Vôo da Madrugada.

A narrativa antirealista de PanAmérica bebe na pop art norte-americana – mas seu mérito, conforme o próprio Agrippino afirmará a este repórter em 2003, é trazer ao centro da narrativa nacional a urbanidade: “Não tem muitos escrevendo literatura urbana hoje”, dirá, em sua prosa sempre apoiada no tempo presente. “Só o Mautner, o João Antônio e eu.” O romance, mais imagem que linguagem, mais urdido em mitos midiáticos que em personalidades psicológicas, contaminará toda a literatura experimental brasileira das décadas seguintes – pode ser pressentida nas ficções de André Sant’Anna, de Manoel Carlos Karam e do próprio Terron.

Incensado como gênio tropicalista, Agrippino dirige em 1968 o média Hitler III Mundo, coadjuvado pelo diretor de fotografia Jorge Bodansky. No filme, o Coisa, um Jô Soares vestido de gueixa e PMs reais atuando como militares (!) caçam Hitler pelas ruas do centro de São Paulo. Em 1969, Agrippino estréia Rito do Amor Selvagem, espetáculo fundado no happening, propõe o conceito de “mixagem” entre texto, música, cenografia, luz – e platéia. A figura-chave é o ator Stênio Garcia, que contracena com um grupo de dançarinos e uma banda. “Entre os personagens podiam ou não estar, já que não tinha um texto definido, Marlon Brando, Mussolini, Eva Braun e o Super-Homem”, lembra Stênio. “Se um espectador tinha um sonho ou um insight, o material ia pro palco e o elenco improvisava em cima. Uma bola gigante de plástico caía na platéia… a seqüência das ações era imprevisível.” Sucesso de público no Rio, a peça é montada várias vezes por dia até ser censurada – e o casal volta a São Paulo, indo morar numa casa no Pacaembu.

Céu sobre a Água

Palco de festas psicodélicas – “é como se o irracionalismo do Rito tivesse virado realidade”, observa Guilherme –, a casa recebe seguidas batidas da polícia. Vivem ali Agrippino, Maria Esther e a amiga Maria do Rosário, pivô de brigas no casal. Certa vez, Agrippino recebe voz de prisão: sua foto algemado estampa a primeira página da Última Hora (Guilherme esconderá o jornal para que a mãe não veja o filho preso). Assustado, o casal foge para a África. Passam por lugarejos em Mali, Senegal, Marrocos, onde realizam em super-8 filmes oníricos, baseados em coreografias de Maria Esther. O casal se separa: Agrippino vai a Londres (onde perde uma mala cheia de escritos, um deles um romance), Nova York (onde experimenta pela primeira vez a mescalina, “mais forte que ácido”, conforme contará a este repórter), depois gira pela Europa.

No retorno ao Brasil, Agrippino, reconciliado com Maria Esther, vai viver na Bahia. Da África, o escritor traz a indumentária com que fixará sua imagem até o fim: um parangolé beatnik, jaqueta jeans recosturada que usa como fraldão em torno do corpo. Agrippino descobre-se pai – a amiga Maria do Rosário dera à luz Chara do Rosário (o nome é referência ao charo de maconha), hoje única herdeira do autor. E em seguida, Maria Esther descobre-se grávida – imagens de sua barriga boiando no mar podem ser vistas no curta Céu Sobre a Água, de 1972. Em 1973, o casal recebe a vinda de Manhã, que nasce na Boca do Rio, próxima à ilha de Itaparica.

Nessa época conhece a crítica literária baiana Evelina Hoisel, autora de um solitário estudo sobre Agrippino, Supercaos: “Ele parecia um gigante mítico, um profeta bíblico. Gostava de andar de branco e ficava muito bonito com as túnicas indianas que vestia, sua figura se avolumava naquele contraste do corpo queimado de sol com as vestes brancas, a cabeleira cheia. Chegava em minha casa vindo de Itaparica ou de Arembepe, com Esther ou sozinho, comia alguma coisa, sentava no chão ou na rede, ficava quieto, ouvíamos música, e logo começava a falar, horas seguidas…”, lembra. “Não era fácil acompanhar a lógica da sua narrativa oral, o fluxo da sua conversa era como a narrativa de PanAmérica: um jorro incessante de palavras, um fluir contínuo de imagens, diferentes assuntos embaralhados simultaneamente”.

O idílio baiano é breve. O casal novamente se desata – Agrippino vai morar em Salvador, Maria Esther no Rio, e Manhã fica aos cuidados do tio Guilherme. Os anos seguintes são erráticos; o profeta oferece novidades dispersas – escreve a peça Nações Unidas, mas não a publica (a editora Papagaio pretende editá-la ainda em 2007. Update: até janeiro de 2010, nada de livro). Desse tempo surgem contos como “Cigana prateada da lua”, escrito durante viagem de ácido no Marrocos. Agrippino retorna a São Paulo, onde tenta conviver com a mãe. Porém, ocorrem surtos violentos e delírios persecutórios em que gritava que Antonio Carlos Magalhães tentava matá-lo (ironicamente, ACM morreria apenas duas semanas após Agrippino), destruía TVs e rádios ou investia contra a mãe com uma espada do CPOR. O irmão Guilherme é chamado, convoca psiquiatras, afinal vem o veredito: esquizofrenia.

Madame Estereofônica

Mas a história não termina aqui. Inicia-se uma rotina de visitas a clínicas, fugas, medicações, até que Agrippino passa a viver em uma casa no Embu das Artes, subúrbio paulistano. A doença justifica a crescente apatia. Mesmo visitado por leitores, escritores, fãs, amigos, Agrippino segue recluso na casa da avenida Elias Yazbek, 1640. Entre 2001 e 2004, são relançados PanAmérica e Lugar Público (Papagaio). Em 2005, a psicanalista Miriam Chnaiderman tenta co-dirigir com Agrippino um curta, Passeios no Recanto Silvestre – porém ele refuta usar de novo uma super-8. Segue leal à sua fala sempre no tempo presente – mesmo quando se referia aos anos 60 –, ao seu parangolé e à sua dieta básica de arroz integral (certa vez o irmão o flagrou comendo uma mistura de sustagen, leite integral e aveia: Agrippino afirmou que era a única coisa que o estômago o deixava comer). E ganha novo sentido o que havia escrito em Lugar Público:

Falta qualquer coisa em mim. E eu estou relegado a segundo plano na ordem do tempo, onde as coisas possuem a ordem do tempo. Estou numa confusão absoluta de palavras e de sentido (…). Construir a ordem da falta de ordem.

Em 1992, a filha Manhã, então uma lindíssima aspirante a atriz, é vitimada em acidente automobilístico. Quando ouve a notícia, Agrippino vira o rosto e pede ao irmão “que resolva isso”. O baque causado pela perda da filha parece ser somente sentido por Maria Esther – que, retirada da vida artística e vivendo em Paraty, alternará dali em diante momentos de euforia e períodos de depressão. “Ela parecia ter os olhos voltados para dentro”, reflete Guilherme. Em 2006, Maria Esther morre – um câncer de que nunca tentou se curar. E nove meses após a ex-mulher, o profeta sofre infarto fatal. É encontrado na cama pelo fiel irmão, o corpo enrolado à sua túnica.

Mas a história não termina aqui. Em 2008, PanAmérica afinal será traduzido – para o francês, pela editora Léo Scheer. A história não termina porque Agrippino jamais parou de escrever. No Embu, além de livros encimados por toneladas de pó, sacos de arroz e parangolés, o artista deixa cerca de 500 grandes cadernos, lotados de notas para o romance que escreve até seu último dia – Os Favorecidos de Madame Estereofônica [em estudo pela editora Papagaio]. Enfim, a história de Agrippino parece nunca terminar porque… o que acontece quando some um buraco negro?

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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