O som

A lembrança da luxúria é a mais evasiva de todas; assim que a luxúria se transforma em apenas uma idéia ela se torna sua própria contradição: ausente, despercebida, e portanto impensável. Sei que subitamente me vi naquela noite, um homem sozinho num cubo, rodeado por outros invisíveis em cubos adjacentes, e com dezenas de milhares de páginas ao redor, cheias de descrições das mesmas – mas sempre distintas – emoções de personagens reais ou inventados. Eu estava emocionado comigo mesmo. Eu nunca escreveria uma página destas, mas a emoção que senti naquelas horas do passado era minha para sempre. Ela me mostrara um jardim que me fora fechado. Eu ainda estava do lado de fora, mas pelo menos conseguira ver um vislumbre. Vislumbre é a palavra errada. Eu tinha escutado. Ela fizera um som que não pertencia ao mundo, que eu nunca ouvira antes. Era o som de uma criança, e ao mesmo tempo de uma dor que nenhuma palavra pode descrever. Devia ser impossível viver no lugar de onde viera aquele som.

Cees Nooteboom, em A seguinte história

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s