Encasulado

Agora que meus amigos são livros que navegam comigo entre álcool e fumaça, agora que minha mesa está lotada de histórias e poemas e textos que não tenho e talvez jamais tenha tempo de ler, agora que o céu é branco, agora que a biblioteca é infinita e agora que a curitibana saudade é grande [“só não sei da saudade/ a fina flor que fabrica/ ser, eu sei./ quem sabe,/ esta cidade me significa”, arquitetou Leminski].

Nesse agora recebo a visita de mais um jornal de poesia. Mais um jornal de poesia, santo deus – não bastassem os corpos empilhados no noticiário de todo dia, ainda há quem empilhe versos em busca de… um esquife mais bonito, talvez? De uma saideira grátis? De um beijo no pódio?

Não sei pra que fazem isso, mas continuam fazendo, e farão, imagino, bem depois que eu vire um blog suspenso. O tal jornal se chama Casulo e é bem bacaninha. Agora que eu não sou mais um leitor, tão-só um garimpeiro distraído, relapso colecionador de borboletas, separo coisas que me atraíram do terceiro número desse zine de literatura contemporânea dirigido por Andrea Catrópa e Eduardo Lacerda.

Heitor Ferraz, em entrevista, fala de seus poemas. Coisas especiais, assim, por banais:

O homem especial

O homem especial caminha na hora do almoço
Entra no restaurante e procura um lugar
de onde possa ver a rua através da imensa vidraça
O homem especial mastiga a comida
e vê a rua que passa em frente
ondulações de cabeças
e a esgrima de guarda-chuvas e jornais
O homem especial come calado
destroça uma torta de morangos
– a hora especial de sua torta de morangos
e névoas de café

Gostei também desse aqui, do pernambucano Astier Basílio:

anteprojeto

carrego comigo
um domingo com a filha que terei
a velhice na cama dividida
o horizonte concluído da janela

mas um escorpião tem medo do fogo
em meu sangue
dança e derruba sua peçonha de 4 patas
que me põe de pé quando sou homem

e eu sou mais veneno
que paisagem

Desse outro, da paulista Débora Tavares:

Domingo no parque

Privilégio das formigas
Assistir o sol adentrando
Na copa da árvore

Privilégio dos pássaros
Ser o entremeio
Dos raios e da copa

Me rendo ao banco de madeira
Brisa nos olhos e na copa
Formiga na manhã de sol

E deste sem-título, do santista Paulo de Toledo:

depois de ficar quase afônico
de soletrar os nomes mântricos

de todas as mulheres da lista telefônica
desisti de procurar por esse amor recôndito

e fui logo fazer sexo tântrico
com a minha secretária eletrônica

Bom, posto que não tenho secretária, nem manual nem eletrônica, paro aqui pra ir ali dar um jeito naqueles amigos, digo, naqueles livros à mesa. Ah: pra ter um Casulo, escreva para ocasulo@projetoidentidade.org.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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