Cadê os anos 60 que tavam aqui?


Lançamentos simultâneos, Ponto Final, de Mikal Gilmore, e A Turma Que Não Escrevia Direito, de Marc Weingarten, demonstram como a ousadia daqueles tempos loucos não deixou descendentes. Pro Outlook de 25-9

Garcia: If I knew the way, I would take you home

“Há muito mais aspectos sombrios na aventura dos anos 60 do que a maioria das pessoas reconhece – e não estou me referindo apenas às vítimas das drogas, à ruína política e à violência do período. Havia também um desejo de explorar o arriscado terreno psíquico, uma percepção de que as melhores esperanças podem também custar perdas terríveis“, escreve Mikal Gilmore em Ponto Final: Crônicas Sobre os Anos 60 e Suas Desilusões (Companhia das Letras, trad. Oscar Pilagallo). O trecho é retirado de um perfil de Jerry Garcia, líder do Grateful Dead, a banda de rock mais identificada com o idealismo flower power e com os atalhos e descaminhos do psicodelismo, a ponto de inspirar legiões de fãs, os dead heads, a criarem comunidades alternativas.

Agora, leia este trecho: “Thompson finalmente encontra o sonho americano, mas este havia sido tão corrompido que não podia ser reconhecido. O Destino Manifesto agora é apenas ganhar dinheiro – turistas bêbados em Vegas se divertindo até morrer, jogando dinheiro num buraco de coelho, onde ele é recuperado por gulosos proprietários de cassinos. Quanto à contracultura, tem sido castigada e ficado submissa a uma dose pesada de drogas: ‘Todos aqueles malucos de ácido pateticamente ansiosos que achavam que poderia comprar Paz e Compreensão por três dólares a dose. Mas a perda e o fracasso deles são nossos também.’ O sonho acabara, e agora não havia volta“, escreve Marc Weingarten a respeito de Hunter S. Thompson em A Turma Que Não Escrevia Direito (Record, trad. Bruno Casotti).

Em comum, ambos os livros focalizam a cultura pop dos anos 60. Mas, enquanto Gilmore perfila ícones da música e literatura, Weingarten escreve a sobre o jornalismo, mais especificamente o new journalism. Nos dois livros, porém, existe, como se nota nos trechos acima, uma consciência de que os sujeitos mais ligados no zeitgeist, como Jerry Garcia e Hunter S. Thompson, já percebiam que aquela festa não duraria muito – que o sonho já trazia em si, embutido, o seu alarme. Nas 438 páginas de Ponto Final, Gilmore, jornalista da revista Rolling Stone desde os anos 1970, elenca Allen Ginsberg, Timothy Leary, Grateful Dead, Ken Kesey, Beatles, Johnny Cash, Bob Marley, Phil Ochs, HST, Jim Morrison, Allman Brothers, Led Zeppelin, Pink Floyd, Bob Dylan e Leonard Cohen.

A escolha do formato perfil dá ao livro o efeito de um caleidoscópio. Gilmore, com seu olhar apaixonado e compassivo, mas com escrita informativa e direta, usa cada um dos perfilados como ângulo para observar o paraíso e o inferno dos anos 60. Exemplo é o modo como narra a fábula dos Beatles: ora sob a vida de George Harrison, o caçula espiritual, o contraditório e talentoso guitarrista que ficou apartado do centro nervoso da maior banda pop da história por conta de sua personalidade introvertida; ora sob a biografia de John Lennon, o genial líder do grupo, o homem que detonou o sonho e foi por ele detonado ao ser assassinado em 1980. O livro é dividido entre sobreviventes e mortos – com ligeira vantagem para estes.

Quase não há página sem menção a drogas, algo que espanta o autor no prefácio: “A busca por liberdade levou várias pessoas neste livro a um declínio terrível. A liberdade de fazer cagadas podia ser maravilhosa, mas também significou uma viagem sem volta“. No mesmo prefácio, Gilmore especula sobre como a obsessiva recusa às convenções e ideologias dominantes nos anos 60 redundou no pragmático neoconservadorismo do século 21, em que “mecanismos culturais, comerciais e da mídia estão mais aptos a assimilar ou desacreditar as ameaças da cultura pop ou caracterizá-las como simples afronta ao pudor e às boas maneiras“. Mas ele ainda sonha: “Não vivo no passado, nem desejo vê-lo reencenado; só quero saber o que será possível amanhã, o que poderá ser feito de maneira nova“.

Se a imprensa é o reflexo da cultura que pretende registrar, só o revolucionário new journalism para dar conta daqueles tempos radicais. Assim, se o livro de Gilmore é um caleidoscópio, o de Weingarten se parece com uma ampulheta – a areia escorrendo dando uma medida da criatividade jornalística que pulsava nos anos 60, hoje tornada pó em raros suplementos culturais, revistas e sites. Nunca o jornalismo esteve tão próximo de ser considerado uma arte em si como nos 60, era que implodiu os limites entre ficção e não-ficção. Segundo a deliciosa e implacavelmente precisa narrativa de Weingarten, tudo começou quando Clay Felker, então editor da hoje deslumbrada revista New York, resolveu cutucar a concorrente New Yorker, que representava o cúmulo da cultura nefelibata novaiorquina. Algo assim como se a Trip resolvesse tirar um pêlo da Piauí. Para perfilar o editor William Shawn, que jamais dava entrevistas, foi destacado seu repórter-prodígio, Tom Wolfe.

O resultado é “Pequenas múmias“, texto em que pela primeira vez Wolfe dava vazão a seu “estilo hiperbólico“, que conjugava subjetivismo feroz a técnicas literárias como diálogos fartos, monólogos interiores e vasta descrição – tudo em impensáveis 10 mil palavras (mais ou menos 50 páginas. Sim, impossível hoje – e não só devido à internet e a TV, mas também porque há raros jornalistas que consigam escrever textos de 50 páginas, e mais raros ainda editores que os banquem). Em 390 páginas, através das figuras de Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer, Joan Didion e, claro, Thompson – cuja atordoante biografia é tema de vários capítulos –, Weingarten conta a história do jornalismo norte-americano, de sua formação, no meio do século 19, se detendo no seu apogeu, nos anos 60, ao declínio, nos 70, até chegar aos tempos atuais – em que, por conta de editores opacos e publishers de olho em interesses financeiros, o new journalism sobrevive exilado em livros. Cara e coroa, face e reflexo, Ponto Final e A Turma… são fundamentais para refletir sobre como a explosão criativa dos anos 60 redundou numa cultura em que todo risco é calculado e dedutível do imposto de renda.

Hunter S. Thompson dando duro na firma

Weingarten fala

Papo com o chefe d’A Turma, por email

Não há espaço nas revistas e jornais de hoje para artigos de 5 mil palavras. Qual é o futuro do new journalism? Nos e-books, nos iPads? Provavelmente o futuro é a internet mas a ironia é que você não acha jornalismo de longo curso na rede – eu falo da extensão entre 10 e 20 mil palavras, que é o tamanho da reportagem Hiroshima, de John Hersey. O que os editores da internet estão procurando são pessoas que gostem de ler em pequenas doses. Então, o espaço está aqui; agora precisamos de editores com culhões para usá-lo.

Os editores atuais parecem muito conservadores, distanciando-se do texto literário. Consegue ver hoje, em algum lugar, a radical e temerária loucura dos anos 60 que podemos ler em Wolfe e Thompson? Não sei se os editores de hoje são caretas. Há muitos jornalistas bons por aí mas a maioria deles tem de ganhar a vida, e não podem fazer isso nos EUA hoje. Então, estão dando aulas, fazendo publicidade, trabalhando em bibliotecas. É difícil de praticar sua arte quando o mercado é tão restrito. Tem que ver também que gente como Wolfe e Thompson aparece em raras gerações. Tenho certeza que os novíssimos jornalistas estão aí fora em algum lugar, mas nós não os lemos.

Alguma possibilidade de um ressurgimento do jornalismo gonzo? O repórter Matt Tiabbi na Rolling Stone é um acólito do Hunter, mesmo que ele seja um pouco desorientado politicamente. Gosto desse Scott Brown, na Wired – muito esperto, muito sagaz e muito engraçado. E na New Yorker ainda temos soberbos repórteres e estilistas, como John Anderson, Rebecca Mead, Susan Orlean.

Como seria o impacto da internet nos anos 60. Como seria HST se escrevesse no Twitter ou num blog? Hunter precisou de bons editores para publicar suas coisas: se Jann Wenner, ou David Dalton não estivessem lá para podar seus excessos talvez ele não seria o escritor que nós amamos ler hoje. E pode anotar: nenhuma literatura de nenhum mérito irá emergir do Twitter – JAMAIS.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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