Rumo à Estação Frilândia


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Você resolveu dar um pé na bunda em seu emprego chato e agora encara o abismo de ser um “profissional liberal autônomo”: não tem chefe, mas tem vários clientes, e precisa arranjar você mesmo o seu trabalho – do começo ao fim, e sem garantia de amanhã. E agora? Pensata-playground para a Vida Simples de junho 

Eu queria ultrapassá-la, só que ela insistia em bambolear na minha frente, fechando meu caminho, os braços levantados e próximos ao rosto como os de um pugilista armando a guarda. Eu ia para a esquerda, a senhora gordota também; direita eu, direita ela. Eu queria chegar logo em minha mesa, checar meus emails, entrar no Twitter, no Facebook, ouvir uma piada besta do Vicente e a última sobre aquela banda da Anninha e fingir que aquela informação que o chefe me dizia era nova e contar pro Marcelo que a gostosa do RH estava infernal no elevador – e, quem sabe, se desse sorte e não estivesse muito distraído, garrar no batente.

Mas a tia bamboleava em seu pugilato autista.

Até que parou sob uma lâmpada numa esquina do corredor. E levantou as mãos na direção da luz, punhos cerrados. E então eu vi. E entendi. E me resignei a aceitar a verdade; era demais. Tive uma epifania inversa ao descobrir por que motivo a senhora andava daquele jeito joão-bobo: estava limpando os dentes com o fio dental. E agora, sob a luz amarelada do corredor, conferia se algum pedacinho de qualquer coisa tinha ficado no floss. Aquilo me iluminou. Entrei na sala do chefe e pedi demissão.

Motivo fútil, eu sei. Toda gota d’água é fútil, e indúctil: cai e derrama tudo, rebenta os motivos mais profundos que boiavam represados. No meu caso, a cena da tiazinha que limpava os dentes em público como se não houvesse amanhã só acelerou minha vontade de abandonar a rotina de bater cartão em uma grande e poderosa empresa. Fiquei sabendo que a senhora havia entrado ali como uma jovem audaciosa e atrevida, cheia de gás e de talento. Agora seu talento se resumia em divulgar suas cacas aos colegas. O que é isso, meu amor, será que eu vou virar bolor?

Meu emprego era excelente; ótimo salário, equipe bacana, horário salubre, mordomias, desafios e linda vista para o rio Pinheiros. Eu era um cliente vip e diferenciado da zona de conforto, prontinho pra virar geléia de clichê. Aí a saudade da frilândia bateu forte. Caí fora antes de mumificar como a tiazinha. E não me arrependo.

Muitos “profissionais liberais” (sempre penso em sacanagem quando escrevo isso) – não só da área de texto, como a minha – vêm preferindo a dura calçada do CNPJ próprio ao teto com telhado de vidro da CLT. Existem muitas vantagens em ser freelancer, ou frila – que podem se converter em perrengues rapidinho. Basicamente há duas variantes da estação frilândia: pijamismo vs. caramujismo. Na primeira, em vez do ar-condicionado ora gelado demais ora suarento em demasia, para se refrescar você pode simplesmente colocar um ventilador sob a mesa e direcioná-lo ao seu porta-joias, à moda de Marilyn – como me lembra um frila inveterado, o jornalista e biógrafo Tom Cardoso. No seu banheiro, só encontrará você mesmo, mulher, filhos, room-mate, no máximo a empregada – não vai topar com aqueles estranhos seres que, na firma, você só encontra no WC, comentando futebol entre escovadas nos dentes ou falando loucamente ao celular em plena posição do Pensador (eca).

Depois do almoço, pode respeitar seu metabolismo e tirar uma sesta – em lugar de ficar no computador fazendo “tufta“. Tufta? Como me contou o fotógrafo Ignacio Aronovich, há 20 anos labutando na frilândia, tufta era expressão dos gulag russos que designava “fingir trabalhar” (ele leu isso em An American in the Gulag, de Alexander Dolgun, mas o termo também aparece em Arquipélago Gulag, de Alexander Solzhenitsyn). Quando Ig ia entregar suas fotos em uma redação de revista e via os colegas no Twitter ou no Facebook, fazendo cara de enterro, compreendeu que ali residia a tufta moderna. Bem, na frilândia não tem tufta – ou então você se tuftuff. Claro, você pode passar o dia inteiro enrolando, mas estará enrolando você mesmo, já que não tem chefe: você tem clientes. Tem prazos, deadlines e projetos que dependem de sua habilidade de girador de pratos para gerenciá-los.

E aí começam alguns perrengues: você é seu gestor, seu contador, seu motoboy. Noite dessas, em reunião com outros escritores, onde, pra variar, se falava de qualquer coisa menos de literatura, o cronista e noveleiro Antonio Prata revelava seu terror ante a expectativa de, numa madrugada, descobrir que sua impressora não tem toner. É que há empresas de comunicação que pedem que o frila imprima um contrato de cessão de direitos autorais, assine, escaneie o contrato e envie de volta por e-mail.

Muito prático, sim (há empresas que não aceitam isso: querem que você mande o contrato pelo correio, e, juro, não o aceitam impresso em papel reciclado). “Mas e quando acaba o toner, meu Deus?”, desesperava-se o Pratinha. Bem, se você demora a mandar o contrato, pode receber pelo job só no mês seguinte – aí adeus planejamento, olá cheque especial. Ser frila exige, como lembra Mauricio Oliveira em seu utilíssimo Manual do Frila (editora Contexto), muita disciplina. Você não terá mais 13º salário, bônus, necas de benefícios como convênio médico e previdência; por não ter emprego fixo, é sempre olhado com desconfiança ao pedir um financiamento; suas férias devem ser programadas tendo em vista os jobs encomendados; todos os gastos com telefone, internet, luz etc serão contabilizados no seu bolso.

A frilândia é uma montanha-russa. Não há garantia de trabalho amanhã: você tem que, como um troglodita, sair da caverna e matar um leão por dia. Há tempos em que todos os frilas aparecem de uma vez; há semanas em que ninguém te telefona nem escreve. Há que saber esperar a onda boa para surfar, não pegar todos os jobs de uma vez, escolher o que vale a pena – e isso, nem sempre por conta do valor, e sim da possibilidade de uma parceria com seu cliente. E quanto mais clientes, melhor: o frila é um amo de muitos senhores. Sim, é o frila quem escolhe seus senhores – como um ronin.

Segundo o código samurai, o bushido, estabelecido no século 9 no Japão, o guerreiro que perdesse seu daimyo – seu mestre -, deveria praticar o seppuku, o suicídio ritual. Ele poderia perder o daimyo por morte, o que seria um azar, ou ser “despedido” por este, desonra máxima. Se não praticasse o seppuku, o samurai se transformava em um ronin, que significa “homem-onda“. Mesmo não seguindo o principio básico do bushido de lealdade ao daimyo (lembrando que ser ronin não era originalmente uma opção, e sim condição imposta pelo daimyo), e, portanto, não serem considerados samurai, ainda assim os ronin portavam um daisho, a espada que simboliza a casta samurai. Ser ronin consistia em viver peregrinando, ocupando-se de pequenos jobs em troca de um rango e da prática das artes guerreiras. Logo os ronin tornaram-se temidos não só por sua habilidade excepcional em combate como, principalmente, por sua independência do código samurai, o que os tornava imprevisíveis. Por não ter mestre, um ronin seria capaz de tudo. Em geral, os ronin eram solitários e levavam vidas marginais, segregados do mundo feudal. Na cultura japonesa, crê-se que todo homem segue uma linha. O ronin, homem-onda, não tem sentido nem destino – como as ondas do mar. Por isso é que, quando o frila-ronin perde um daimyo, ou fica sem trabalho, tem a porta de outro daimyo onde se pode bater. E há sempre muitas portas abertas para o frila-ronin sagaz (não confundir com o ninja, que é outro tipo de jornalista, digo, de samurai).

Há no entanto um inconveniente de ser um homem-onda: a falta de estilo. Muito fácil um ronin virar mercenário e topar qualquer tipo de frila. Claro que – moral e bons costumes à parte -, o ronin precisa pagar as contas, e pode acabar topando frilas com que não se identifique nem se orgulhe muito de assinar. Por isso mesmo convém criar linhas de trabalho. Buscar temas que o levem a criar uma marca pessoal. Vivemos na era do branding, baby: seu nome, como você já deve ter ouvido falar, virou a infame grife. Interessa demonstrar que, ainda que generalista, seu trabalho é especializado em determinados assuntos. E em uma carteira bacana de clientes. Ao ronin não basta ter estilo no manejar de sua daisho; tem que ter estilo também ao escolher seu próximo daimyo. Porque, sem estilo, xuxu, sifu – e seppuku.

Indispensável levar em consideração outros malefícios da frilândia. O pijamismo – termo cunhado pelo jornalista e escritor Xico Sá, na frilândia desde 2009 – pode matar um casamento. A patroa sai e você está lá, de calção e camiseta velha, em frente ao laptop, costurando pra fora. Ela volta e você lá. Ela (ou ele) vai jantar, dormir, ver um filme, ouvir música, chamar os amigos para um vinho – e você lá, zero glamour, vagamente parecido com a decoração da casa, criando musgo. É que frila não tem horário – e sua mulher (ou seu marido) talvez tenha. O casamento, já suficientemente acossado pelos demônios da rotina, pode não resistir a essa desgovernada exibição de solteirismo laboral.

Todo recém-frila deve adorar a liberdade de não ter horário, de esticar os almoços até os jantares, de ver em plena terça-feira um Barcelona x Real Madrid – e depois, por que não, pegar um cineminha com as vovós (o único horário decente para ver um filme sem nenhum ruminante cuspindo pipoca na sua orelha ou um casal comentando todo o filme em cima de sua cabeça é terça-feira às duas da tarde). Só que isso implica em ter de trabalhar num domingo, num feriado, e pouco a pouco desviar-se do schedule das pessoas organizadas com quem você se relaciona – o risco de cair em um autismo social (o que, para um escritor, mais solitária das ocupações, é altíssimo).

Para combater o pijamismo, descobri o caramujismo. É acordar, tomar banho e vestir-se para o trabalho, colocar a mochila com laptop, livros e papéis nas costas, pegar a bike e sair de casa – mas, a cada dia, o trabalho é em um endereço diferente. Há cada vez mais cafés em São Paulo que abrem seu wi-fi para a conexão dos trabalhadores ambulantes: durante a tarde, esses espaços ficam vazios, então é jogo deixar os frilas ocupando as mesas, mesmo que só paguem um único café o dia todo.

Este caramujo indica, na Vila Madalena, os cafés do Espaço Cult, N’O Café, Ekoa e DeliParis, e na região da rua Augusta, o Urbe e o Espaço Unibanco, além da rede de Livrarias da Vila e Cultura espalhadas pelo país. Há tentações: os prazeres do açúcar, da cafeína, da rua, os amigos a interromperem seu trabalho. Para os frilas com déficit de atenção, caso deste caramujo, um risco sério de colocar o prazo em perigo. Por isso é que, fazendo um upgrade no caramujismo, muitos frilas aderem a um dos diversos planos de coworking – como Las Magrelas, The Hub, Pto de Contato, Junto, em São Paulo, Nitis Office, no Rio de Janeiro, Nós, em Porto Alegre, Smartmob, em Florianópolis, e muitos outros. Esses espaços têm todo tipo de plano para quem passa pouco ou muito tempo, com um fixo razoável para as despesas com comunicação – e com a vantagem de, no cafezinho do corner, conhecer pessoas que talvez você não conseguisse acessar quando estava com a bunda aparafusada na cadeira da firma.

Outra opção é o caramujo se juntar a seus iguais e rachar uma casa para levantar um escritório. Sai mais barato, e pode ser um espaço importante depois de tanto tempo de solidão na Estação Frilândia: uma hora baixa pesada a vontade da velha e boa conversa fiada, olho no olho, de onde saem tantas ideias. Bem, talvez nem sempre… Quando a cultura da interrupção volta a cercar os espaços do frila, ele pode lançar mão de sua arma secreta: o headphone. (A trilha deste artigo – iniciado em uma livraria da Vila Madalena, prosseguido em um café da Augusta e finalizado em uma padaria de Pinheiros, interrompido por quatro amigos e uma sessão de cinema – foi toda a discografia do grupo escocês de pós-rock Mogwai.)

Vale a pena? Juntando todas as minhas passagens na frilândia, entre um e outro emprego fixo em redações, conto cinco anos. Daqui, já dá pra afirmar: nunca trabalhei tanto, nunca foi tão emocionante – e assustador – do que na época em que batia cartão. Nunca foi tão assustador, também; sobre isso, sugiro a leitura deste artigo do Gustavo Mini, em que ele diz: “é energizante olharem pra você com admiração por ter ‘pedido demissão e perseguido seu sonho’, mas você pode se sentir um trapaceiro porque suas fragilidades e inseguranças brotam com tanta intensidade quanto seu entusiasmo de ter feito uma opção ainda pouco usual“. Por outro lado, eu também nunca faturei e viajei tanto, jamais conheci tanta gente, e, por certo, venho me divertindo bem mais do que nos corredores da minha boa e velha firma. Sempre, claro, usando o fio dental em seu devido lugar.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

11 pensamentos

  1. Parabens o artigo.
    Tenho a empresa, mas as vezes tenho a mesma impressao do que escreveu, a situacao nao e muito diferente de “frila”.
    Realmente, nao depende do espaco, ambiente, depende de nossa mente.
    Thai – Gooc Ecosandals.

  2. poo, Bressane, você é um cara forjado nas melhores redações, com contatos mil. como é que um cara recém-cuspido de uma redação de economia em declínio consegue montar uma carta de clientes? o que recomenda? fazer um plano de comunicação e vender o peixe nas agências? levantar umas matérias supimpas e vender para as redações?

    1. Cara, contato não é tudo. O que conta mesmo são pautas originais e um excelente texto. E persistência, lógico. Projetos paralelos também ajudam a sacudir o marasmo e tirar o peso de se sentir paradão. O que não pode é ficar sem fazer nada. A maior parte das matérias que emplaquei – incluindo esta – eram pautas minhas. Dica: tem poucos frilas na praça com pautas realmente criativas.
      Sorte ae, abraço
      RB

  3. Como o amigo acima falou… “Que delicia de texto”
    Vontade de ir rumo à estação Frilândia e montar uma barraquinha por lá… (coragem homem!!!!) Quem sabem mais adiante não encontro uma gordinha bamboleando na minha frente.

    um abraço

  4. Muito bom o texto, mas eu queria uma dica, para quem não é frila, aliás, não é nem jornalista. Como escrever mais claro? Pode indicar algum manual (vale a pena ler um manual de redação, de algum jornal, por exemplo)? Digo isso porque até para dar uma opinião escrita com criatividade é preciso ser claro, mas como uniformizar essa clareza? Abraço, grande blog!

    1. Vinicius, pela sua carta já dá pra ver que você escreve de forma clara. Eu não acredito em manuais; prefiro ler coisa boa, Machado de Assis, Philip Roth, Italo Calvino, Roberto Bolaño, Ray Bradbury [aliás seu Zen e a Arte da Escrita tem umas dicas boas]. Obrigado pela leitura,
      abraço
      RB

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