Um vinho com Samico


Samico na cozinha de seu sobrado, em Olinda

Dono de uma arte extremamente pessoal, de contornos misteriosos, Gilvan Samico é o maior gravador brasileiro vivo. Mas só agora, aos 83 anos, o retraído pernambucano ganha um livro em que se revelam sua vida e obra singulares. Passamos uma tarde com o mestre em Olinda para a revista Personnalité e o resultado é este

Samico levanta um martelo e requisita meu smartphone: “Me dê essa desgraça, homem, me dê por favor, vou acabar com seu sofrimento!“, ordena. E solta uma gargalhada profunda: era a enésima vez que o aparelho desligava sozinho, interrompendo nossa conversa nele gravada. O smart Samico não tem sequer e-mail, detesta computador e só fala ao telefone amarrado. “Sou arcaico“, orgulha-se. Quando a reportagem bateu à sua porta – um sobrado de 300 anos vizinho ao Mosteiro de São Bento, em Olinda, Pernambuco –, esperava encontrar um ermitão. Relatava-se que o lendário gravador é muito tímido, não gosta de dar entrevistas e mal fala com a própria mulher. Quase tudo verdade, como o leitor saberá à frente.

Porém, talvez mais à vontade pelo fato de conhecer a fotógrafa Lia Lubambo desde “pirraia“, como dizem em pernambuquês, Samico abriu-se. A começar pela oficina em seu quintal, onde plaina e lixa as madeiras que usará em suas obras – ora reunidas, pela primeira vez em seus 83 anos e 60 de carreira, na classuda edição Samico (editora Bem-Te-Vi).

Está vendo essa madeira? É amarelo-cetim. Quase todas as matrizes são nela“, descreve, enquanto abotoa a camisa branca. Ele veste bermuda em tecido cru – e crocs cinzentos. “Pequiá-marfim eu também usava, só que entrou em extinção, só achei esse resto aqui num armazém, com prego e rachadura. Elas vêm da Amazônia. Só que agora o amarelo-cetim também entrou em extinção… Menina, vai cair daí!“, adverte a fotógrafa Lia, equilibrada num pé só sobre um degrau. “Rapaz… é muita muriçoca, né? Desculpe“, diz, estapeando-se, à caça dos terríveis mosquitinhos dos vastos quintais de Olinda.

'Constelação da Serpente', Samico

Samico também se orgulha de demonstrar: detém o controle total de sua produção. O processo passa pela invenção de enormes máquinas de impressão e dos próprios instrumentos (como uma goiva que não deixa que o fio da madeira enrole e encubra o desenho enquanto a superfície da placa é cortada) até a mistura da tinta (com pouco óleo, para aderir foscamente ao papel). Vai também da escolha e limpeza da madeira, passando pela ilustração – uma gravura pode resultar de cem desenhos diferentes, e cada desenho leva uns 20 dias –, à lenta aplicação das goivas e dos buris aos veios da peça; segue-se o tingimento de áreas da matriz, e, afinal, a gravação sobre uma folha de papel japonês de inalteráveis 1m por 60 cm.

Cada matriz multiplica-se em 120 exemplares, mais as 12 cópias do artista. O processo demora um ano, ou vários anos: o próprio Samico imprime exemplar por exemplar, nem todos de uma vez. Samico, que detesta a palavra “cópia”, diz que todo exemplar é único, tal como único é o preço para todas as obras – vendidas por ele mesmo: o artista é avesso a marchands ou galerias. Assim tem vivido – “e muito bem” – nos últimos 40 anos.

Em sua impressionante sala, ornada com dezenas de obras suas, incluindo as raras pinturas, Samico conta que mora nesta casa desde 1965; no século XVII, o sobrado de três andares teria sido erguido por João Fernandes Vieira, herói da Restauração Pernambucana que expulsou os holandeses – segundo o gravador, “um herói sem nenhum caráter“. Começou a gostar de desenho aos 17 anos, quando achou um caderno com ilustrações de estrelas de Hollywood e teve o súbito desejo de copiar aquilo tudo.

Entrada da casa de Samico, ao lado do Mosteiro de S. Bento

Mais tarde, ao vencer um prêmio no XVI Salão do Museu do Estado de Pernambuco, foi a São Paulo estudar com o gravador paulista Lívio Abramo; na fila de pegar o ita (embarcação que fazia a rota Nordeste-Sudeste), conheceu um de seus raros pares, Francisco Brennand – homem tão esquivo e de obra tão exclusiva quanto Samico. Brennand lhe deu dicas preciosas, que lhe possibilitaram mais tarde viver sete anos no Rio de Janeiro, onde trabalhou no escritório de Aluísio Magalhães, um dos maiores designers gráficos brasileiros. No Rio, fez amizade com os mestres gravadores Osvaldo Goeldi e Iberê Camargo. Afastava, entanto, a identificação de sua arte com a política; ao contrário de colegas que combatiam a ditadura e propunham uma arte participativa, preferiu uma “arte atemporal” – até hoje, define-se como “apolítico“.

Mas foi um encontro com Ariano Suassuna que determinou o norte de sua obra. Procurado por Samico, o paraibano, autor de O Auto da Compadecida, já estabelecido como um dos grandes do teatro nacional, sugeriu ao gravador que explorasse o universo da xilogravura sertaneja. “Foi um coice de mula!“, ele lembra. E culminou com sua entrada no Movimento Armorial – de que também participaram o artista plástico Brennand, o escritor Raimundo Carrero e o Quinteto Armorial.

A iniciativa de Suassuna previa um tratamento erudito e altamente estetizante da cultura popular nordestina – em especial a literatura de cordel, que se tornou fonte primordial de Samico, ao lado de histórias bíblicas e lendas indígenas. Em 1965, já estabelecido em Olinda e casado com a dançarina e taróloga Célida, filhos Marcelo e Luciana a tiracolo, faturou mais prêmios e rumou para a Espanha, onde passou alguns anos tristes; com banzo de Pernambuco e descontente com o expressionismo onipresente no cenário da gravura, não fez uma única peça. Mas a temporada rendeu amizades com artistas catalãos e com o conterrâneo João Cabral de Melo Neto – o poeta era cônsul em Barcelona. “Tomamos um porre histórico, uma vez. Mas nossa conversa era complicada… o camarada João, como eu, não era muito de falar“, lembra.

Detalhe de um dos raros óleos de Samico

Nos anos 1970, a arte de Samico foi responsável por “dar a cara” ao Movimento Armorial na medida em que tornava sua arte cada vez mais direta e misteriosa. Já em 1966, com O Banho de Suzana (baseado no primeiro conto de detetive da história, narrado no Livro de Daniel), Samico dinamita perspectiva, volume e profundidade. Passa a aplicar figuras em um único plano, à maneira egípcia, ao mesmo tempo em que introduz espelhismos, duplos e signos religiosos e pagãos que se tornarão sua marca. Reduz cenas e personagens ao contorno, elimina detalhes, busca a síntese, refuta qualquer naturalismo ou referência local.

Muitos símbolos são recorrentes à obsessão: pássaros, ondas, flechas, barcos, círculos, estrelas de Lampião, dragões, leões, árvores, peixes, bois, luas, flores – e serpentes. “Sabe que uma vez colocaram o Roberto Carlos num hotel aqui“, conta Samico, “e quando ele viu uma obra minha no quarto mandou tirar? O homem tem medo de cobra!“, gargalha. O Rei pode não gostar, mas Samico adquiriu status internacional a ponto de ser convidado para duas Bienais de Veneza e ter suas obras no acervo do MoMA de Nova York.

As interpretações para as fascinantes obras de Samico são inúmeras – quase sempre insuficientes. “As soluções plásticas fornecem as metáforas mais diversas“, escreve o crítico Weydson Barros Leal, autor do livro sobre Samico. “As figuras, inexplicáveis à luz da lógica, fazem com que perdamos o contato com toda fabulação conhecida de onde a ideia possa ter partido, e chegamos a uma mitologia muito particular.” Embora exista indicação de drama ou narrativa – motivada pelas severas divisões do retângulo –, não há tempo ou espaço evidentes. Talvez pela ameaçadora presença do preto e dos contrastes violentos entre esparsas áreas coloridas, estes estranhos diagramas, mapas e calendários estão longe de ser decorativos: habita esses espaços e personagens uma imóvel perturbação.

A Ilha, xilogravura de Samico

Para o crítico Jacob Klintowitz, Samico é um inventor de mitos. “O artista vai ao inconsciente coletivo, onde navegam os arquétipos, e, ali, pesca imagens imantadas de complexas significações, que reelabora a partir de suas referências particulares“, afirma. O crítico e artista Frederico Morais analisa: “Samico faz uma operação de limpeza do espaço gráfico, simultaneamente à introdução de um tempo fora do tempo, mitomágico. A figura humana é um logotipo, a natureza é reduzida à estrutura. É um mundo lavado, descontaminado, que encaramos como que pela primeira vez”.

Para Morais, a extrema economia criativa, que faz com que Samico só produza uma obra por ano, indica a vontade de realizar uma gravura impecável. “Na técnica, tudo é transparente: não há truques, macetes. A linguagem é concisa. A narrativa combina rigorosa simetria e compartimentação espacial com uma temporalidade específica”, diz. Morais aponta que, ao dividir a gravura em “compartimentos”, onde figuram guerreiros, mulheres, pássaros, serpentes, bandeiras, cometas e rios, o artista os “prende”, como se em tempos congelados e interconectados. O que cria no espectador a encantadora sensação de estar diante de cenas que aconteceram, acontecem e acontecerão para sempre.

Tudo muito bonito, só que Samico recusa explicações. Religioso? É cético. Transe? Nada, só existe muito trabalho. Psicanálise? Jamais. “Tenho aí um livro de Jung – mas sou um homem de ação; ler me dá vontade de dormir!“, confessa. Mostra um desenho em que está trabalhando. “Esse projeto se chama A Agonia de Ícaro. Houve uma exposição no Rio da obra de Tom Jobim e fui convidado a fazer uma pintura em cima de uma das composições dele, O Boto. O quadro foi vendido mas a ideia ficou: por que não fazer uma gravura sobre isso? Aí, de vez em quando vêm… vêm umas coisas que a gente não sabe. Por que é que de repente me deu vontade de botar um Ícaro aí? De repente não me interessava mais falar em boto e sereia, e sim no deslumbramento de Ícaro. Aí vou apagando, colocando coisas em cima… nunca parto de um esquema previamente definido“, diz.

Detalhe da inédita 'A agonia de Ícaro'

E por que repetir os elementos? “Às vezes me pergunto: me repito? Mas isso é parte de minha caligrafia – a lua, a serpente, o pássaro, a estrela. Tenho que me virar com os mesmos elementos. Sou só um encantador de serpentes, e cada dia fica mais difícil domesticá-las“, afirma Samico – que acredita ainda não ter chegado à obra-prima. “Quero morrer trabalhando nas minhas doidices“, desafia. Perguntado sobre se acredita em Deus e na vida após a morte, galhofa: “Você está forçando a barra com essas perguntas!“, ri, convidando a reportagem para um café.

Enquanto negocia pelo telefone com uma galerista de São Paulo, que organiza uma exposição em março – a colecionadora Vilma Eid, da Galeria Estação –, Samico explica os motivos da súbita loquacidade. “Uma vez o Rubem Braga veio aqui fazer uma entrevista para a TV, e de repente eu não conseguia responder suas perguntas. Como ele também era ruim de conversa, ficamos os dois nos encarando em silêncio. Acho que foi daí que veio essa fama“, conta. A mulher Célida, voltando da aula de yoga e dança criativa – aos 82, é a mais longeva professora em Pernambuco, sem contar que lê tarô como ninguém – confessa que, vinte anos atrás, ele mal falava com ela. “E casal lá precisa falar?“, ri. Enfim, Samico indica: a culpa é do rádio. Das sessões de radioterapia que fez ano passado, para curar um câncer na bexiga. “Depois do tratamento, acho que fiquei radioativo!“, brinca.

Por conta da saúde fragilizada e da obsessão com Ícaro, o artista diz que sai pouco, ao contrário de tempos atrás, quando descia as vielas de Olinda sem hora para voltar. E bebe, ainda? “É um convite? Você bebe o quê?“, levanta-se, indo buscar um vinho chileno. E mais uma garrafa viria. E mais causos, mais lendas por trás das obras. À despedida, ao som dos sinos do Mosteiro de São Bento, saímos certos de que, mesmo loquaz, Samico falou, nos enrolou e não revelou nada: mas deixou gravado na memória, com humor, seu mistério fora do tempo.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

5 pensamentos

  1. Além da circularidade, própria do tempo-histórico nordestino, tão bem captada pelo movimento Armorial, que se estendeu até o norte com Guerra-Peixe; há também uma similaridade com as mandalas orientais -que também não permitem a mera reprodução. Por causa dessa circularidade, diferente da linha reta que as cidades tracejam e que, ao não olhar para trás (como o faz o Anjo de Paul Klee,), não aprendem com o passado. Talvez por isso a obra de Samico seja mito, beba do vinho-mítico e crie mito. Circular em sua essência; assim como os mitos: intocáveis.
    Essas cobras picam, cuidado! rs.

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