
Colaboração em campo
Em tempo de Copa do Mundo, algumas lições do futebol para driblar os obstáculos do cotidiano. Na Vida Simples deste mês
“No futebol não tem surpresa“, falou Dunga a um mês da copa. “No futebol não tem surpresa”, a frase repercutia na minha cabeça. Era assim que o treinador da Seleção explicava o motivo para não introduzir os jovens atletas malabaristas do Santos em um time que joga junto há quase quatro anos, já tendo portanto um padrão definido de jogo. Como escrevo do passado, não tenho como saber se Dunga ouviu a voz do povo e convocou Neymar e Ganso; mas isso não vem ao caso, e sim o significado desta frase tão bisonha quanto matar uma bola de canela. Me lembrei de outra frase famosa, esta de Oscar Niemeyer: “A linha reta não sonha“. Todo gol vem da curva surpresa, como num sonho, até aqueles gols mais esperados, como os de pênalti ou os feitos por Ronaldo Fenômeno depois de arrancada mortal (na época do Barcelona, por supuesto).
Quero, juro que quero acreditar que Dunga intencionou dizer que no futebol, depois de tudo ensaiado, milimetrado, calculado e combinado, as surpresas acontecem no modo automático. Afinal, o técnico representa uma Seleção pragmática que se convencionou chamar de Era Dunga. O time de 1994 que venceu uma Copa depois de 24 anos aliava, de um lado, a força de Dunga e Mauro Silva no meio-campo com os lampejos do craque Bebeto e a letalidade do fora de série Romário. Mesmo assim, fica difícil entender como um time que faturou o caneco com uma penalidade desperdiçada por Roberto Baggio na final do torneio poderia não ter contado com o acaso, o destino. Será que o Dunga acha que aquela bola fora italiana também havia sido prevista na prancheta do Parreira?
“Provocar o inesperado. Então, esperá-lo“, ensina o filósofo Paul Virilio. Talvez Dunga esteja sendo ainda mais filosófico em sua defesa da falta de surpresa. Sua crença no planejamento é tão grande que ele pretende, como o Matraga de “A hora e a vez“, conto de João Guimarães Rosa, “entrar no céu nem que seja a tiro“: torcer o destino até convencê-lo que sua idéia inflexível seja a correta, impingir aos adversários sua tese de maneira tão implacável que colher os louros da vitória pareça uma comprovação da lei de causa e efeito. Dunga é um apóstolo da verdade essencial do futebol: a colaboração, a idéia que o resultado final vai acontecer mediante a participação de todos – e se um falhar, outro irá cobri-lo em seu lugar.
Drible X Passe
Só compreendi a verdade fundamental do “colaboracionismo” ao assistir às partidas de futebol de Lorenzo, meu filho de sete anos. Quem já viu uma pelada entre moleques – mesmo que apitada numa escolinha de futebol –, sabe que não existe esquema tático que vença a gana alucinada de, ao menos, dar um chutinho na bola. Os primeiros jogos parecem uma praça cheia de pombos. Os figurinhas pulam na redonda como pássaros mergulhando sobre um saco de milho. Depois de um tempo, se cansam. Alguns se desinteressam do jogo; outros continuam insistindo em se atirar na bola; e há aqueles que ficam por perto, rondando, esperando a chance de pegar uma jogada espirrada. Com esses é que mora o jogo: aprenderam que, sozinhos, não vão conseguir buscar a bola no meio e levá-la até o gol.
Entende-se muito sobre o caráter humano assistindo a um jogo de futebol infantil. É possível distinguir toda a variedade de tipos em seu berço. Com sete anos já se adivinha a personalidade que as figurinhas terão ao longo da vida – os obedientes, os mascarados, os leais, os orgulhosos, os egoístas, os generosos, os alienados. Havia um menino que sempre chorava porque não lhe passavam a bola – mesmo que fizessem o gol: “Mas era a minha vez de fazer!”, chiava o lourinho, que logo foi apelidado de “Reclamão”. Dois irmãos meio doidões davam as costas ao salseiro que se plantava na pequena área para exibir um ao outro as formigas e besouros que haviam colhido no gramado. Um cabeludinho fominha não soltava a bola, era derrubado e se jogava espetacularmente, pedindo falta. Um magrela disparava tipo trombadinha pra cima do jogador adversário, até lhe ganhar a bola. Um gordote parecendo um tanque de guerra levava tudo pela frente, bola, grama, jogadores de seu time e do outro, e, na hora de finalizar, furava e ia descontar chutando a canela do professor. Havia os que se irritavam e saíam do campo para resmungar com a babá , sendo imediatamente consolados. E também aqueles que faziam exatamente o que o professor fazia, jamais tentando um improviso.
Enquanto isso, havia aqueles que tomavam cascudos mas seguiam em frente, e aqueles que, na hora de fazer o gol, cara a cara com o goleiro, preferiam passar a bola para o companheiro que surgia de trás. Ao mesmo tempo em que sketches inteiros dos Trapalhões se sucediam, de repente fulguravam jogadas magistrais. Era óbvio que essas jogadas aconteciam no momento emocionante em que aqueles mini-jogadores de Playstation compreendiam estar participando de uma criação coletiva. Daí talvez o encanto do futebol, um esporte em que o individualismo não exclui a solidariedade, e vice-versa. Mas, mesmo que existam jogadores excepcionais, que parecem viver em um campo só deles, nenhum Messi, nenhum Kaká, nenhum Cristiano, nenhum jogador pode ser maior do que o jogo. Depois de uns dois meses na escolinha, Lorenzo, que até então só havia jogado com o perna-de-pau que vos tecla, sobre quem adorava impor o drible da vaca (em que o jogador dá um passe longo para si mesmo e vai buscar a bola do outro lado do adversário, especialidade de velocistas como Romário, Ronaldinho Gaúcho ou Neymar), ouviu minha pergunta: “O que você acha mais importante, o passe ou o drible?” Fiquei mais orgulhoso do que quando ele marcava um gol ao ouvir: “O passe, lógico. Sem passe não tem gol, pai. Que pergunta besta!“.
Tostão, um dos maiores atacantes da história do futebol, hoje um comentarista de rara elegância, na Copa de 1970 mudou seu estilo de atuar no Cruzeiro: jogava mais para abrir espaços para Pelé e Jairzinho. “Quando jogava, gostava mais de dar um belo e eficiente passe, que resultasse em gol, que envolver o adversário com um lúdico drible ou mesmo fazer um gol“, escreve Tostão no número 1 da revista Serrote. “Além de ser fundamental para se chegar ao gol, o passe correto, por manter a posse de bola, também é importante para a defesa, pois evita o ataque do adversário. […] Assim como o gol confirma a eficiência de um time, e o drible simboliza a individualidade e a improvisação, o passe representa o futebol coletivo, a solidariedade, a organização e a união de uma equipe.”
Louco, o gênio da digressão
Claro que existem equipes que trabalham somente para que um genial integrante se sobressaia – me lembro, por exemplo, do time do Corinthians campeão brasileiro de 1990, em que o camisa 10 Neto era uma ilha de genialidade rodeada de operários, esforçados e cabeças-de-bagre por todos os lados. Mas, naquelas equipes em que reúnem os maiores talentos individuais, o coletivo sempre acaba prevalecendo – é o caso da Seleção de 1970, a única da história que reuniu 5 camisas 10 até hoje (Pelé, Gérson, Rivellino, Tostão e Jairzinho).
A tese de que os valores individuais geram o melhor coletivo, porém, pode ser facilmente batida quando se lembra de outra Seleção que encantou o mundo: a de 1982, que juntava Zico, Sócrates, Éder, Falcão, Cerezzo, Júnior, Serginho etc sob a batuta do “futebol-arte” conforme pensado pelo mestre Telê Santana. Até então, era um time invencível, que aliava exibições individuais brilhantes à manutenção da posse de bola como não se via desde o time holandês de 1974, que propunha o “futebol total”, em que todos eram atacantes e defensores e nenhum jogador guardava posição. Até que veio o infame jogo com a Itália no estádio de Sarriá – e o resto é história. O que teria faltado para superar a “surpresa” chamada Paolo Rossi? Talvez, se jogássemos mais nove vezes, ganharíamos todas; em todas as outras realidades alternativas, o Brasil seria logicamente campeão, como não se cansam de dizer todos os sábios de botecos e mesas-redonda do país. Ou talvez tenha faltando àquela seleção um fator relâmpago – como o gol de Gaúcho contra a Inglaterra em 2002, quando o camisa 11 tentou lançar uma bola na área e ela acabou entrando no ângulo como se tivesse ganhado uma mãozinha invisível.
Lembro de outra equipe do Corinthians, este um péssimo time, tão ruim que era chamado de “Faz-me rir” nos anos 60 (sozinho Pelé fez 50 gols no Timão). Por alguns meses circulou entre os reservas um jogador cujo apelido era Louco. Como o personagem de Mauricio de Sousa, Louco operava sob regras muito próprias. Quando o alvinegro paulistano estava perdendo , o técnico mandava o Louco para o aquecimento. Faltando dez minutos, Louco entrava em campo exibindo todo o seu vasto repertório de dribles-da-vaca, pedaladas, elásticos, chapéus, chilenas, roletas-russas. A torcida o amava porque ele desestabilizava o adversário puxando toda a marcação para si, abrindo espaço para que os outros jogadores pudessem empatar a partida no finalzinho – além de criar um espaço mágico dentro da tensão da peleja. O problema é que, quase sempre, quando o Louco detinha a bola e chegava à pequena área, sua delirante vocação para o drible se interpunha entre jogador e objetivo… e ele resolvia voltar a driblar para trás, enrolando-se entre goleiros e zagueiros. Até que um atacante alvinegro lhe roubasse a bola para fazer o gol.
O Louco era o anti-Tostão: autista brilhante, era um gênio da digressão, fazia questão de prolongar a história para além de seu ponto final, instaurava a dúvida no primado da objetividade, preferia o circo ao resultado. Era tão inútil quanto uma borboleta morando num grampeador. Era como se Didi Mocó caísse numa arena de gladiadores. Não raro sua entrada desconcentrava o próprio Corinthians, que, tão preocupado em fazer com que ele concluísse a jogada, acabava abrindo o flanco para no contra-ataque tomar mais um gol do oponente. Como todos os que se insurgem contra as regras do jogo, Louco teve carreira curta, foi pulando de time em time até sumir da série A, da série B… talvez tenha virado um poeta, talvez tenha ido tratar de esquizofrenia numa clínica psiquiátrica, talvez tenha simplesmente se tornado aquele fofucho de meia-idade que monopoliza os amendoins da mesa e não deixa ninguém comer.
No momento em que esta revista chega às suas mãos, este texto passou por muitas pessoas até se tornar uma matéria que faça sentido. Logo mais a Seleção entra em campo para demonstrar que, através do colaboracionismo e comprometimento total, nenhum obstáculo é intransponível. Daqui do passado de onde escrevo, torço para que Dunga esteja certo – e Garrincha, errado. Como se sabe, o camisa 7, que em 1962 ganhou a Copa praticamente sozinho, costumava ouvir as preleções do treinador muito sério: “Vocês fazem isso, eles vão fazer aquilo, aí vocês fazem isso etc etc”. Até que um dia Garrincha mandou: “Mas vocês já combinaram o isso com o João?”. “João” era o nome que o mitológico ponta-direita dava aos zagueiros oponentes. Aqueles que, no entendimento de Dunga, já devem ter sido previstos para que qualquer surpresa seja anulada.
No fundo, torço para os jogadores esqueçam Dunga e o surpreendam com seu talento conjunto. Quero ver Dunga traído pela arte que ousou controlar. Porque o ideal do colaboracionismo não é o jogo em si – mas o espetáculo criado por seu funcionamento, como uma máquina que funciona sozinha, preocupada em somente tocar a bola para a frente, para a frente, roubando ao destino a parte devida a todo artista. Como diz o aviador e escritor James Salter: “Os poetas, escritores, os sábios e vozes de seu tempo, formam um coro. O hino que partilham é o mesmo: os grandes e pequenos estão juntos, o belo vive, o resto morre, e tudo é absurdo, exceto honra, amor e o pouco que é conhecido pelo coração”.