
Robôs, ciborgues, andróides e inteligências artificiais na literatura e no cinema cada vez mais comprovam: ser humano já era
O espelho é o primeiro robô da história. Bem antes de Freud e do Facebook, quando se pegou mirando na lâmina de um lago a idéia de um outro eu, o narcisopiteco mal caraminholava direito – mas já caraminholaria como seria lindo ter outro dele pra fazer o serviço sujo de matar um javali sem ser comido por tigres, um outro para guardar a comida, um outro para resgatar a mulher caso ela desse pitaco aos pitecos vizinhos. Se o sonho, como sugere Jorge Luis Borges, é a primeira ficção do homem, o espelho é a lâmina que divide o ser natural do ser cultural, o ser incriado do ser inventado. No ato de forjar uma representação de si mesmo, o homem lhe empresta a ambição de anjo ou demônio que funcione a seu bel prazer. Só que nem sempre essa representação fica sob controle. E quando o ser inventado dá tilt, o ser incriado dá pau. Se o homem é apaixonado pelo apocalipse, a idéia que um ser inventado por ele venha a destruí-lo faz com que de tempos em tempos apareça uma nova narrativa para a velha história do medroso Cronos devorando seus filhos.
Esse outro que contém o poder do um, feito à imagem e semelhança, ensinando o homem a brincar de deus, manifestou-se em diversas formas. Das pinturas rupestres aos moai da ilha de Páscoa, as representações ficcionais do humano eram usadas para sua proteção. Na chave do mito, dizem as lendas que uma civilização na ilha de Creta tinha um gigante de bronze chamado Talos, que patrulhava o litoral para evitar a aproximação do inimigo. Na Odisséia de Homero, Ulisses, ou Odisseu, luta contra Talos, descobrindo seu ponto fraco: um tampão na perna por onde escorria o óleo que fazia o gigante se mover. Já no livro 18 da Ilíada ficamos sabendo que Hefesto, o deus grego das forjas, o Vulcano dos romanos, tinha como ajudantes “duas donzelas feitas de ouro que são exatamente como moças vivas; podem pensar, falar e usar os músculos; podem fiar e tecer…”.
Mas o primeiro robô consistente remonta ao século XVII. “Segundo perdidas fórmulas da cabala, um rabino construiu do barro um homem artificial – o Golem – para que este tangesse os sinos da sinagoga e fizesse os trabalhos pesados”, conta o austríaco Gustav Meyrink no romance O Golem, de 1915. “Não era um homem como os outros; mal o animava uma vida apagada e vegetativa. Esta durava até a noite e devia seu poder ao influxo de uma inscrição mágica que colocavam atrás de seus dentes e que atraía as livres forças siderais do universo. Uma tarde, antes da oração da noite, o rabino esqueceu de retirar o selo da boca do Golem e este caiu em frenesi, correu pelas ruelas escuras e destroçou aqueles que se puseram em sua frente. O rabino por fim o deteve e quebrou o selo que o animava. A criatura caiu sem vida. Só restou a raquítica figura de barro que ainda hoje está à mostra na sinagoga de Praga.” A palavra escrita na testa do Golem era “emet”, que significa “verdade” em hebraico; sem a partícula “e”, sobra “met”, “morto”.
O Golem teria sido criado pelo rabino Loew ben Bezalel, o Maharal, um dos filósofos mais proeminentes da Praga do século 16, para defender o gueto judeu dos ataques antisemitas. Foi interpretado por analistas religiosos como manifestação física da psique coletiva dos habitantes do bairro – o “Eu” do gueto. Além do romance popular de Gustav Meyrink, várias outras obras foram inspiradas pela lenda. N’As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay, o norte-americano Michael Chabon faz uma releitura sensacional do tema. Os quadrinistas Kavalier e Clay criam personagens que desafiam os nazistas para defender o mundo livre – assim como, na “vida real”, o escritor norte-americano Jerry Siegel e o artista canadense Simon Schuster, ambos judeus, inventaram o Superman. O nome original de Clark Kent, Kal-El, significa “a voz de Deus” em hebraico. Não deixa de ser curioso notar como um ser inventado pelo imaginário medieval judeu tenha virado o símbolo máximo dos Estados Unidos como guardiães da Terra. Paradoxalmente, o Super-Homem também é um conceito filosófico de Nietzsche adotado pelos seguidores de Hitler. Significativo ainda que a primeira versão em cinema do mito, Der Golem, produção de 1920 dirigida por Paul Wagener, terá suas cópias destruídas pelo nazismo – embora sejam filmes abertamente anti-semitas.
Bem antes do Homem de Aço, o primeiro Golem feito de carne surge em 1818, com o Frankenstein de Mary Shelley. Doutor Victor Frankenstein, o “moderno Prometeu”, combinou a partir de pedaços de cadáveres humanos um ser animado por uma descarga brutal de eletricidade. Como se sabe, o monstrengo foi rejeitado pelo criador, o que originou sua destrambelhada sanha assassina. A gótica história criada pela novinha Mary Shelley deu início a um festival de interpretações e analogias. A mais moralista ensina que a pena para quem brinca de deus é a autodestruição. Maldito seja todo cientista que ambiciona desvendar os mistérios da vida; “o sonho da razão produz monstros”, ecoaria um contemporâneo, o pintor espanhol Francisco Goya. Se Goya se referia aos desastres que a guerra napoleônica e iluminista impôs à Espanha católica, Mary Shelley temia que a fé na máquina trazida pela Revolução Industrial inglesa acabasse por sufocar a humanidade. Entretanto, a invenção de homens nem sempre foi restrita ao campo da técnica; em O mago, Somerset Maughan cria um personagem alquimista – inspirado no ocultista Aleister Crowley – que quer produzir homúnculos a partir do sangue de moças virgens. Magia e horror, ciência e amoralidade se encontrarão de novo na série de filmes Homunculus, produzidos na Alemanha dos anos 10, que pressagiam as piores experiências do doutor Adolph Mengele.
O outro ou o outro
O duplo do homem e seu filho duplicado são temas distintos na história da arte, porém se encontram em numerosas encruzilhadas. Uma delas é a obra de Edgar Allan Poe, especialmente os contos de Histórias fantásticas. Em “O jogador de xadrez de Maelzel” Poe reporta o caso de um boneco, o Autômato, que jogava xadrez de modo admirável e ganhar a maioria das partidas que disputava – bem antes do Deep Blue da IBM vencer o campeão Garry Kasparov. O dono da engenhoca, Maelzel, “sugeria aos espectadores a idéia falsa de que no Autômato apenas existia um puro mecanismo”. Entretanto, depois de longa análise o escritor conclui que havia um anão enxadrista dentro do Autômato… Com justificativa menos broxante, Poe escreve uma obra-prima da literatura fantástica, “William Wilson”, em que o narrador homônimo descreve sua vida de excessos desde a infância, quando conhece um menino que se torna seu melhor amigo – por coincidência, de mesmo nome. O outro WW tenta a todo custo tirar seu amigo de enrascadas, mas este submerge na sordidez e se recusa a ser “salvo”. A história termina em um sinistro baile de máscaras – a duplicação do homem quase sempre termina em danação.
Para entender como a super-reprodução humana é marcada por uma sombra, é interessante investigar a origem da palavra robô. Como o Golem, apareceu em Praga, na peça R.U.R. (Rossumovi Univerzální Roboti), de Karel Cápek. “Robota” foi um termo inventado pelo irmão de Cápek; quer dizer “trabalho escravo”. Eembora sua influência seja avassaladora e ele tenha sido contemporâneo do maior autor nascido na República Checa – Franz Kafka –, Cápek é pouco conhecido; no Brasil, só tem traduzida uma divertida coletânea de contos, Histórias apócrifas. Na peça R.U.R., é a primeira vez que tem lugar o uso de humanóides artificiais, baseados na biotecnologia. Homem libertário, de humor mordaz e visão política aguçada, anti-consumista e combativo em relação às corporações, Cápek era considerado o inimigo público número 2 pela Gestapo; como tampouco era simpático ao comunismo, depois da guerra sua obra caiu no ostracismo. Foi “resgatado” pelo russo-americano Isaac Asimov e influenciou escritores de ficção especulativa mas acentuada veia satírica, como Kurt Vonnegut e Margaret Atwood.
Asimov pegou os robôs-escravos de Cápek e lhes deu consistência psicológica e metafísica. No clássico Eu, robô, criou as Três Leis da Robótica, que dirigem o pensamento de toda inteligência artificial: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal; Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a Primeira Lei; Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira e Segunda Leis. Nos contos de Eu, robô há desde seres primários que atuam como babás e ganham o afeto de uma menina solitária até cérebros poderosos que entram em curto ao proteger humanos uns dos outros, passando por presidentes suspeitos de pertencerem à raça eletrônica. Sobre eles paira a sombra da inveja da humanidade – o mesmo sentimento de rejeição e busca de compreensão do criador, sugeridos por Mary Shelley. A ambiguidade foi levada ao limite em alguns livros cujas adaptações ao cinema tornaram o tema um assunto tão corriqueiro quanto palpites de política, novela e futebol.
Desde o início, o cinema, conforme apontou o filósofo Walter Benjamin em A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, correspondeu à “aspiração legítima do homem moderno de ver-se reproduzido” e foi um meio ligado à utopia e à investigação do futuro. O precursor Metropolis (1928), de Fritz Lang, já é dominado pelo mito dos robôs (na verdade uma roboa), demonstrando o quanto as utopias modernistas e o fascínio pela tecnologia foram maculadas por paixões e temores político-ideológicos, num século sacudido por revoluções, guerras e todo tipo de regime totalitário. Mas não falemos das versões ao cinema de Eu, robô, cuja volúpia por ação deturpa o original de Asimov, ou de argumentos excelentes porém não explorados em seu potencial, como as trilogias Exterminador do futuro e Matrix. E sim de filmes como O caçador de andróides ou 2001 – Uma odisséia no espaço. O primeiro, baseado em Sonharão os andróides com ovelhas elétricas?, romance de Philip K. Dick; o segundo, um romance de Arthur C. Clarke inspirado no roteiro do filme de Stanley Kubrick. Se no primeiro existe a figura do ciborgue, o andróide Nexus 6 que funde a biotecnologia com a mais alta expressão da eletrônica que mata o seu criador, no segundo o corpo da máquina resume-se a um olho que tudo vê, a sinistra inteligência artificial HAL 9000. Ambas as criaturas estão em confronto aberto com a humanidade – e, pela primeira vez desde Frankenstein, têm a possibilidade concreta de triunfarem sobre o ser que os criou.
Nem sempre as inteligências artificiais são adversárias ao homem, no entanto. No recente e pouco visto Lunar, de Duncan Jones, um computador bem parecido com o HAL 9000 de 2001 é a principal reserva de ética humanista. O argumento: Sam Bell passa três anos no lado escuro da Lua, trabalhando para uma empresa que envia a energia necessária a uma Terra depauperada pela ganância. Por habitar o lado escuro, não tem comunicação direta com o planeta. Seu único amigo é o simpático Gerty, uma inteligência artificial. A duas semanas de voltar à Terra, Sam Bell encontra um clone idêntico – que também crê ser Sam Bell. Mais não se conta deste belo e melancólico filme – mas observe-se que aqui surge a idéia de uma tecnologia que protege a humanidade dos próprios homens. Em tempo de aquecimento global, é um conceito atraente: a humanidade não deu certo, deixemos o planeta para uma inteligência superior. A Singularidade – evento histórico em que a humanidade atravessará um estágio de colossal avanço tecnológico em curtíssimo espaço de tempo – está cada vez mais próxima. Escritores como Vernor Vinge e Ray Kurzweil falam da imortalidade do homem não mais em termos de ficção científica, mas como real possibilidade para os próximos cinquenta anos. Quando o primeiro upload da consciência de um indivíduo for feito para o HD de um corpo novo em folha, o que era o um passará a ser o outro. Então veremos face a face o que até então víamos através de um obscuro espelho. Se vamos gostar disso ou não, é outra história.
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*Originalmente publicado na Revista da Cultura de maio de 2010