Cuba não existe


Com Viagem ao crepúsculo, o jornalista cearense Samarone Lima faz um retrato emocionante – e sem concessões – da ilha fantasiada pela esquerda de todo o mundo. Resenhol pro Outlook de 13-3

Pensemos em Cuba e o gerador automático de chavões nos entrega charutos, rum, son, Ibrahim Ferrer, Ches Guevaras mirando o insondável, candomblé, mulatas sensacionais, Pedro Juan Gutiérrez, o eterno Fidel, os eternos carrões americanos estacionados nos anos 50. O gerador automático de chavões não entrega banheiros atulhados de gêneros alimentícios escondidos para venda no mercado negro, lan houses funcionando subrepticiamente nos fundos dos fundos dos fundos de uma residência familiar, “amigos” dispostos a depenar um gringo ao menor deslize, o dedoduro pronto a te entregar a qualquer movimento estranho que você faça – como, por exemplo, reclamar em voz alta que não aguenta mais viver sob uma ditadura, o que rende, por baixo, dez anos de xadrez. O gerador automático de chavões foi desligado pelo jornalista Samarone Lima ao escrever Viagem ao crepúsculo (Casa das Musas, 231 págs.), misto de memória e reportagem que, com emoção contida e olho preciso, concretiza-se em um dos mais impactantes retratos da ilha caribenha já publicados no país.

Com passagem por veículos como a revista Veja ou o Jornal do Commercio, ganhador do Prêmio Esso em 2005, o professor Samarone é também autor de Clamor (Objetiva), em que narra a história de um grupo vitorioso de conspiradores formado pelo advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, a jornalista inglesa Jan Rocha, o pastor da Igreja Anglicana Jaime Wright e o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Barbudão ao estilo guevariano, formava nas fileiras dos que idealizam Cuba como o paraíso anti-EUA: “Sempre fui aquele velho militante de esquerda, com bandeira nos sinais, boca de urna, essa coisa toda. Na época em que ensinava na Universidade Católica, montei uma enorme boca de urna com meus alunos e ajudamos na primeira vitória de João Paulo à Prefeitura do Recife“, lembra o jornalista, hoje secretário particular do escritor Ariano Suassuna. As credenciais “vermelhas” são importantes para que o leitor saiba que não trata com um integrante da mesa do Manhattan Connection: nem o furibundo Diogo Mainardi seria tão contundente contra o regime cubano.

As convicções esquerdistas do cearense foram trituradas por uma viagem de um mês a Cuba em 2007, quando a Revolução completava 50 anos e Fidel Castro vivia seu último Ano Novo como comandante. Aproveitando que estava sem emprego mas tinha dólares guardados e contatos certeiros na ilha, o jornalista encarou o velho sonho: “Cuba chegou à minha vida como uma antiga amante que eu tinha desencontrado numa dessas esquinas descascadas“. Por questão de “limpeza ideológica“, sequer pesquisou a realidade do país: só encheu duas mochilas e partiu. A idéia era se hospedar em casa de cubanos – algo, em tese, proibido. Nunca pensou em fazer reportagem: registrava mentalmente o que lhe acontecia, sem entrevistas nem notas, escrevendo mais tarde de memória.

Trecho: negócio da China em Cuba

Sabe as geladeiras? O governo revolucionário criou uma Revolução Energética: o povo foi estimulado a trocar as geladeiras velhas, soviéticas, por máquinas novas, chinesas, que consumiriam mais energia. Todo mundo entrou nessa”, dizia Paco.
“Bem, não parece tão mal assim”, eu disse.
“Só que as soviéticas são feitas com o aço da Rússia, não quebram nunca. A nossa tinha 25 anos e nunca me deixou na mão. Todo mundo começou a se livrar das russas e pegar as chinesas. Só que a nova custa 6500 pesos cubanos, que serão pagos em 10 anos, e eles não deram um centavo pelas russas.”
Achei um negócio estranhíssimo.
“Eles vendem as geladeiras russas, derretem, e como o ferro é muito bom… vendem aos chineses!”, completou Paco, indignado. “Isso virou um grande negócio, que está dando muito dinheiro para algumas pessoas do Estado, entende?”
Pensei em dizer que era um negócio da China, mas o trocadilho não poderia ter muita graça…

Como um brasileiro perdidão à procura de abrigo, Samarone acabou por conhecer várias famílias cubanas na intimidade. E descobriu que Cuba é um dos derradeiros refúgios da distopia de George Orwell, onde há delatores em toda esquina – uma kafkiana realidade de que faz parte sentir-se culpado por nada, faturar 5 dólares por mês e comer, com sorte, a ração diária de 250 gramas de carne de soja. A distopia, o isolamento e o clima conspiratório na verdade criam um clima surrealista na ilha – em que convivem dois pesos e duas medidas (há uma moeda para estrangeiros e outra para os cubanos, ambas com o mesmo nome), dificuldades bizarras para comer um mero ovo (enquanto turistas comem o que quiserem), três anos de prisão e confisco de todos os bens para quem instalar uma TV a cabo em casa e a exaltação ao regime diariamente fantasiada pelo Granma, que esconde absurdos como a história das geladeiras acima.

Dessa investigação casual, nem o último bastião do imaginário esquerdista, “saúde e educação para todos”, fica em pé: Samarone demonstra que, para ter acesso a estudo e médico, alguns são mais iguais do que outros – e se muitos não reclamam é por temer pela vida. Ou seja: em Cuba só se socializa a corrupção, a hipocrisia e a miséria. Apesar dessa revolta muda, sente-se, nas conversas com artistas e intelectuais, uma atmosfera típica dos anos pré-1958, antes que os barbudos sonhadores provassem que “um outro mundo é possível”. Talvez uma nova revolução cubana esteja se desenhando exatamente agora – algo que passou despercebido à nossa gloriosa chancelaria e ao senso de noção de nosso presidente.

Viagem ao crepúsculo é um anti-Lonely Planet. Prova que fazer turismo em Cuba é tão alienante e babaca quanto pagar um jipe blindado para um favela tour pelo Rio de Janeiro. É pagar pra visitar um zoológico e achar bacana que os animais sejam torturados. Pena que o ex-artista da fome Lula não tenha levado o livro na bagagem antes da visitinha aos irmãos Castro: poderia tê-los cobrado que aquela terra prometida captada pelo olhar de Che Guevara só existe mesmo na fotografia.

Update: aqui a GloboNews promove um debate excelente entre Sama, William Waack e os cientistas políticos Cláudio Couto e Bolívar Lamounier.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

3 pensamentos

  1. Ronaldo, meu caro,
    Com o devido respeito, a despeito -perdoe-me a rima tola- do atraso do comentário, qualquer debate que conte com a participação de William Wack e Bolivar lamounier é de cara um debate empobrecido, passadista, anacrônico como a idéia pré-concebida do anacronismo de cuba. Você já pensou na possibilidade de que não só as roupas os objetos,os estilos musicais e os países se tornem anacrônicos, mas também as pessoas que ousam resistir ao estado de coisas vigente? Quer coisa mais anacrônica do que continuar acreditando no ser humano em tempos em que este não passa de um objeto à merce dos mais “espertos”? Mas continuar acreditando não é a função do poeta, esta antena superior da -perdoe-me- Raça?
    Abraços e força,
    Deusdédit -este ser anacrônico que insiste em acreditar no humano acima de todas as coisas e de todos os sistemas; e na poesia.

  2. É certo que Cuba tem suas mazelas. Contudo, creio que a comunidade mundial de escritores “intelectuais”, jornalistas e “fazedores de opinião” , antes de apontar com seus dedos “pagos” a dura realidade daquela ilha, deveriam combater e apontar um dos principais motivos de tantas dificuldades do povo cubano: o assassino e degradante embargo. A maioria dos países civilizados respeitam a autonomia da vontade dos povos. Se o povo cubano lutou pelo sistema que escolheu, deixe-os viver em paz!. A ausência de consumo e “conforto”que o sistema capitalista foi escolha deles, e devemos respeitar isso. O problema é que os patrões do mundo vem sabotando aquela Ilha caribenha há mais de 40 anos. Tenho certeza de que Cuba teria uma realidade muito diferente. Mas eu não me iludo. Afinal de contas, os “jornalistas” e intelectuais” são muito bem pagos para manter esse estado de injustiça e desrespeito à livre determinação dos povos. Deixo o meu conselho para o “escritor” Samanore Lima: agora que expôs a consequência da miséria de Cuba, que tal escrever um livro sobre suas causas, com todos os detalhes do covarde embargo imposto pelos “patrões do mundo”? Tenho certeza de que isso não vai ocorrer por uma simples razão: falta de incentivo ($) e inspiração ($).
    Leandro Coelho

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