>> Resenhol pro Outlook de 6-2
Pais que procuram filhos, filhos que se perdem dos pais: no melhor romance de William Kennedy, trama de mistério no submundo faz cortina de fumaça para densos conflitos psicológicos

Cara, como escreve esse tal de William Kennedy. Ele faz a coisa toda parecer moleza – entenda-se recriar uma cidade, da mais alta aristocracia à mais rala ralé, minuciosamente detalhando os mecanismos que unem esta àquela, incluindo blefes, sacadas geniais e golpes abaixo da linha de cintura. A cidade é Albany, capital do estado de Nova York, onde Kennedy nasceu; ali ambientou os sete livros do chamado Ciclo de Albany, que o inscrevem numa linhagem literária que tem ninguém menos que James Joyce como padrinho (por conta da reinvenção de Dublin em Ulisses). Deste ciclo, o livro mais admirável é O grande jogo de Billy Phelan (Cosac Naify, 341 págs).
Na superfície, parece uma história sobre jogadores, encrenqueiros, vagabundos, arrivistas e mentirosos – as descrições vivazes dos ambientes de boliche, pôquer e sinuca lembram mesmo os cenários rememorados por João Antônio em Malagueta, Perus e Bacanaço. Como o escritor e jornalista paulistano, Kennedy frequentava os ambientes que desenha em sua prosa. Um desses malandros é Billy Phelan, um trintão irlandês que todos em Albany querem por perto: craque em todo esporte ou jogo em que se mete – futebol americano, boliche, palitinho –, sempre vestido na estica, fiel com as mulheres, leal com os amigos, liso para andar no meio-fio entre a lei e a pilantragem, independente até o último centavo, língua afiada feito faca: “Esse aí não abre a mão nem para dar um grampo de cabelo a uma puta doente“, diz de um parceiro de pilantragem mão-de-vaca. Na mesma noite em que consegue incríveis 299 pontos com a bola furada – literalmente matando de raiva seu adversário –, Billy fica sabendo que um amigo de infância, Charlie Boy McCall, foi sequestrado. É aí que a trama evolui para um jogo político e até metafísico, adensando a psicologia das personagens e demonstrando que o verdadeiro foco de Kennedy são as conflituosas relações entre pais e filhos.
Charlie Boy é filho do homem que controla a jogatina da cidade – como essas coisas nunca estão muito distantes, é também sobrinho dos políticos mais importantes da região. Albany é pequena: vieram da mesma vizinhança pobre tanto os McCall quanto os Phelan e a família de Martin Daugherty, jornalista que é uma espécie de protetor de Billy (e, de certa forma, alter ego moral de Kennedy). Para aliviar o peso e a angústia por ter um filho padre, que vive longe, e ser ele mesmo filho do principal escritor da cidade, com quem divide uma amante, o que o faz se sentir um fracassado, Daugherty joga nos cavalos – e fatura alto. Só que seu bookmaker é ninguém menos que Billy. O malandro está encrencado: enquanto precisa descolar o dinheiro de Daugherty, para confirmar no submundo de Albany sua ética irrepreensível, é pressionado pelos McCall a dedurar um amigo, suspeito de participar do rapto de Charlie Boy. Para tornar as coisas ainda mais nebulosas, o pai de Billy, desaparecido há 20 anos, regressa a Albany. É o jogo mais difícil em que o finório já se meteu.
Kennedy escreve como o jogador de sinuca que se faz de sonso, sem pressa para encaçapar todas as bolas: numa linguagem que equilibra a sabedoria das ruas com o olhar fino do literato, tudo sem alarde, com fluência e elegância (os relatos das jogadas de sinuca de Billy estão entre os grandes momentos do livro). A ótima tradução de Sergio Flaksman permite observar como Kennedy capta a atmosfera verbal do submundo sem maltratar gramática e concordância. O Ciclo de Albany se inscreve na grande tradição realista norte-americana, mas não perde de vista certa propensão “irlandesa” ao sobrenatural – como nos espíritos que Billy pressente no rio Houston ou nos presságios precisos de Daugherty. Kennedy foi jornalista a vida toda, escreveu o roteiro de Cotton Club, de Francis Ford Coppola, e entre seus grandes amigos estava o jornalista gonzo Hunter S. Thompson. Aos 82, ainda circula por Albany. O próximo lançamento da editora é um de seus livros mais famosos, Ironweed, adaptado por Hector Babenco, com Jack Nicholson e Meryl Streep. Esperamos que se publique todo o ciclo: os leitores – e jogadores – agradecem.
>> Aqui no blog da Cosac tem um texto muito legal do Flaksman, contando sua visita a Mr. Kennedy em Albany. E aqui uma excelente entrevista que o Fábio Victor fez com o veinho, em que ele revela concluir, aos 82, o oitavo romance do Ciclo.