Jogo duro

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Pais que procuram filhos, filhos que se perdem dos pais: no melhor romance de William Kennedy, trama de mistério no submundo faz cortina de fumaça para densos conflitos psicológicos

William Kennedy, alive and kicking aos 82

Cara, como escreve esse tal de William Kennedy. Ele faz a coisa toda parecer moleza – entenda-se recriar uma cidade, da mais alta aristocracia à mais rala ralé, minuciosamente detalhando os mecanismos que unem esta àquela, incluindo blefes, sacadas geniais e golpes abaixo da linha de cintura. A cidade é Albany, capital do estado de Nova York, onde Kennedy nasceu; ali ambientou os sete livros do chamado Ciclo de Albany, que o inscrevem numa linhagem literária que tem ninguém menos que James Joyce como padrinho (por conta da reinvenção de Dublin em Ulisses). Deste ciclo, o livro mais admirável é O grande jogo de Billy Phelan (Cosac Naify, 341 págs).

Na superfície, parece uma história sobre jogadores, encrenqueiros, vagabundos, arrivistas e mentirosos – as descrições vivazes dos ambientes de boliche, pôquer e sinuca lembram mesmo os cenários rememorados por João Antônio em Malagueta, Perus e Bacanaço. Como o escritor e jornalista paulistano, Kennedy frequentava os ambientes que desenha em sua prosa. Um desses malandros é Billy Phelan, um trintão irlandês que todos em Albany querem por perto: craque em todo esporte ou jogo em que se mete – futebol americano, boliche, palitinho –, sempre vestido na estica, fiel com as mulheres, leal com os amigos, liso para andar no meio-fio entre a lei e a pilantragem, independente até o último centavo, língua afiada feito faca: “Esse aí não abre a mão nem para dar um grampo de cabelo a uma puta doente“, diz de um parceiro de pilantragem mão-de-vaca. Na mesma noite em que consegue incríveis 299 pontos com a bola furada – literalmente matando de raiva seu adversário –, Billy fica sabendo que um amigo de infância, Charlie Boy McCall, foi sequestrado. É aí que a trama evolui para um jogo político e até metafísico, adensando a psicologia das personagens e demonstrando que o verdadeiro foco de Kennedy são as conflituosas relações entre pais e filhos.

Charlie Boy é filho do homem que controla a jogatina da cidade – como essas coisas nunca estão muito distantes, é também sobrinho dos políticos mais importantes da região. Albany é pequena: vieram da mesma vizinhança pobre tanto os McCall quanto os Phelan e a família de Martin Daugherty, jornalista que é uma espécie de protetor de Billy (e, de certa forma, alter ego moral de Kennedy). Para aliviar o peso e a angústia por ter um filho padre, que vive longe, e ser ele mesmo filho do principal escritor da cidade, com quem divide uma amante, o que o faz se sentir um fracassado, Daugherty joga nos cavalos – e fatura alto. Só que seu bookmaker é ninguém menos que Billy. O malandro está encrencado: enquanto precisa descolar o dinheiro de Daugherty, para confirmar no submundo de Albany sua ética irrepreensível, é pressionado pelos McCall a dedurar um amigo, suspeito de participar do rapto de Charlie Boy. Para tornar as coisas ainda mais nebulosas, o pai de Billy, desaparecido há 20 anos, regressa a Albany. É o jogo mais difícil em que o finório já se meteu.

Kennedy escreve como o jogador de sinuca que se faz de sonso, sem pressa para encaçapar todas as bolas: numa linguagem que equilibra a sabedoria das ruas com o olhar fino do literato, tudo sem alarde, com fluência e elegância (os relatos das jogadas de sinuca de Billy estão entre os grandes momentos do livro). A ótima tradução de Sergio Flaksman permite observar como Kennedy capta a atmosfera verbal do submundo sem maltratar gramática e concordância. O Ciclo de Albany se inscreve na grande tradição realista norte-americana, mas não perde de vista certa propensão “irlandesa” ao sobrenatural – como nos espíritos que Billy pressente no rio Houston ou nos presságios precisos de Daugherty. Kennedy foi jornalista a vida toda, escreveu o roteiro de Cotton Club, de Francis Ford Coppola, e entre seus grandes amigos estava o jornalista gonzo Hunter S. Thompson. Aos 82, ainda circula por Albany. O próximo lançamento da editora é um de seus livros mais famosos, Ironweed, adaptado por Hector Babenco, com Jack Nicholson e Meryl Streep. Esperamos que se publique todo o ciclo: os leitores – e jogadores – agradecem.

>> Aqui no blog da Cosac tem um texto muito legal do Flaksman, contando sua visita a Mr. Kennedy em Albany. E aqui uma excelente entrevista que o Fábio Victor fez com o veinho, em que ele revela concluir, aos 82, o oitavo romance do Ciclo.

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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