Carne de conto


“Ela era Hemingway”

por Enrique Vila-Matas

vila-matas6

– Parece que vai chover – disse aquele dia ao entrar na aula.

Era um meio-dia cinzento de primavera, mas não havia ameaça alguma de chuva. Se disse aquilo foi só para que os estudantes começassem a entrar na matéria, na matéria do conto que pensava em ler para eles.

Pouco depois lhes dizia:

– Apesar do que anunciaram ontem os professores deste centro, não vou me limitar a falar do relato breve em geral. Penso aproveitar que os tenho aqui para que me ajudem a entender um conto de Hemingway que nunca entendi direito. E mais: vou converter vocês em carne de conto, porque penso em contar o que acontecer durante a próxima hora nesta aula em um relato.

Me pareceu que, sabedores de que podiam converter-se em material literário, os estudantes se esqueceram de qualquer tentativa de dormir durante a aula, e alguns até me sustentaram o olhar, desafiadores; outros pareciam se perguntar o que me propunha fazer com eles.

O conto de Hemingway – lhes disse – se intitula “O gato na chuva“. Faz muitos anos, quando li que García Marquez considerava esse conto o melhor que havia lido em toda a sua vida, me precipitei a lê-lo, e não o entendi; tornei a lê-lo de novo e o entendi ainda menos.

Fiz uma pausa, e logo acrescentei:

– O que menos entendo em tudo isso é por que seria o melhor conto do mundo.

Como se tratava de um conto muito breve, não tardei quase nada em lê-lo aos estudantes, embora antes os tenha advertido de que, por ser um relato de Hemingway, havia que se ter em mente que o autor foi sempre um mestre na arte da elipse e que conseguia sempre com que o mais importante da história nunca fosse contado. Quer dizer, que a história secreta do conto se construía com o não-dito, com o subentendido e a alusão. Isso explicaria que o relato pudesse parecer trivial (um casal de jovens americanos, viajando pela Itália, estão num quarto de hotel: enquanto ele lê na cama, ela se enternece com um pobre gato que vê debaixo da chuva e diz com muita certeza de que gostaria ter um gatinho que deitasse em suas saias e lhe fizesse companhia). Embora, na realidade, não soubéssemos com certeza se Hemingway teria posto toda a sua perícia na narração hermética da história secreta.

Li o conto e logo pedi aos estudantes que, por favor, me ajudassem a encontrar qual podia ser a história secreta que se desprendia daquele relato.

Uma estudante levantou a mão e falou de outro conto parecido de Hemingway em que se falava de elefantes brancos e na realidade a história secreta era a gravidez de uma mulher e seu calado desejo de abortar.

Outra menina nos falou da insatisfação sexual da jovem que queria um gato.

Um estudante acrescentou que talvez a protagonista de “O gato na chuva” tivesse um desejo oculto de maternidade.

Por último, uma garota que parecia estar chorando disse que tudo era muito simples.

– Muito bem – lhe disse – adiante, se é tão simples.

– Ela era Hemingway – disse.

hemingwaycat

Me dei conta de que, graças aos estudantes, entendia melhor que antes o conto, embora seguisse sem entender por que seria o melhor conto do mundo. De cara, me ocorreu pensar que talvez não havia que interpretar nada naquele relato de Hemingway, quem sabe o conto fosse completamente incompreensível, e justamente aí radicasse sua graça. Contei aos estudantes o final do conto que escreveria à tarde: eu voltava para casa e ficava girando ao redor de suas interpretações do conto e acaba descobrindo que aquele relato era simplesmente incompreensível.

– Quando leio algo que entendo perfeitamente – lhes disse – o abandono, desiludido. Não gosto dos relatos que balançam perigosamente no abismo do óbvio. Porque entender pode ser uma condenação. E não entender, a porta que se abre.

Então, a estudante que parecia estar chorando levantou de novo a mão.

Por um momento pensei que, se aquela estudante acabasse chorando, logo a seguir choveria. É que na juventude eu conheci uma moça que sempre que chorava chovia.

A estudante me disse então que tudo bem, se eu tivesse encontrado o final do meu conto, mas que me recomendava que, ao escrevê-lo, pensasse nos leitores, ou seja, que pensasse nela.

Creio que a desdenhei. Mas aqui estou agora sem entender nada, nada!, tampouco deste conto.

> De Ela era Hemingway / Não sou Auster, Ediciones Alfabia, 2008. Traducción RB, 2009

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

36 pensamentos

  1. Fui ler o conto do Hemingway só pra desencargo. Não entendi nada. O que é gato de tartaruga? Quanto a este conto, também boiei. Mas será que tudo, afinal, deve ter um significado?

  2. García Márquez não disse ser o “melhor conto do mundo”, mas o melhor de Hemingway, naquele ensaio que ele gritou maestro, na única vez que o colombiano viu o americano. Esse conto não é difícil_ porra, se vcs acham isso, não podem ler mais nada. Ele é todo baseado em insinuações. O alluno que surpreendentemente citou o Montes Como Elefantes Brancos deveria ser condecorado, pois é sinal de reação à idade mental brasileira rasa.Mas nada disso é surpreendente, nessa nossa época do aborto completo da sutileza. Leia de novo Lalo, depois leia mais dois contos geniais do velho Hemingway: Os assassinos, e Fora de estação. Se não entender, desista, não é sua praia, vai curtir a balada.

  3. Só para simplificar: quando a aluna diz, no conto de Vila-Matas, que “ela era Hemingway”, refere-se a um possível desejo do autor no sentido de mudança da sua orientação sexual. Gato é nitidamente um símbolo masculino. Cabelos compridos remetem ao feminino. Casal de americanos provavelmente escondendo-se de comentários maledicentes num lugar distante, fora de “temporada”. Se a obra é autobiográfica, como acho que é, a homossexualidade seria a história secreta.

  4. Pingback: Contos do parque
  5. Pingback: Título do Site

Deixe um comentário