> Perfil de um sexteto [!] na revista Serafina de ontem, escrito avec Mlle Kakau

Los Barbudos
Eles agora são conhecidos como “a banda do Marcelo Camelo”. Mas há 10 anos o Hurtmold é um dos tesouros mais bem guardados de São Paulo
Por Kátia Lessa e Ronaldo Bressane
“O que é que vai tocar aqui hoje?”, pergunta o manobrista para o porteiro da casa paulistana Grazie a Dio!. “Hurtmold”, manda o guardião. “É HÂRTIMÔRDI!”, grita o manobrista, ao celular. “Que som que é?”, indaga o valet. “É pós-roque!”, sorri o da banqueta, piscando o olho para o repórter: “Se ele agora vir me perguntar o que é pós-roque, fudeu!”.
“Se a gente fosse velho, iam falar que é jazz”, ri Guilherme Granado, 29, teclados/ vibrafone/ escaleta. “Mas isso seria uma ofensa ao jazz”, contrapõe Mário Cappi, 27, guitarra: “Não podemos brincar com coisa séria. O Hurtmold é só uma banda de rock sem nada de erudito. É muito mais instinto e intuição”, diz. Maurício Sanches Takara, 25, bateria/ trompete, afasta os preconceitos: “Não precisa rotular, tem que ter uma relação mais espontânea com o som. O que fazemos não é hermético nem cerebral”, diz. “Com essa de tacharem o som de cabeçudo, já nos chamaram de arrogante”, conta Fernando Cappi, 28, o outro irmão guitarrista. “Ouvi um papo de que a gente se acha… Não é nada disso! Só queremos fazer um som entre amigos, um som de coração”, explica. “A gente no fundo é tímido. Ninguém consegue abrir um show tipo ‘e aí galera?’”, brinca Granado.
“É um som inclassificável”, define Rica Amabis, do Instituto, coletivo que tem como integrante Daniel Ganjaman, irmão de Takara (outro irmão, Fernando, é guitarrista do CPM22; o trio é filho de Claudio Takara, emérito produtor paulistano).
“Sou fã da banda desde a época dos primeiros discos da Submarine. Gostei de primeira porque eles mostravam algo além do que se desenhava como pós-rock, eles sempre foram uma espécie de satélite solitário que vagava entre o free-jazz e o pós-rock de Chicago. Agora eles vão ficar mais conhecidos, mas mesmo com o destaque que eles tiveram ao longo dos anos, são uma espécie de segredo da cena indie. Seria triste caras com todo esse tempo de carreira e tanto talento ficarem conhecidos apenas como a banda de acompanhamento do Marcelo Camelo. Se fossem uma banda dos anos 80, talvez fossem lançados pela ECM (selo de bandas de jazz experimental, com sons indefinidos, exploradores). Meu show inesquecível deles foi no Sónar. Muita gente numa sala pequena. Uma vibe de família, me marcou. Uma apresentação deles não é um mero show, é uma experiência”, postula o jornalista musical Fábio Massari.
“Vi os caras pela primeira vez em 2000 e curti de primeira pela sonoridade inventiva e experimental”, lembra Tatá Aeroplano. “Me impressionou que eles mesclavam uma sonoridade brasileira aos pós-rock de bandas como Tortoise, me chamou atenção essa versatilidade: a capacidade de mesclar ritmos e estilos diferentes numa mesma canção”, completa. “É simplesmente uma das melhores bandas do Brasil”, sintetiza o produtor Carlos Eduardo Miranda.
Os elogios não exageram: toda apresentação do Hurtmold soa única, incomparável. Uma música quase narrativa, enfaticamente percussiva, que intercala atmosferas raivosas e delicadas com uma dinâmica hipnótica e raro senso de drama. Tudo sem efeito ou ornamento; minimalista, simples. Talvez por isso uma banda instrumental tenha conquistado um público fiel durante seus dez anos e cinco álbuns: cada exibição mantém foco preciso na musicalidade, o que sugere lendárias sessões de jazz dos anos 40 e 50 – porém, em sua recusa ao complexo e virtuosístico, se aproxima do punk e do hardcore. E apesar do pretenso cabecismo, é um som essencialmente voltado ao swing dos quadris.
Não por acaso, a banda que os seis elegem como ícone não é o Mogwai, banda que está para o pós-rock como o Pink Floyd está para o progressivo – e sim o Fugazi, emblemático grupo punk norte-americano. “A primeira vez que vi o Fugazi fiquei com medo. Parecia tão de verdade! Isso tem a ver com a postura básica do som deles. Ninguém aqui gosta de solos nem de jam sessions. Cada elemento tem sua importância, cada silêncio conta. Às vezes você toca uma nota e é como um facho de luz”, metaforiza Granado. “Eu acho que o que define a dinâmica do nosso som é… justamente a cidade de São Paulo, essa confusão entre beleza e caos”, arrisca Takara, que, além do Fugazi, aponta Tortoise e Uakti como conceitos próximos ao Hurtmold.
“O Rob Mazurek [trompetista de Chicago que vive em São Paulo e é parceiro constante do Hurtmold] nos disse que a diferença entre uma jam e um improviso é que no segundo você tem um objetivo”, explica. “É uma mentalidade estranha a dos apreciadores de jazz em São Paulo”, cutuca Takara. “É uma coisa careta, de adorar solo. Tem mais a ver com ego que com som”, afirma o baterista, já apontado como um dos melhores do país – um workaholic que divide suas baquetas entre Hurtmold, Camelo, Instituto, São Paulo Underground [com Mazurek], o solo M Takara, Trio Esmeril e ainda encontra tempo para devorar livros de William Burroughs e Richard Brautigan.
Longe dos círculos jazzistas tradicionais, o Hurtmold atrai um séquito louco por música nova – “tem sempre uns mesmos dez caras que freqüentam”, dedura Roger Martins, 32, percussão/ clarinete, mais recente aquisição da banda – era fã e acabou entrando no Hurtmold há 5 anos. “E são mais velhos, já devem ter filhos [risos]. Acho que a maioria da platéia é formada por músicos”, sugere. Raridade entre bandas instrumentais, cada álbum do Hurtmold vendeu 5 mil cópias; o mais recente trabalho será distribuído nos EUA, e o grupo fez uma turnê bem-sucedida na Europa, com destaque para o festival espanhol Sónar.
Los Camelos
A maioria dos integrantes se conheceu na tradicional escola Carlos de Campos, no Brás, onde havia uma cena forte de skate e hardcore. Somente Takara e o baixista Marcos Gerez, 27, vinham de famílias musicais – mas Gerez, único imberbe do sexteto (“simplesmente não nasce pêlo na minha cara!”, desculpa-se) sempre teve um approach punk do som. “Meu pai, violinista, queria que eu lesse partitura; eu não. Detesto ficar estudando, é o mesmo que fazer flexão… O som tem que ser sentido na rua, vivido a partir das situações que a gente vê. Eu gosto é de criar junto com a banda”, diz, indicando, aliás, outra particularidade do Hurtmold: todas as composições são coletivas.
Não há líder. “Parece etéreo demais, mas não pensamos nada: funciona da forma mais tosca possível”, explica Mário. “Um chega com uma idéia, mostra, os outros tocam em cima. São muitas influências, seis caras que escutam música brasileira, africana, americana, européia. É uma espécie de Lego”, define.
Esse processo de composição mudou completamente com o convite para ser a banda de apoio ao ex-Hermano Marcelo Camelo. “O trabalho coletivo não prescinde da contribuição mútua. Eu passei as músicas, mas o processo de criação foi conjunto e, claro, houve interferência”, explica Camelo, que já havia tocado com eles no Canecão. “Achei que seriam bons como apoio porque o trato deles com texturas combina com a minha melodia. No início iam gravar só ‘Téo e a gaivota’, mas o trabalho fluiu e foi natural que gravassem mais três faixas e virassem a banda de apoio”, conta. Para Takara, tocar com Camelo foi até libertador. “A gente fica livre só para tocar, não precisamos compor. E gostamos dele como músico e como pessoa: é um cara sincero”.
Gerez ficou impressionado com o novo “chefe”: “Ele toca pra caralho! E porra, como gosta de ensaiar… com o Hurtmold são 3 horas, com ele são sete!” A banda vai ficar mais pop? “Estamos preparadíssimos. Já mandei fazer o meu terno Armani para a estréia e a mulher da loja disse que eu não preciso pagar porque vou tocar com o Marcelo Camelo”, ri Mário. Enquanto isso não acontece, a maior banda underground de São Paulo – seja lá o que isso signifique – ensaia para as apresentações de 10 anos no Auditório do Ibirapuera. E ah, antes que você pergunte para o porteiro da casa de shows: a palavra Hurtmold não quer dizer absolutamente nada. É só um som. O som.
a quem interessar possa: fiz uma matéria com eles no Sonar de 2005, em Barça: