Como descrever Kafka, o homem?
Talvez assim:
É como se ele tivesse passado a vida inteira se perguntando como seria sua aparência sem jamais descobrir que existem coisas como espelhos.
Um homem pelado numa mutidão de vestidos.
Uma mente vivendo em pecado com a alma de Abraão.
Franz foi um santo.
Ou ainda, usando detalhes de sua vida, como encontrado no refrescantemente factual The Tremendous World I Have Inside My Head: Franz Kafka: A Biographical Essay, de Louis Begley: mais de um metro e oitenta, boa pinta, elegantemente vestido; um estudante excepcional, um nadador vigoroso, um entusiasta da ginástica aeróbica, um vegetariano; um assíduo freqüentador de cinemas, cabarés, cafés noturnos, noitadas literárias e bordéis; autor de sete livros durante sua breve vida; noivo três vezes [duas com a mesma mulher]; elogiado pelos chefes, promovido no trabalho.
Mas este último Kafka é tão difícil de visualizar quanto o Pynchon que trabalha num mercadinho e assiste a jogos de beisebol, o Salinger que envelheceu e constituiu família em Cornish, New Hampshire. Leitores são fabulistas incuráveis. O caso de Kafka, certamente, vai além da mística literária. Ele é mais que um homem misterioso – ele é metafísico. Leitores que são particularmente fascinados por este supra-Kafka acham difícil de engoliar a visão de um Kafka cotidiano. E vice-versa.
Uma vez palestrei sobre o tema de Kafka numa sociedade literária judaica, explorando a idéia – como o crítico Michael Hoffmann pensava – de que “é sempre tarde demais em Kafka”. Mais tarde, uma espetivada mulher nos seus noventa anos, com um leve sotque do Velho Mundo, atravessou a sala e me puxou pela manga: “Você está totalmente errada! Eu conheci o senhor Kafka em Praga – e ele nunca estava atrasado.”
Recentemente tenho acompanhado um certo revisonismo de Kafka embora o que dê pra se capturar nem sempre seja a natureza de seu trabalho, mas a de precisar a sua natureza. Que tipo de escritor é Kafka? Acima de tudo, é uma revisão da aura biográfica de Kafka. De um ensaio esperto do jovem crítico e escritor Adam Thirlwell:
“É necessário listar algumas verdades aceitas sobre Franz Kafka e o kafkiano… o trabalho de Kafka está fora da literatura: não é totalmente da história da ficção européia. Ele não tem antecessores – seu trabalho aparece do nada – e não tem sucessores… Essas ficções expressão a alienação do homem moderno; são uma profecia de a] o estado policial totalitário, e b] o Holocausto nazista. Seu trabalho expressa um misticismo judeu, um misticismo inominado, uma angústia do homem sem Deus. Seu trabalho é muito sério. Ele nunca sorri em fotos…
É crucial conhecer os fatos da vida emocional de Kafka enquanto se lê sua ficção. Em algum sentido, todas as suas histórias são autobiográficas. Ele é um gênio, para além dos limites ordinários da literatura, e um santo, para além dos limites ordinários do comportamento humano. Todas essas verdades, todas elas, são erradas…”
> O belo artigo de Zadie Smith sobre The Tremendous World I Have Inside My Head: Franz Kafka: A Biographical Essay [Atlas and Co., Atlas and Co., 221 pp., $22.00], de Louis Begley continua aqui.