Memória em ziguezague

No romance de formação Paris não tem fim, o espanhol Enrique Vila-Matas revisita sua juventude para entender por que raios virou escritor

Sim, eu sei que é um clichê escrever “esse livro é um companheiro de viagem, leve-o para um café, um bar, um restaurante, um banco de praça, um banco de ônibus, a fila do banco…” mas não adianta: apesar do lugar-comum, Enrique Vila-Matas seguirá para esses lugares, braço dado com você – afinal, como uma agradável, perigosa e inteligente conversa foi concebido Paris não tem fim (Cosacnaify, R$ 45, 242 págs., trad. Joca Reiners Terron). Daquelas conversas que se tem com os melhores amigos.

O escritor barcelonês nascido em 1948 e autor de 17 volumes de ficção é o típico “escritor inteligente” (parece um paradoxo?) justamente porque detesta ficar o tempo todo aparentando ser incrível (sabe aqueles caras que posam nas orelhas dos livros com ar superior, segurando o queixo, em frente a uma biblioteca?). É verdade que aqui o autor está mesmo em frente a uma biblioteca: deve ser dos romances com maior índice de citações por centímetro quadrado. Escritor de, sobre e para escritores, o espanhol enquadra o par de anos da formação literária – logo, boêmia – de um jovem autor que mora em um sótão alugado a uma estrela da literatura francesa: Marguerite Duras, autora de O amante.

Fugindo de Franco, ele chega a Paris em meados dos anos 70 e ali foi miserável e triste, contrariando seu ídolo Ernest Hemingway, autor de Paris é uma festa e da frase “Assim era Paris quando éramos muito pobres e muito felizes”. Esta é a tese do livro: Vila-Matas é um anti-Hemingway (embora o narrador jure ser fisicamente a cara do norte-americano). E, ao inverso do heróico yankee que lutava com totalitaristas e tubarões, dono de escrita baseada na objetividade e na elipse (e na teoria do iceberg, em que “a história que não está no conto está como que sob a água; se constrói com o não-dito, o subentendido e a alusão”, só mostrando um décimo de sua matéria), o elegante espanhol alicerça a narrativa na digressão, no ziguezague em que o literário leva necessariamente ao literário.

“Apesar de haver encontrado o jogo narrativo e os saltos de casinhas e os padrões ideais para relatar, não sabia como organizar essa realidade […]. Qual era a minha realidade? Se não a conhecia, como queria organizá-la? […] Mas as regras do jogo também estão aí para se jogar com elas”, anota V-M, sugerindo que a própria estruturação da narrativa seja uma história em si (mas não, caro leitor, não fuja: Paris não tem fim não é um um entediante jogo metalingüístico; salva-o a suave ironia do barcelonês, que parece jamais se levar a sério).

 

Epigrafômano incorrigível

O narrador de Paris não tem fim é um escritor maduro olhando para um aspirante a literato; assim, sua vida é pontuada pela literatura. Já disse V-M que quis ser escritor para imitar “Boris Vian, Albert Camus, Scott Fitzgerald e André Malraux: por sua fotogenia, não pelo que escreveram”. Antiépico, porém, as aventuras do jovem V-M passam pela falta de grana pra pagar a água-furtada de Duras – que havia sido lar de atrizes, travestis e até do futuro presidente Mitterrand –, o amor com uma espanhola pobre, parlendas com bêbados, futuros gênios e fracassos imediatos, rolês no conversível de Paloma Picasso, filmagens de películas underground e visões fugazes de musas como Isabelle Adjani e Jean Seberg.

A temível Duras, que na época dirigia India Song, é outro eixo deslocado da narrativa desse deslocado pretendente a escritor, que ganha da escritora/cineasta uma apostila para ajudá-lo a elaborar seu primeiro romance, A assassina ilustrada (na verdade, o segundo livro de V-M). As festas em casa de Duras e o grand monde literário são a cereja nunca comida do bolo romanesco pacientemente cozinhado pelo faminto quando jovem artista – e mais tarde destrinchado pelo célebre autor de A viagem vertical e O mal de Montano. Deixando à vista do leitor a composição de seu primeiro livro e a formação de sua própria personalidade, em negativo a Hemingway – cuja musculosa biografia atravessa os 113 curtos capítulos do livro – , o autor prefere anedotas que vivenciou (ou fantasiou), migalhas de narrativas que leu, fiapos de frases que ouviu.

Ah, sim: Paris não tem fim é um longo encadeamento de epígrafes inesquecíveis. O “mais argentino dos espanhóis”, no dizer do amigo Rodrigo Fresán (Jardins de Kensington) – claramente aludindo ao portenho Jorge Luis Borges, a quem também era caro o diálogo entre ensaio e ficção –, V-M é um epigrafômano incorrigível. “Como dizia fulano” é uma das chaves de sua escrita; não que ele utilize a orelhada como escada: sua obsessão é observar novos sentidos por trás da sentença lapidar – Vila-Matas também sabe colher de um prosaico papo com um mecânico uma oração iluminadora como “O amanhã é hoje”. “Serendipity”, diria Hemingway – o fenômeno de descobrir coisas maravilhosas por acidente. Esse tipo de epifania com que trombamos enquanto se vagabundeia com um amigo, bestamente, em zaguezigue, ao sabor de nossa própria conversa.

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* Originalmente publicado no Estadão de 7-2-2008

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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