Dois novos livros do Nobel de 2006, o turco Orhan Pamuk, tiram a ambivalente Turquia do noticiário político e a devolvem às páginas literárias
Em um momento que a Turquia volta a participar diariamente do noticiário – por conta das escaramuças com os curdos do Iraque, do flerte com os EUA e das pressões de Alemanha e França contra sua entrada na comunidade européia – , nada como ler um bom romance de Orhan Pamuk para ter uma boa idéia desse belo e controverso país. A Cia. das Letras põe nas livrarias um par de livros do Nobel de 2006. A maleta de meu pai, coletânea de três palestras proferidas pelo escritor em 2006 e 2007. A mesma voz limpa e confessional das narrativas de Pamuk desponta nas três palestras contidas em A maleta do meu pai. Na primeira, lida quando ganhou o Nobel, Pamuk conta como uma maleta contendo escritos do pai, que quase havia sido um intelectual na juventude, o leva a questionar sua profissão de fé na literatura. O embate Oriente/Ocidente está no cerne do texto Em Kars e Frankfurt, lido durante a entrega do prêmio Friedenpreis em 2005 (para seu romance Neve) e em O autor implícito o autor assume sua vocação: “O que me prende à vida é escrever romances”.
Mas é seu terceiro romance, O castelo branco, de 1985, o livro de Pamuk a ser lido. Foi o romance que deu fama internacional ao turco nascido em Istambul há 55 anos – e é uma narrativa exemplar para compreender as tensões Oriente/Ocidente. Afinal, a Turquia é um país ambíguo. Na Wikipedia, assim é descrita a cidade de Istambul: “A única do mundo a cavaleiro de dois continentes”. Diria o mesmo sobre a trama de O Castelo Branco. O romance é ambientado no século XVI, quando a cidade, antiga Constantinopla, ex-Bizâncio, era um dos umbigos do mundo – centro do todo-poderoso Império Otomano, um dos maiores que já marcharam pelo planeta. O islã que é base desta civilização nunca cerrou os olhos para os fascínios ocidentais – talvez por isso a Turquia seja hoje um dos raros países de maioria muçulmana a separarem Igreja de Estado. Quando o sultão otomano estendia seus domínios dos países eslavos ao Oriente Médio, passando pelo norte da África, costumava escravizar meninos europeus para formar uma tropa de elite – sem laços familiares, eles devotariam sua alma somente ao sultão. Ao contrário da maioria das nações predominantemente muçulmanas hoje, o conhecimento ocidental era admirado e, espertamente, “otomanizado”, digamos.
Nesse território ambíguo é que despenca o protagonista de O castelo branco. De modo borgiano, Pamuk prefacia o livro sob o pseudônimo Faruk Darvinoglu, avisando o leitor que o livro se trata de um manuscrito encontrado nos miseráveis arquivos da subprefeitura de Gebze, cidade litorânea próxima a Istambul, onde Aníbal cometeu suicídio antes de ser pego pelos romanos (um clássico entre ditadores). O artifício talvez sirva para afastar a psicologia do protagonista da do autor. Criado em família de classe média alta, educado segundo os moldes ocidentais, embora sucesso de crítica e público em seu país Pamuk é voz dissonante. O autor foi violentamente atacado ao defender que a Turquia devesse assumir o genocídio armênio e o massacre curdo na primeira metade do século 20, grandes vergonhas nacionais – precisou se defender em tribunais turcos por conta de suas afirmações, razão pela qual ficou conhecido mundialmente.
William Wilson
O castelo branco é um livro que entrelaça fábula e política. O protagonista anônimo do manuscrito encontrado pelo tal Faruk é um jovem veneziano capturado por uma esquadra turca durante viagem pelo Mediterrâneo. Ao provar-se sábio em todo o trívio e quadrívio medieval, além de medicina, astronomia, biologia, literatura, aritmética, química, pintura (dá a impressão de ser um jovem Leonardo da Vinci), é dado como escravo a um certo Hoja – figura incrivelmente parecida com o veneziano. Hoja seria o encarregado da queima de fogos de artifício no casamento do filho de um paxá. Por conta dos conhecimentos do italiano, a queima de fogos sobre o Chifre de Ouro, estuário que divide Istambul, é um sucesso.
A partir daí, Hoja e seu escravo gêmeo serão inseparáveis – na desgraça e na bonança, um casamento que dura mais de 30 anos. Me lembrei de uma anotação de Nathaniel Hawthorne para uma narrativa não-escrita: “No meio da multidão imaginar um homem cujo destino e cuja vida estão em poder de outro, como se os dois estivessem num deserto”. Me lembrei ainda do conto “William Wilson”, de Edgar Allan Poe, em que um sujeito vil é seguido de perto por seu sósia de mesmo nome, até que é morto por ele. E de novo penso em Borges, no conto “O outro”, em que o argentino relata seu encontro com um Borges mais novo; ou do conto “O outro ou o outro”, de Rosa, e daí vamos indo até chegar aos bíblicos Esaú e Jacó, os gregos Castor e Pólux… até notar que O castelo branco insere-se na vasta linhagem literária do duplo.
Hoja pede a seu escravo que lhe conte tudo, absolutamente tudo, sobre sua vida. Assim o italiano lhe detalha sua infância, as cores de sua Veneza, os fatos de sua família, os ensinamentos do colégio, seus orgulhos, suas infâmias. Enquanto Hoje é pura ação e impetuosidade, o anônimo veneziano é reflexão serena. Um completa o outro. Auxiliado pelo escravo, Hoja ascende na corte otomana até que se torna astrólogo imperial, nomeado pelo próprio sultão. O veneziano poderia libertar-se de seu jugo – bastaria ele renunciar a Cristo e adotar o islã. Por algum obscuro motivo, jamais o faz. Parece mesmo ser impelido a ser a sombra de Hoja: em cada feito do senhor, está a marca do escravo. Em certa altura do romance, fascinados e assombrados com as semelhanças e diferenças enquanto escrevem obsesivamente seus pensamentos à frente de um espelho, parecem se tornar uma pessoa só. Pamuk parece acreditar que somente a literatura pode ser capaz de iluminar o questionamento “o que sou eu? o que é o outro?”.
A escrita límpida e por vezes quase singela de Pamuk encontra ressonância perfeita para essa fábula de confronto e entendimento entre civilizações. Uma atmosfera de encantamento à Mil e Uma Noites perpassa todo o texto – uma investigação sobre a identidade; sobre como a identidade não pode se formar sem a alteridade. A certa altura, o escravo dá sua lição de literatura para seu mestre: “A história ideal deveria começar de maneira bem inocente, como um conto de fadas, tornar-se assustadora como um pesadelo no meio e finalizar numa nota melancólica, como uma história de amor que terminasse com a separação dos amantes”. Uma perfeita resenha deste romance.
*originalmente publicado no Estadão em 4-11-2007