Zero

Como foi mesmo o sonho? Tocava ao piano uma música que nunca tinha escutado antes. Mas ele se lembrou de que não sabia tocar piano e ainda tentava se recordar do que teria acontecido, antes que visse estiletes entre as teclas e temesse cortar os dedos e acabasse acordado pelo despertador para o trabalho, quando o ônibus chega: automático, paga o cobrador, que o fixa detrás de óculos escuros; e ele se acomoda a um penúltimo banco, como se com isso conquistasse o direito a uma ausência.

Pelas janelas abertas – quente demais, insetos zunem –, há várias possibilidades no ônibus vazio; assim, resolve não ler a revista que comprou, para fazer passar mais rápido esta viagem em busca de mais um dia de trabalho.

Suave, feito vidro moído, a música insidia-se na mente. O corpo dói; ele se encolhe sobre sua pasta, o rosto apoiado no vidro frio. Um inseto. Passeiam pelos olhos prédios; automóveis; calçadas; pessoas. Um sujeito pergunta as horas a outro. E ele tem certa simpatia pela gente do asfalto. Uma luz chapada é desenrolada pelo vento, feito imensa bandeira colorida, e ele se sente até próximo das pessoas diárias – as da banca de jornais, dos botecos, do açougue, atravessando a rua; amenas, fugazes, portáteis. Sente nelas mesmo uma louca esperança… enquanto o ônibus navega leve no fluxo e ele, liso, na inconsciência, um zumbido batendo asas nos ouvidos.

Numa parada, no meio do torpor percebe que se sentou no mesmo banco um homem vestido de preto, de óculos escuros e boina também negra. De tempos em tempos, o homem o espreita discreto, parece. Incomodado, exila seu olhar na janela, à sua direita – e observa como, dia a dia, os carros empurram cada vez mais as pessoas para a calçada. À sua esquerda, o homem exala um odor ruim, de fuligem; familiar, no entanto… O sol rói a pele. Buzinas e o som morno do motor. O homem o perscruta? Ele se sente preso – no engarrafamento, no ônibus, no dia, dentro do corpo: encapsulado no próprio corpo. No entanto, está livre; todas as janelas, escancaradas. O ônibus se afunda, o cobrador abana-se: uma gota de suor vaza detrás dos óculos escuros – uma lágrima, talvez? E por quem?

Ele tenta se distrair na revista; num lance, porém, decide descer um ponto antes. Ainda o ônibus ancorado; o homem dentro o examina, ainda, e mais. De lado, ele recorda, no outro, alguém que conhece… Vai deslizando lento, no mesmo sem-ritmo do ônibus. Curioso, relanceia o olhar: o homem não pára de vigiá-lo – e, agora, sorri. Pelo esgar dos lábios, ele lembra: parecia um ator que representou naquele filme, naquele filme perdido na memória, com essa boina e esses óculos, algo como um pintor cego que só pintava tetos, céus, infinitos…

E agora ri, dentes grandes, gargalha, dentes arreganhando. Para quem? Talvez o pintor só existisse mesmo num sonho. E é só um instante: já se esqueceu do riso, pois se volta à boca do túnel que, todos os dias, ele cruza por baixo da linha férrea, para chegar ao trabalho, do outro lado. Ao trabalho.

Um buraco abafado de gente que esbarra e berra, ele tem de abaixar a cabeça e espadanar como peixe: na trombada, dezenas se comprimem, indo e voltando e crianças sujas mercadorias éter cola lâmpadas gosmentas que zumbem por paredes grafitadas e aleijados levantando as mãos e velhos homens-sanduíche comprando ouro ou emprestando dinheiro a crédito e estranhos ofícios e mijando em vãos e garotas seminuas de bonés empurrando papéis e filhos levando os pais paralíticos em carrinhos de supermercado enquanto a água dava nas canelas e camelôs de vozes agônicas oferecendo alarme-relógios que tocam e tocam e tocam e ecoam agudos pelos muros estritos do túnel que treme e trovoa as rodas de ferro dos vagões fechados que carregam gente a marchar sobre o teto em ritmo escuro, surdo, suando, úmido, quase derrubando sua pasta, ele, sem ar, a caminho do trabalho, ultrapassa o cardume grosso de mãos olhos bocas feito náufrago estilete, conseguindo aos poucos desembaralhar-se, pois pressente-se, como sempre, no meio de um filme, e imagina o que vê, talvez para se salvar, matéria de celulóide, porque a vida de todos os dias não pode ser real, essas pessoas como refugiados subaquáticos de filme de guerra, como assim?, quando a densa luz de fora numa porrada na cara banha-o no claror quente afinal do outro lado, assistindo a um bêbado molambo de chapéu-coco urrar:

Vocês têm que se enfiar aí! Todo mundo pra dentro! Pra dentro!

Como foi mesmo o sonho? Como não conseguia mais capturá-lo, feito uma canção? Como pode um sonho ir se entranhando assim, vertiginando-se no abismo da memória, até se perder para sempre? Em que meada exata ele se desfaz? Não pode ser este preciso instante alguma lembrança antiga e devastada de um sonho muito diferente, criado por outra realidade?

O céu parece mais baixo: à frente, a grande fábrica de tijolos negros onde ele trabalha. A caminho do trabalho, ele segue sempre rápido, estremecendo em pensar como a gente do asfalto de todos os dias pode ser perigosa…

Um som de piano enche os ares. Tira o crachá da pasta. A música circula sua cabeça, alto, muito alto, mas ele já não ouve. Já não imagina filmes mais. Pois surgiu, em algum lugar – de sua pasta? – um medo. Um medo frio como o vento, e coceira no corpo molhado: antes de chegar à porta escura do trabalho, o porteiro fecha seu caminho e lhe devolve o crachá. Nele, em 3 x 4, o homem de boina preta sorri. De onde está, ouve a canção do piano ser substituída pelo som dos alarme-relógios, alto, cada vez mais. Ainda segurando o crachá, ele faz um meio-giro timidamente e dá as costas ao porteiro. À entrada do túnel, está de novo o bêbado, apontando para baixo:

Pra dentro!

Quase com alegria – uma louca esperança –, ele obedece. Pressente que o túnel está diferente: lá dentro, sombras líquidas, brancas e escuras. Cansado – seu dia era longo, seu dia era curto – feito antes de morrer, ele se senta a um banco; esquecido: como se com isso conquistasse o direito a uma ausência. Que bom ter alguém para fazer meu trabalho hoje, pensa – enquanto, sutil, pousa sobre sua pasta, jogada meio de lado em cima do piano, um inseto verde, que parece uma folha. Verde claro o ventre, jade escuro a carapaça, uma antena quebrada. Passa nervoso as patas dianteiras uma na outra, enquanto balança a sua única antena boa: como se o observasse… Então, seus dedos se lembram.

O inseto voa.

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Publicado em 1999 e reescrito em 2004, este conto finaliza Os infernos possíveis [Com-Arte/USP]

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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