>> Essa saiu no Estadão, 27-5.
Em Casa de Encontros, o inglês Martin Amis se inspira em Dostoiévski, Nabokov, Soljenítsin e Pasternak para contar um triângulo amoroso que acontece em um gulag russo
Está ali, em algum lugar. Difícil precisar. Vai lendo que ele surge: o ódio. Aquele particular tipo de ódio total, faminto e glorioso. Pode ser só má impressão… Entanto, ao ler o mais recente livro de um de meus autores favoritos, Martin Amis, a novela Casa de Encontros (Cia das Letras, 240 págs., R$ 39), senti que estava lendo alguém quase antípoda, mas que reverberava aquela ira viril: outro autor de cabeceira, o Louis-Ferdinand Céline de Viagem ao Fim da Noite. Porém, o que um (almost) angry young man inglês teria a ver com o furibundo antisemita do outro lado da Mancha? A explicação soará bizarra, uma vez que a história de Amis se passa na Rússia: é que o britânico virou, de vez, um antiislâmico.
Ok, eu explico – ou tento. Melhor começar da paráfrase (mas juro que não vou tirar o doce da boca do leitor, como tenho visto em certas resenhas). Casa de Encontros é uma noveleta publicada em 2006, lançada agora no país com a sempre criativa tradução de Rubens Figueiredo. Amis a publicou logo após o relativo fracasso crítico de Yellow Dog (não publicado aqui), Koba The Dread (idem – uma espécie de romance de não-ficção centrado na figura de Stálin) e os contos “No Palácio do Fim” (lido por Amis na Flip de 2004) e “Os últimos dias de Muhammad Atta” (publicado na revista Piauí de novembro/2006). A Random House, editora de Amis, havia sugerido a possibilidade de os dois últimos contos serem publicados junto com House of Meetings, idéia logo abandonada. O curioso é que os contos, não muito favoráveis a nossos contemporâneos árabes, ressoam nesta novela nos subterrâneos eurasianos ao longo da segunda metade do século 20.
O livro é narrado por um anônimo russo de 80 e muitos anos, em inglês, à sua enteada pós-adolescente norte-americana, chamada Vênus. Sim, se você se sentiu cheiro de Nabokov, o russo que elevou a língua inglesa a outro patamar e sempre foi referência para Amis, aguarde que seu fantasma vai aparecer por várias páginas – no ritmo vivaz, na escolha estranha das metáforas, nas frases subitamente entrecortadas por parênteses (poucos caras sabem usá-los tão bem). E, claro, há sobretudo Dostoiévski e Soljenítsin. Afinal, aquele russo de 80 anos foi um feroz combatente na Segunda Guerra que, apesar disso, ganhou do Estado uma estação de dez anos no gulag siberiano, apenas por ter idéias “diferentes”.
Antes, porém, nosso compassivo narrador, enquanto soldado, foi um eficiente estuprador de mulheres alemãs. “No exército de estupradores, todo mundo estuprava”, escreve o narrador à sua enteada. Mais tarde, Amis fornecerá uma justificativa para seu protagonista: “Sabemos muito a respeito das conseqüências do estupro – para as pessoas estupradas. De forma bastante compreensível, ninguém perdeu o sono tentando entender as conseqüências para o estuprador. O significado peculiar de sua tristeza pós-coito, por exemplo: nenhum animal jamais foi tão triste quanto um estuprador”
Para este narrador canalha, a desgraça – ou redenção – virá na paixão arrebatadora por Zóia, uma bela judia que responde por alguns dos momentos mais líricos da novela. “Ela era como um ato de desobediência civil […] Meu primeiro pensamento não foi […] Quando vou poder tirar a roupa dela [, mas] Quantos poetas vão se matar por sua causa? […] Quando ela andava, tudo oscilava.” Ocorre que Zóia não dá trela ao soldado de 1,80 metro e mãos grossas, e sim a seu meio-irmão, o miúdo poeta Liev. Esse triângulo amoroso é o eixo de Casa de Encontros. Pouco depois de ir para o gulag no Ártico, a quarenta graus negativos, sopa rala e trabalhos forçados, o narrador tem a companhia justamente de seu irmão. Os dez anos que passam ali são narrados por Amis com horror e precisão dostoievskianos – numa das passagens mais terríveis, um valentão gigantesco, que havia perdido as mãos por conta do frio, tenta acender um cigarro. “Ali estava nosso mestre: o homem tão imbecilizado pelo medo que não conseguia lembrar que não tinha mais mãos”.
Pouco antes de sair do gulag, Liev tem a sua noite de núpcias com Zóia no lugar que dá título à novela. Quando sai da casa, fica mudo por três dias, quebrando o silêncio só ao declarar ao mano: “Cruzei a fronteira para a outra metade da minha vida”. Durante os 40 anos que se seguirão, o narrador irá pasternakianamente se excruciar por saber o que aconteceu entre Liev e Zóia na Casa e irá remoer o amor que a judia lhe negou. Irá ainda contar à sua enteada, de modo totalmente unilateral, a história da Rússia: a morte de Stálin, a crise dos mísseis de Cuba, a guerra com o Afeganistão, a queda da União Soviética, o massacre tchetcheno na escola de Beslan.
Ocidentalismo versus totalitarismo
Os anos passam e o narrador se distancia do irmão, enriquece, casa-se com uma inglesa, angliciza-se, comete um ato profundamente torpe (não vou estragar o impacto) – sempre devotando profundo ódio ao totalitarismo russo. “Sabe, não consigo encontrar um russo que acredite nisto: ‘Queríamos o melhor, mas acabou sendo como sempre’. […] Queriam o que conseguiram. Queriam o pior […]. Gógol, Dostoiévski, Tolstói: todos insistiram em um Deus russo […]. O Deus russo não seria como um Estado russo, mas ia chorar e cantar enquanto brandia o chicote.” Por vezes, embora o tom naturalmente febril do satirista Amis neste livro seja bastante mais sóbrio e muito menos engraçado do que em uma obra-prima como Grana, sente-se que move a narração um horror à idéia de total.
Os irmãos são personagens de uma obra de história social de baixo, da “era das nulidades titânicas”: “A uma das concisas caracterizações de Conrad da vida russa – a ‘freqüência do excepcional’ –, eu gostaria de acrescentar mais uma: a freqüência do total”. A esse totalitarismo, Amis contrapõe outra idéia política: a do ocidentalismo. “Eu adoto generalizações. E quanto mais abrangentes melhor. O nome da sua ideologia”, aponta o narrador russo à enteada yankee, “é ocidentalismo”.
Em outro ponto da narrativa, Amis dirá que o estado russo atua sobre dois pilares: do terror e do tédio. Ora, esta idéia havia sido exposta em seu conto “Os últimos dias de Muhammad Atta”, quando analisa o mundo pós 11 de Setembro, bem como no conto “O Palácio do Fim” (vagamente inspirado no regime de Saddam Hussein) e também em um ensaio chamado “A era do horrorismo”, em que o escritor abre uma frente de batalha contra o islamofascismo (obcecado e furioso com os terroristas muçulmanos, Amis tem defendido a restrição de direitos de imigrantes, deportações e revistas de qualquer barbudo com jeitão de Osama). Daí a sensação estranha, sugerida no início deste texto, de que, no fundo, ao ler Casa de Encontros não estivesse lendo só uma recriação da miséria russa sob o totalitarismo do século 20 – mas um cripto-panfleto contra o totalitarismo islâmico do século 21, escrita com a raiva e riqueza de linguagem que um Céline seria capaz de despejar sobre seus odiados judeus.
Pode ser uma aproximação arriscada, caro leitor… Se for, mande o resenhista para a Sibéria enquanto degusta essa bela e estranha novela russa escrita por um inglês – uma novela sobre o choque do horror com o amor, sobre um amor que é horrível somente por existir em um ambiente de horror: “Quando abri a porta para ela, senti-me como uma criança que se crê perdida numa rua fervilhante de gente e então vê de repente a silhueta que resolve tudo, aquele indispensável deslocamento de ar”.