> Essa saiu no Estado, domingo. Aí vai:
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Leia antes de ficar velho
Mixando a biografia de J. M. Barrie, autor de Peter Pan, a uma ficção sem freios, o romance Jardins de Kensington, do argentino Rodrigo Fresán, é daqueles livros que – como a infância – não queremos que termine nunca
por Ronaldo Bressane
O tique-taque no bucho do crocodilo alerta: a infância é a mais maravilhosa e também mais desesperadora das estações. Esta excruciante conclusão perpassa cada linha do fabuloso Jardins de Kensington, de Rodrigo Fresán (Conrad, 516 págs., R$ 57). Neste romance, o perpétuo espanto pela descoberta do mundo, quando se vêem répteis que encerram relógios no ventre, e seu contrário, o entendimento que este mundo, tique-taque, tique-taque, logo acabará e você morrerá, estão presentes todo o tempo. “O personagem é a idade. Um dia você ganha seu primeiro relógio”, escreve Fresán – e logo lembramos de seu conterrâno, o escritor argentino Júlio Cortázar de “Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio” (História de cronópios e famas). “É o fim da infância sem obrigações. O relógio é um brinquedo, sim, mas um brinquedo delicado, um brinquedo sério. Um brinquedo que não se sabe muito bem para que serve, mas, de repente, lá está ele: mordendo seu pulso esquerdo como um crocodilo e infectando seu sangue com o vírus de horas, minutos e segundos.”
O narrador é um homem obcecado com o tempo. Não poderia ser diferente: é um bem-sucedido autor de histórias infantis. Seu pseudônimo, Peter Hook, é uma espécie de oxímoro literário, uma vez que aproxima violentamente as figuras do herói Peter Pan e do vilão Capitão Gancho (Hook). E como a infância é também espelho para nossa obscura vida adulta, Jardins de Kensington constrói-se todo especular. Abre com o suicídio de Peter Llewelyn Davies, que se atira sob o trem no tube londrino. Ou seja, abre com a morte de Peter Pan: Davies, sim, ele mesmo, um dos irmãos Davies que inspiraram a obra imortal de James Mathew Barrie. O dia da morte de Peter Davies – aos 63 anos, idade-limite para a velhice irrecuperável, todo fã dos Beatles sabe – coincide com a data de nascimento de Peter Hook, e, simbolicamente, também dos anos 60.
Se há uma década em que a idéia de juventude eterna foi mais vorazmente desejada (e em alguns aspectos, atingida), é esta – e Hook descreverá de dentro o fascínio e o terror de nascer filho de celebridades pop em plena Swinging London, como foi chamada a época em que a capital inglesa, regida por Beatles, Stones etc., parecia o centro cultural do mundo. O fascínio se dará pelo fato de os psicodélicos pais de Hook formarem um casal aristocrático cuja roda de amigos é animada por gente como Mick Jagger, Marianne Faithfull, Andy Warhol e Bob Dylan (o compositor, outra obsessão de Fresán, que vem traduzindo todas as suas letras, é protagonista de um episódio bizarro – que não se conta aqui para não tirar a graça). E a dor virá no fantasma do irmão mais novo de Hook, morto, ele se transformará num fetiche a iluminar a obra roqueira dos pais.
Morto imortal
O irmão morto de Hook é gêmeo do irmão morto de Barrie. O autor de Peter Pan foi profundamente marcado pela morte acidental de David, seu irmão mais velho, filho mais amado de sua mãe, pela beleza e força física. John, o filho feio e baixinho, promoverá uma espécie de fusão entre si e o irmão na figura de Peter Pan, O Menino Que Não Quer Crescer – lembre-se que David morreu aos 13 anos, idade-limite entre infância e adolescência. Numa das (muitas) passagens comoventes de Jardins de Kensington, Hook conta o enredo de um de seus best-sellers, Jim Yang e o Amigo Imaginário. Yang, um descendente de chineses abandonado pelos pais, tal como Hook e Barrie, usa sua cronocicleta para voltar no tempo até o ano em que o irmão do pai de Peter Pan morreu “para tentar impedir a morte de David Barrie na lagoa gelada. Eles conseguem, mas David morre outra vez poucas horas depois, atropelado por um cavalo desembestado. Tornam a impedi-lo; e David torna a morrer, tragado por um tear. Dez tentativas mais tarde – o irmão mais velho de Barrie morreu sucessivamente dos modos mais terríveis e ridículos, a última vez de um ataque de riso provocado por uma piada um tanto suja –, David procura Barrie e Jim Yang e lhes pede que, por favor, o deixem morrer em paz, certo?”. Eles aprendem que ser um “morto imortal” é doloroso demais – uma metáfora de que é preciso aceitar a morte como fato normal.
E encarar a idéia de morte, de envelhecimento, de decadência é justamente o contrário do que impõe a cultura pop nascida nos anos 60 – e que nos rege ditatorialmente até hoje, neste mundo em que ser velho “datou”: “Todo esse grande negócio baseado na idéia de que o novo é sempre melhor que o menos novo e que o clássico sempre será mais moderno que qualquer vanguarda de fim de semana”, escreve Fresán. Assim, Jardins de Kensington (nome do parque londrino onde Barrie viu pela primeira vez os irmãos Davies, modelos para os Garotos Perdidos) é não somente uma biografia crítica do autor de Peter Pan entrelaçada à narrativa de Peter Hook, como um diagnóstico cruelmente irônico de uma época em que a figura de um ser autocriado do naipe de Michael Jackson (nem homem nem mulher, nem preto nem branco, nem velho nem criança), o gênio da cultura pop imortalizado por um passo de dança que desliza eternamente para trás (o moonwalking), dono de um rancho sintomaticamente chamado Neverland, onde as crianças deitam e rolam (ou deitam e são roladas pelo rei do pop…), é ao mesmo tempo herói e vilão.
A maneira engenhosa como Fresán narra – ora direto à inglesa, ora barroco à portenha; ora pop, ora sofisticado –, sempre se referindo na segunda pessoa ao interlocutor, um ator de nome Keiko Kai (que dará ao fim da trama um peso impactante), passa a impressão de que ele está nos soprando no ouvido um mórbido conto de fadas. O romance tornou mundialmente conhecido Rodrigo Fresán, de 44 anos, outra das estrelas do círculo hispânico formado pelos amigos Roberto Bolaño, Enrique Vila-Matas e Alan Pauls. Este e Fresán virão em julho para a Flip; certamente, suas palestras estarão entre as imperdíveis do evento de Paraty. Por enquanto, cumpre-se afirmar que imperdível é Jardins de Kensington: corra, vá ler esse livro, o tempo não dá mole, o tique-taque do relógio dentro do bucho do crocodilo está cada vez mais alto, cada vez mais alto, mais alto, mas que dentes enormes você tem.
ok, você aumentou minha curiosidade, já grande, pelo livro. abraço!
e o cara ainda foi amigo do Bolaño. Mestre.
Dentes enormes? É pra te comer, chapéuzinho!