A estranha paixão entre um cara feio e meio loser e uma séria candidata a musa do cinema nacional? É o que me parece, na superfície, o trailer do Cão sem dono, filme de Beto Brant e Roberto Sciasca realizado a partir do romance Até o dia em que o cão morreu, de Daniel Galera. Pode ser o filme do ano, o cult da estação… não dá pra saber direito: não gosto desses trailers que picotam a narrativa. Teria editado só a cena em que madame Galera manda um delicioso cover de Cat Power. Só vendo o filme pra comentar melhor. Por enquanto, fique com a resenha que escrevi sobre o livro, anos atrás, no Prosa&Verso d’O Globo.
NÁUSEA
Gíria é o que não gira em Até o dia em que o cão morreu, segundo livro e primeiro romance do autor do volume de contos Dentes guardados. Ligeiro e seco, o texto de Galera é de uma angústia anônima camusiana. Aqui há um homem, uma mulher e um apartamento, mas o mal-estar não deixa que a ironia entre pelas janelas – o tom é melancólico. Galera não é um moralista. Nem por isso o narrador do gaúcho (na primeira pessoa), um tradutor desempregado, deixa de sofrer da náusea dos inadaptados a este cínico mundo – a ponto de isolar-se, sem telefone, no décimo-sétimo andar de um edifício com vista para o Guaíba.
O exílio não dura. Acompanhado por um vira-lata na rua, o tradutor acaba o deixando morar com ele. Acompanhado por uma modelo após uma balada, acaba, sem querer, se envolvendo com ela. Para este ermitão silencioso e meio bêbado, os afetos, canino e sexual, se equivalem – “Não sei dizer o que me atraía no cachorro. Sua simples presença, o fato dele voltar a cada dois ou três dias, me dava prazer. Como a Marcela”.
O misto de fascínio e repulsa que o tradutor sente por Marcela resulta em cruéis cenas de amor. “Há instantes eu tinha xingado ela, por ter aceitado aparecer num anúncio asqueroso de uma companhia telefônica […]. Depois que ela me mostrou o book preenchido de fotos tipo capa de revista, naquela estética repulsiva dos anúncios de grife, pele brilhosa de óleo e colorida de maquiagem, passei a trazer aquelas fotos à imaginação enquanto comia ela […]. Eu a humilhava, emporcalhava seus cabelos semanalmente aparados […]. Abusava dela deste modo porque era necessário destruir, erradicar qualquer resquício da modelo dos anúncios.”
A nóia mina a narrativa e o que parecia uma história de amor acaba se tornando uma espécie de fábula sobre a decadência de nossa época, como diz ao pé da orelha João Gilberto Noll – “a história de um jovem que se exaure antes da maturidade, se exaure pela ociosidade massacrante, sem saída à vista, se exaure porque o amor lhe confere apenas soluços secos, gozos avulsos”. Quem sabe por isso emane do livro uma aura que lhe confere, desde já – e sem favor nenhum –, o status de clássico.