“Sufragetes dançam com Saddam no poente.” O verso de “Saddam dance”, do Shiva Las Vegas, me veio na cabeça quando assistia ao mais novo snuff movie na rede, Hangin’ Saddam [nem linko aqui, vai no YouTube direto]. Uma dança macabra entre homens encapuzados e um barbudo com a corda no pescoço [ou seria um colar de mártir, uma ordem ao mérito?]. Enlaçar alguém pelo pescoço não deixa de ter um aspecto erótico – Burroughs sugeriu [na verdade, era obcecado por] essa ligação em livros como Cidades da noite escarlate, em que homens se enforcam e se enrabam simultaneamente, loucos pela droga que é extraída da mandrágora. Quando um sujeito é enforcado, perde o controle, entre outras coisas, do esfíncter, da uretra e, muitas vezes, ejacula. Do sêmen caído no chão, os antigos diziam nascer a mandrágora – planta que se acredita ter finalidades psicodélicas ou afrodisíacas.
Entretanto, eu não estava pensando exatamente no gozo de Saddam [mas olhe de novo sua face serena após a quebra da cervical e tente não pensar nisso agora…], e sim no gozo alheio. Foucault nos traça em Vigiar e punir uma história da microfísica do poder aliada ao suplício, à pena e à violência carcerária. Na aterrorizante abertura do livro, ele resgata um texto de 1757 que conta o castigo de um parisiense parricida:
“Damiens […] seria levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; em seguida, na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada em fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento.“
Uau. Em 250 anos, de Paris a Bagdá será que evoluímos tanto assim? Não creio. Mas a leitura de Foucault ajuda a iluminar um pouco essa história de barbárie institucionalizada. Ele nos explica que, ao dividir o corpo de um condenado em vários pedaços em praça pública, havia a consciência de que o Estado ostentava brutalmente um exemplo de seu poder sobre quem ousasse agredi-lo – afinal, matar o próprio pai não deixa de ser uma metáfora de atentar contra o rei: o Estado deve ser uno, indestrutível. A pena capital seria, assim, mais que moral, política.
Essa morte-suplício é a demonstração de técnica do Estado em prolongar o castigo, retendo a vida no sofrimento e “subdividindo-a em mil mortes”. Quanto pior o crime, mais sofisticada era a arte de aplicar sofrimento – de preferência, em público, gloriosamente, quando “o próprio cerimonial da justiça se manifesta em sua força. Por isso é que os suplícios se prolongam ainda depois da morte: cadáveres queimados, cinzas jogadas ao vento, corpos arrastados na grade, expostos à beira das estradas. A justiça persegue o corpo além de qualquer sofrimento possível”, raciocina Foucault. Mas aí o invento de Guillautine “limpou” a sentença final da morte-suplício que pegou o pobre Damiens lá em cima.
De lá para cá, a maioria dos países, incluindo a França de Sade [onde será que ele se inspirou para o finalzinho de 120 dias de Sodoma, hein?], têm abandonado a vil prática da pena de morte [no Brasil, esse país tão civilizado quanto bacana, assassinos rematados até se casam na cadeia]. Nos EUA, esse país tão civilizado quanto hipócrita, a pena capital virou um costume, porém é assunto privado, tema para cavalheiros, [ainda] não passa na TV. O condenado é tratado como um sujeito decente, tem direito a última refeição, último cigarro, padre, TV a cabo com 100 canais e até [no caso da pena por injeção letal] é drogado antes da agulhada final, pra não sentir muito. É uma morte administrada, corporativa – a palavra execução aqui não deixa de lembrar o sujeito da ação: o executivo. E o executado, sempre com o rosto coberto, não passa de um número a ouvir um “You’re fired!”.
Em Bagdá, Saddam Hussein dançou entre uma civilização que se crê a bala-que-matou-Kennedy e outra, antiga, alimentada pelo ódio tribal – contudo ainda tributária do antigo código penal francês. Assim, despediu-se cortesmente dos soldados yankees, que o trataram com gentileza durante seu julgamento. E caiu nas mãos dos inimigos xiitas, que não hesitaram em mandá-lo para o inferno com todas as letras. Teve ao menos a presença de espírito de não aceitar o capuz – certamente seu sério rosto de mártir será usado para motivar a fé de algum homem-bomba. Mas o ditador, que até então levantava o queixo e dava um recado apaixonado ao “seu” povo, perdeu a compostura e bateu boca com o verdugo como em uma besta briga de trânsito. E, meio apalermado, de repente ficou sem chão.
Assim é que um sujeito que nasceu num lugar miserável, apanhava de cacete de asfalto do padrasto, traiu sucessivas vezes seus chefes até tomar o poder, foi condecorado pela Unesco por seu impressionante programa de educação pública, aliou-se aos EUA de Reagan contra o Irã, matou milhares, escreveu romances e se proclamou sucessor de Nabucodonosor II, converteu-se no primeiro ditador cujo enforcamento o transforma em protagonista de um snuff movie gravado com um telefone celular. Ao estilo ocidental: a mão tremebunda do anônimo cameraman lembra demais a estética da câmera nervosa da MTV… No dia seguinte, lá estava o filminho de 2 minutos e meio na rede. E ninguém até agora se dispôs a brigar com o Google para tirar o filme do ar…
Na Era da Imagem, em que o que se vê é o que se vale, a morte de Saddam, que era para ser “cirúrgica” e virou um ritual bárbaro, será multiplicada milhões de vezes, seu pescoço partido a cada segundo por algum voyeur. Não deixa de ser, por mais sofisticado tecnologicamente que pareça, um tipo de suplício medieval. Uma lembrança de que, na real, não evoluímos porra nenhuma: ainda há quem goze vendo um sujeito dançar pendurado.