God save the queer

Perfil e entrevista para a edição 10 da revista Morel.

Vestida com uma capa de chuva, Ana Frango Elétrico fazia um solo de testa. Era uma noite fria e tempestuosa na Pompeia e o Sesc estava tomado por swifties de todos os lados. A quinhentos metros dali, no Allianz Parque, milhares de fãs de Taylor Swift que haviam pago muitos salários mínimos para ver a loirinha apresentar sua superprodução milionária de sempre, com raras alterações no setlist ou na performance, inundavam as ruas – em sua maioria, adolescentes em roupas com muito pink e glitter, uniformizadas com camisetas Eras Tour e as indefectíveis pulseirinhas da amizade.

Nada mais distante dos fãs de outra cantora que subia em outro palco ali perto: bem diferente do padrãozinho swiftie, a torcida de Ana Frango Elétrico reunia jovens e pós-xóvens portando camisetas com imagens ou frases irônicas tipo “Ler e caminhar podem salvar tua vida ou te levar para a cadeia”, cabelos coloridos, bigodes, pancinhas, piercings, tatuagens, roupas largonas e sovacos heterodoxos, óculos nerdosos, guias de candomblé, coturnos e botinas, num visual mais pra hedonismo queer. O visual de cada torcida que cortava o bairro dos Mutantes não deixava dúvidas ao olhar atento: enquanto o Allianz era ocupado pelo mainstream estadunidense colonialista, era no Sesc Pompeia que estava a vanguarda musical brasileira.

A Ana Frango Elétrico é uma das artistas mais inventivas que temos na atualidade, não é exagero afirmar”, comentava a crítica musical Pérola Mathias. “Em seu primeiro disco, lançado quando tinha 20 anos, fomos impactados por letras espertas, cotidianas, nada óbvias, mas muito palpáveis, que ganhavam corpo junto a melodias de muitas notas e sons tortos e quebrados. O segundo disco veio num crescendo sonoro de grandes arranjos, músicas mais assentadas em relação à produção, que passou a ser assinada pela própria Ana, ao passo que ela própria se tornava produtora de outros artistas. Ana passou a subir tanto em palcos pequenos quanto em gigantes com a mesma desenvoltura. Me Chama de Gato que Eu Sou Sua é mais uma etapa de criação, renovação e expressão de sua arte e, com certeza, da música contemporânea”, se entusiasma a crítica do perfil Resenhas Miúdas.

Em inglês, o álbum Me Chama de Gato que Eu Sou Sua ganhou a tradução trocadilhesca Call Me They That I’m Yours. O uso do “they”, “eles/as”, combina com a confusão de gênero expressa na autodefinição da cantora (cantore?) no perfil do Instagram: ela/elu/ele. Mas curiosamente esse “they” indica outro transbordamento, além da questão de gênero: o autoral. Nos álbuns anteriores, Mormaço Queima e Little Electric Chicken Heart (indicado ao Grammy Latino), a maioria das canções era da própria Ana. Ao contrário, neste disco toda sua é só a bela soul
“Insista em mim”. No entanto, a compositore/produtore (como se definiu na entrevista) é sagaz, e escolheu letras de diversos artistas – e todas poderiam ter sido escritas por ela. Um esperto trabalho de curadoria em que os features se dissolvem na personalíssima voz de Ana.

O álbum retrata romances em que as identidades de gênero são borradas, mais preocupado em mostrar essa fluidez – ou ‘confusão’, nas palavras da cantora – do que encontrar definições. Esteticamente, embaralha referências clássicas e alternativas numa espécie de nostalgia atemporal que ela refina desde o primeiro trabalho”, buscou definir o jornalista musical Lucas Breda, na Folha de S.Paulo.

Essa estética da confusão, da mistura de contrários, de ambiguidades, nuances e aproximações bruscas entre coisas estranhas já havia sido mapeada pela crítica Heloisa Teixeira (ex-Heloisa Buarque de Hollanda), no posfácio do livro Escoliose: Paralelismo Miúdo (Garoupa). “Um outro DNA geracional, quase insolente, que, partindo radicalmente para o testemunho pessoal e localizado, desmistifica toda e qualquer aura da poesia (pelo menos aquela dos nobres tempos dos cânones masculinos) em prol da liberação de uma fala corporal, libertária. Um DNA que se formata por associações rápidas e inesperadas, em que as poéticas da imagem, do som e da palavra são mais do que complementares: são uma só”, resume a crítica. Que aliás colocou a compositore, pintore, poete e cantore em sua antologia 29 Poetas Hoje, reedição da já clássica 26 Poetas Hoje, estrelada por nomes como Cacaso, Chacal e Ana Cristina Cesar – esta, uma clara referência para a autora de Escoliose. E, dado o atual resgate da autora de A Teus Pés, referência também de seu público.

Naquela noite, a lendária Pompeia mais uma vez se dividia entre jujubas docinhas e cogumelos desidratados. No cheio Sesc – os ingressos dos shows de lançamento de Me Chama de Gato que Eu Sou Sua haviam sumido em poucas horas –, Ana estava bem à vontade debaixo de uma capa de chuva transparente com adereços brilhantes. Para o repórter, que já havia presenciado outras aparições da carioca de 26 anos, Ana nunca pareceu tão segura no palco e do que fazer com a voz. Apesar da pose hipster do público, seu som é descaradamente pop e acessível. Não aquele pop industrializado da loirinha – embora ambas as cantoras, cada qual em seu campo, transitem pela linguagem da autoficção.

Mas o pop de Ana, cheio de camadas e superposições, é surrealista, nonsense, dadá; meio Talking Heads. A associação foi imediata quando a morena de cabelo onduladinho resolveu dar umas cabeçadas no teclado Minilog Korg em um solo de glide legato, em que as notas parecem deslizar de uma para a seguinte, ficando com a testa toda vermelha no meio da música “Debaixo do pano”, de Sophia Chablau – esta, outra criativa artista de sua geração. Um show tão divertido que até nos distrai do impressionante talento da banda de Ana Faria Fainguelernt (seu impronunciável nome real; o pseudo vem do apelido que tascaram no avô russo). Os shows no Sesc Pompeia marcavam o retorno bombástico de uma turnê por Holanda, Alemanha, Inglaterra, França e Portugal. Quando desceu do palco, Ana Frango Elétrico ainda estava ligada no 220.

Como foi a turnê europeia? Quais os highlights e quais os perrengues? Foi fantástico, pra mim é muito emocionante estar levando minha música e conhecendo lugares e pessoas, os highlights sempre têm a ver com shows públicos. “Music make the people come together.”
Quando digo música já estão implícitos os encontros. Nosso carro foi assaltado e perdemos um show, e eu sou uma pessoa que faz mala dum jeito terrível e obviamente inexperiente com isso tudo, mas não posso reclamar de nada. O astral foi incrível e só tenho a agradecer!

Como você vê a transição do segundo para o terceiro álbum? O terceiro disco é sempre um fantasma… Não sabia que era um fantasma [risos], ainda bem… Se soubesse, talvez tivesse sido. Pra mim foi muito gostoso e livre (apesar de sempre sentir algum tipo de pressão
– minha comigo mesma – de me afirmar, redescobrir e realçar descobertas anteriores). Foi um processo gostoso em que senti meu lado na produção maior do que como artista solo do projeto. O que acho que foi bem saudável, fértil, e deixou o meu processo um pouco mais preciso. Por ser meu terceiro projeto solo, fora outros bons projetos por que venho passando, senti uma autonomia e intimidade com os processos de um álbum.
Você é tão jovem e tem canções tão sofisticadas.

Me fala um pouco da tua formação musical e do que está estudando / pesquisando agora. Defina sofisticação [risos]. Não sei… Vejo minhas coisas bastante fora da caixa de um ideal de canção e de alguma forma completamente dentro. Porque existe ali a canção, mas ao mesmo tempo tem rompimentos, às vezes meio punks ou dadaístas. Acho que estou num momento como compositore investigando as estruturas que nosso ouvido conhece muito. Ao mesmo tempo, como produtore sinto que estou investigando outras estruturas que têm a ver com disco music e na verdade uma mistura grande entre o orgânico e o eletrônico. Nos últimos anos tentei me voltar um pouco mais ao piano, com auxílio, apesar de neste último
semestre não ter andado muito pelo Rio de Janeiro e não ter conseguido fazer aulas direito, de piano, junto de Raquel Paixão, que é uma professora e pianista fantástica, fez uma virada grande no meu novo momento ao vivo e sinto que tem um pouco desse novo momento no disco. E também o incentivo grandioso de Sérgio Machado, que me incentiva a programar e me aventurar também na área de programação de elementos eletrônicos. Acho que estou
nesse momento de produção e teclas. Mas sinto muitas vontades e desejos de aprimoramentos por dentro da música e artes visuais, falta tempo…

Gosto demais das suas letras e sei que você também é poeta. Tem poemas que são imusicáveis? Com certeza… acho que tem poemas que são muito musicais, mas sinto que tem poemas poemas e canções canções, apesar de sempre dar pra tentar. A MPB só tem mestre
poeta que insere de maneira fantástica o que quer que seja, é uma aula. Mas acho difícil e às vezes preciso adaptar. Às vezes não. Lancei na pandemia um livro com poemas,
anotações, ilustrações/desenhos/gravuras, Escoliose, numa referência meio Yoko Ono, mas tenho vontade de em algum momento lançar um livro com mais cara de livro,
menos livro de artista. Antes, ainda quero lançar um livro de artista de processos gráficos dos últimos dez anos, e lançar também um livro a partir do Me Chama de Gato
que Eu Sou Sua.

Como usar / fugir / matar / ousar / escancarar as inteligências artificiais? Como artista, se sente uma espécie ameaçada? Não me sinto ameaçada; sempre penso na música de Gil, tão atual, “Cérebro eletrônico”: “O cérebro eletrônico comanda/ Manda e desmanda/ Ele é quem manda/ Mas ele não anda/ Só eu posso pensar/ Se deus existe, só eu/ Só eu posso chorar quando estou triste/ Só eu/ Eu cá com meus botões de carne e osso/ Eu morro porque/ Porque sou vivo/ Vivo pra cachorro e sei/ Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro/ Em meu caminho inevitável para a morte”. Minha musicalidade é moldada e influenciada pela internet, não fosse o YouTube na minha adolescência eu faria algo completamente diferente. Conheceria pela metade o que hoje considero referência. Não saberia os nomes e tipos de microfone, como gravar um baixo acústico e até mesmo certos acordes. Às vezes me assusto, claro, com sua velocidade, capacidade de alternância da realidade em momentos decisivos, políticos e até mesmo pessoais do nosso dia a dia. Mas acho que é uma ferramenta importante e espero
que a gente entenda na prática o uso social da internet. Claro que no caso de inteligência artificial eu não sei porra nenhuma. Eu fiz umas esculturas em IA.

Você é parte de uma nova geração de músicos e artistas que não parece se preocupar se está fazendo MPB ou punk rock – digamos, grosso modo, que toca MPB com uma pegada punk, e punk com uma pegada MPB. Minha leitura é correta? Com quais artistas da
nova e velha geração você se identifica?
Acho que sim. Volta e meia falo que me sinto em um lugar de pós-MPB, e às vezes sinto que interpretam de maneira equivocada. Como se eu desdenhasse da MPB… quando é o contrário: me sinto completamente influenciade pela MPB, admiro e estudo muito nossos grandes nomes da música brasileira, que têm carreiras fonográficas brilhantes, verdadeiras aulas pra gente que tá começando. Acho que me identifico
justamente nesse lugar de cruza de MPB com pós-punk (em um sentido amplo).

Você se considera uma herdeira da Rita Lee? Acho que ela abriu espaços muito importantes principalmente neste lugar de ser uma mulher compositora. Então só agradeço essa mestra por toda sua jornada.

Como você vê esse movimento do pós-capitalismo em hiperconcentrar a audiência em raros nomes pop (Taylor Swift, Beyoncé, p. ex.) e ao mesmo tempo pulverizar milhões de artistas talentosos que serão sempre focados em nichos? Te incomoda? Ou te interessa o superpop global? Acho que o superpop é resultado de um projeto neoimperialista sociocultural
estadunidense que deu muito certo. Em uma medida é supertrágico e em outra é interessante entender como através da cultura e arte um país consegue se estabelecer
como potência e ditar tendências. Nesse sentido o Brasil é rico e ainda acredito que neste século ocuparemos um lugar de extrema importância cultural que vai ser outro
momento pós-Brasil bossa nova.

Ainda dentro daquela questão sobre inteligências artificiais, sempre achei teu nome uma coisa meio transumanista – meio mulher, meio animal, meio máquina. No novo álbum, já pelo título você lida com essa questão, digamos, trans, focando também a faceta de fluidez de gêneros. Queria te ouvir mais sobre este assunto e também saber se você lê artistas e
pensadores/as que falam sobre isso (agora me ocorre o Paul Preciado).
O disco de fato fala sobre o que poderia ser o sentido primeiro do que seria Ana Frango Elétrico. Fala disso tudo mesmo, mas é um disco confuso, acho que é sobre confusão, não tenho respostas ainda. Tenho vontades, incômodos e interesses sobre mim e meu corpo. Observar o mundo e o processo de gênero de outrens me amplia. Preciado com certeza está presente, recentemente li um livro de um autor trans argentino chamado I Acevedo e me marcou. Entre os contos, você percebia que ele passou por um processo de transição de gênero depois de se tornar
mãe. Enfim, estou ainda em busca, e essa trajetória poética pessoal está só no começo.


O livro do I Acevedo que você gostou é o Bate um Coração, da Jabuticaba, né? Fora esse, quais outros livros fizeram sua cabeça nos últimos anos? Esse mesmo! Tudo Sobre o Amor, da bell hooks, Manifesto Contrassexual e Testo Junkie, do Preciado, e o Torto Arado, do Itamar
Vieira Junior
.

Qual era mesmo a música em que você fez um solo de testa, e qual o nome do seu teclado? “Debaixo do pano”, da Sophia Chablau! Uma grande parceira que admiro muito. Ainda quero fazer um álbum cantando só músicas dela! Meu teclado é um Minilog da Korg… mas
não é meu, é emprestado [risos].

O humor é sua marca, desde seu nome de guerra. Acha que por conta disso pode não ser levada a sério? Com certeza, mas também não me importo. Eu me levo a sério demais, talvez seja até bom que não me levem em alguns momentos. Do que você tem mais medo? Tenho medo de avião, viaduto, prédio alto e rodovia.

O que seus antepassados russos vieram fazer no Rio de Janeiro? Vieram pra Bahia, depois Rio de Janeiro. Vieram atrás de uma vida melhor. Imigrantes…

O que veio antes, o ovo ou a galinha? Pra mim o ovo, talvez de algo que ainda não fosse galinha, mas se tornou.

O que existe após a morte de um frango elétrico? [Risos] Não sei! Só morrendo pra saber. Talvez algo mais homem, menos mulher e bicho!

O que tira você da tomada? Férias, que não sei o que é há um bom tempo [risos]. Estou precisando!

O que deixa você ligada no 220? Música, ideias, arte.

O que é sorte? Consequência!

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Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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