Sangue, tesoura e cola na obra de Beatriz Bracher

Com Guerra – I, Beatriz Bracher escreve uma história original da Guerra do Paraguai


Por Ronaldo Bressane, para a Quatro Cinco Um

A Guerra do Paraguai contada na primeira pessoa. Um livro inteiramente constituído de fragmentos de 112 testemunhas da guerra, organizados em ordem cronológica, em que a autoria se dá somente pela costura de textos originais e sua edição. Em outras palavras, um espécime ficcional muito raro no Brasil: um romance escrito à base de copy/paste.

Como fariam William S. Burroughs e Brion Gysin, uma proeza da literatura enquanto cut-up machine, ao praticar no gênero do romance histórico as técnicas da estética da apropriação. Uma linhagem inusual na literatura brasileira, de livros como Sessão, de Roy David Frankel (Luna Parque), que reproduz em versos a votação do impeachment de Dilma Rousseff, e o Mez da Grippe, de Valêncio Xavier (Companhia das Letras), que costura com notícias e objetos gráficos uma epidemia de influenza em Curitiba. Contar uma guerra desaparecendo quase totalmente enquanto autora é caso único.

Nuno Ramos não exagera quando diz, na orelha de Guerra – I, primeiro volume de uma trilogia que deve chegar a duas mil páginas: “Este livro em si mesmo é um acontecimento”. Para entender como alcançou a façanha –  empreitada de sete anos –, conversamos com a paulistana Beatriz Bracher. Ex-editora da 34, que publicou todos os seus livros, como os premiados Antonio e Garimpo, roteirista e argumentista de filmes de Silvio Bianchi e Karim Aïnouz, Bracher é hoje editora da Chão, onde garimpa histórias como as de seu novo livro: o grau zero da ficção, tão real que quase parece inventada. Nem Isaac Babel, n’O Exército de Cavalaria, imaginaria histórias tão terríveis como o capítulo “Castigo”, em que se narra a pena de morte de um traidor, ou o tristíssimo conto do tenente que perdeu seu cavalo.

Por que falar da guerra do Paraguai agora? Comecei a pensar em pesquisar em 2017. É uma guerra muito envergonhada, né? Já logo depois da proclamação da República não havia muito interesse em falar dela, porque foi uma guerra que no final foi se esticando e gerou uma grave crise econômica no Brasil. Qualquer momento seria um momento para falar sobre a Guerra do Paraguai, pois a minha questão é que a gente lutou: brasileiros lutaram, muitos morreram, há mil histórias. Sabemos mais como os americanos lutaram no Vietnã, ou como os europeus lutaram nas guerras mundiais, do que sobre esse conflito. E a guerra não é só lutar; no Paraguai, a maioria das pessoas morreram de fome, de doenças. Tudo começou quando li as Memórias do Afonso Taunay, um livro que ele pediu que fosse publicado uns 50 anos depois de sua morte. Ele descreve uma cena impressionante – essa história vai estar na terceira fase da minha trilogia. No fim da guerra tinha acampamentos com argentinos e brasileiros, e não estavam abastecidos da mesma forma, e viviam passando fome. Os argentinos começaram invadir o acampamento brasileiro para matar cavalo pra comer. Tem um jovem tenente brasileiro muito ligado ao seu cavalo, tem muito afeto pelo bicho. Fica acordado à noite toda, com insônia, pensando: será que os argentinos vão pegar meu cavalo? Um dia amanhece, ele ouve um barulho, vai ver: mataram o cavalo dele. Fica desesperado, é aquela comoção. O comandante brasileiro vai falar com o comandante argentino, que diz, bom, então, parece que foi essa turma. Escolhe um para levar a culpa, chama o comandante e o tenente, e fuzilam o sujeito na frente de todos. Daí o tenente volta para sua tenda e se mata. Nossa! Sabe? Me deu uma sensação… de que eu também sou aquilo. Penso assim: hoje nós brasileiros somos tanto descendentes dos senhores de escravos quanto dos escravizados e dos indígenas. Essa também é uma história do Brasil, muito violenta, muito pesada. Resolvi começar a entender. Fui ler outros livros e o que me encantou foi a linguagem de cada pessoa. A visão de mundo de cada um, como traduzia aquele universo. É uma coisa tão cheia de vida, não podemos fingir que essa história está morta.

Para sua pesquisa você leu livros como Maldita Guerra, de Francisco Doratiotto? Pesquisei só não ficção. Tem vários livros de ficção mas me determinei a não ler nenhum. Só peguei um romance que cita a história da mulher do guia que esteve na retirada de Laguna, porque enfatizei a presença das mulheres na guerra, bem como de crianças, pessoas negras e indígenas. Sobre a guerra mesmo, li muito pouco. Claro, li algo pra me localizar historicamente. Mas busquei o detalhe, por isso só tem o ponto de vista dos brasileiros. Não queria saber do ponto de vista argentino, dos paraguaios, dos uruguaios, porque isso iria me atrapalhar. Queria saber a história que os brasileiros nos contaram.

Como você se sente autora de um livro que é fundamentalmente um trabalho de edição? Fico imaginando o trabalho exaustivo que foi todo esse recorta-e-cola… Foi um trabalho bem cansativo. A parte mais chata é que a cada fragmento você precisa pôr o nome do autor, a página em que está, a data, o lugar em que vai ficar… Mas quanto mais ia convivendo com o trabalho, ia pensando isso aqui junto com aquilo, isso com aquilo outro, ia me divertindo. Em outros livros meus já trabalhei com edição, como em Anatomia do Paraíso, que tem partes de outros livros meus. No final eu coloco a fonte de tudo. A autoria fica em sentir que a voz de determinado autor é também a minha voz, posso sentir uma voz outra na minha voz sem transformar suas palavras, a minha voz não são exatamente as palavras, e sim a maneira como a voz está colocada. Este é um trabalho em que cada vez acredito, me estimula. Parece um trabalho cerebral, mas é muito emocionante, tem horas que dá um tesão você ir juntando os fragmentos, sabe, vai pegando o ritmo, essa frase aqui casa com essa outra.. É muito autoral. Sou editora, quando você edita um livro de um autor você fica de fora, mantém um respeito. Mas este é um trabalho completamente diferente. Aqui, tive de achar a minha voz nas vozes deles.

Alguns exemplos? Teva uma história de um oficial que veio do Pará, Albuquerque Belo, um diário em que ele expressa um pouco de subjetividade. Ele era muito orgulhoso do batalhão dele, tem coisas muito bonitas, a bandeira bordada pelas senhoras daquele lugar. Ele chega no Rio, todo mundo diz que o batalhão mais belo é o paraense. Ele é muito bem humorado. Quando ele chega no sul, percebe um clima muito frio, não tem roupas, não se acostumam com a comida, só comem peixe, muitos começam a morrer de cólera, de diarreia, aí no fim dissolvem o batalhão. É uma história muito comovente, porque é narrada muito de perto. Tem uma outra história. Falam muito mal dos hospitais, eram péssimos, os estudantes de medicina não eram bons nem caridosos. Achei uma gazeta médica com vários relatos de médicos escrevem. Um deles diz: não tem enfermeiro, não tem remédio, como vou curar as pessoas? Ele vai no mato, colher beladona, gasta todo o próprio dinheiro, inclusive moedas raras… Tem um que veio do Maranhão e diz que as fardas encantavam muito as famílias do Rio Grande do Sul, então os pais abriam a casa para os oficiais para que suas filhas conhecessem e arrumassem um bom marido. Ele comenta sobre a brancura de uma moça, diz que é linda, compara com as moças do Maranhão, mais escuras, fala de sua paixão, de seu encantamento, diz a ela que promete voltar… e acaba que não volta. Nesse volume tem mais histórias dessa expectativa, não tem os grandes combates ainda. Tem a invasão do Paraguai no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul e as atrocidades que os paraguaios fizeram, e os brasileiros se defendem muito mal.

Como você se sente autora de um livro que é fundamentalmente um trabalho de edição? Fico imaginando o trabalho exaustivo que foi todo esse recorte-e-cola… Foi um trabalho bem cansativo. A parte mais chata é que a cada fragmento você precisa pôr o nome do autor, a página em que está, a data, o lugar em que vai ficar… Mas quanto mais ia convivendo com o trabalho, ia pensando isso aqui junto com aquilo, isso com aquilo outro, ia me divertindo. Em outros livros meus já trabalhei com edição, como em Anatomia do Paraíso, que tem partes de outros livros meus. No final eu coloco a fonte de tudo. A autoria fica em sentir que a voz de determinado autor é também a minha voz, posso sentir uma voz outra na minha voz sem transformar suas palavras, a minha voz não são exatamente as palavras, e sim a maneira como a voz está colocada. Este é um trabalho em que cada vez acredito, me estimula. Parece um trabalho cerebral, mas é muito emocionante, tem horas que dá um tesão você ir juntando os fragmentos, sabe, vai pegando o ritmo, essa frase aqui casa com essa outra.. É muito autoral. Sou editora, quando você edita um livro de um autor você fica de fora, mantém um respeito. Mas este é um trabalho completamente diferente. Aqui, tive de achar a minha voz nas vozes deles.

Você também é roteirista. Imagino que deve ter trazido também essa expertise cinematográfica para o livro. Do cinema, trouxe o conhecimento da montagem. Como é que você pode acabar uma cena e começar outra sem contar a relação. Entender que o livro poderia ter partes, capítulos. Não temer dar uns pulos de estilo, tem uma coisa maior que vai unindo. Fazendo o livro eu falava, cara, alguém tem que fazer um filme disso! São muitas histórias bonitas e interessantes. Mas aí não vai nenhum mérito meu. Ele poderia ser adaptado por uns 20 mil cineastas [risos]. Não é o assunto que faz um bom livro, e sim como lidar com aquele assunto, e aquele assunto ser de verdade. Queria que minha autoria sumisse. Não queria que a história ficasse adjetiva. Nos títulos, queria que o leitor já tivesse uma ideia do que iria acontecer naquele capítulo. Não queria mostrar nenhuma interferência minha. Não havia outra maneira. A beleza da literatura é a forma das pessoas contarem. Teve uma hora que me deu um clique: vai funcionar usando só depoimentos. Sou editora da Chão, e lá o livro é o próprio documento histórico, o historiador faz o posfácio. Então no meu livro é o chão que me interessa, a fala de cada autor.

Alguns exemplos? Teva uma história de um oficial que veio do Pará, Albuquerque Belo, um diário em que ele expressa um pouco de subjetividade. Ele era muito orgulhoso do batalhão dele, tem coisas muito bonitas, a bandeira bordada pelas senhoras daquele lugar. Ele chega no Rio, todo mundo diz que o batalhão mais belo é o paraense. Ele é muito bem humorado. Quando ele chega no sul, percebe um clima muito frio, não tem roupas, não se acostumam com a comida, só comem peixe, muitos começam a morrer de cólera, de diarreia, aí no fim dissolvem o batalhão. É uma história muito comovente, porque é narrada muito de perto. Tem uma outra história. Falam muito mal dos hospitais, eram péssimos, os estudantes de medicina não eram bons nem caridosos. Achei uma gazeta médica com vários relatos de médicos escrevem. Um deles diz: não tem enfermeiro, não tem remédio, como vou curar as pessoas? Ele vai no mato, colher beladona, gasta todo o próprio dinheiro, inclusive moedas raras… Tem um que veio do Maranhão e diz que as fardas encantavam muito as famílias do Rio Grande do Sul, então os pais abriam a casa para os oficiais para que suas filhas conhecessem e arrumassem um bom marido. Ele comenta sobre a brancura de uma moça, diz que é linda, compara com as moças do Maranhão, fala de sua paixão, de seu encantamento, diz a ela que promete voltar… ee acaba que não volta. Nesse volume não tem os grandes combates ainda. Tem a invasão do Paraguai no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul e as atrocidades que os paraguaios fizeram, e os brasileiros se defendem muito mal.

Talvez no 3º volume a gente vai um pouco do genocídio propriamente disso? O genocídio já está acontecendo desde o começo, pois morre muita gente de fome e de doença, dos guaranis aos brasileiros. A maior parte do tempo a guerra fica numa numa distância de 20 km quadrados, entre abril de 66 e Junho 68. Quando chega em Assunção, Caxias, o comandante das forças aliadas, fala: bom, acabou a guerra. Só que Lopes foge e Pedro II resolve que a guerra só vai acabar com ele preso ou morto. Caxias diz que está doente, vai para o Uruguai. Fica aquela discussão sobre se Caxias está mesmo doente, até que o Conde D’Eu chega Janeiro de 69 até março de 70, mais um ano e três meses de guerra. Aí são só pequenas escaramuças. Depois, são muitas crianças que lutam do lado paraguaio. Lopes resolve colocar crianças para lutar e a gente aceita.

Você se atém somente a testemunhos de brasileiros. Às vezes tem alguma citação de um brasileiro citando um paraguaio. Eu coloquei um pouco de artigo de jornal brasileiro. São textos todos na primeira pessoa. Não é um livro sobre a guerra, é um livro da guerra em primeira pessoa.

É um livro escrito a quente, no calor das batalhas recém terminadas. Mesmo aqueles que não foram escritos a quente estão muito comprometidos, pois são histórias narradas a partir de testemunhos diretos.

Diz-se que em uma guerra a primeira vítima é a verdade. Você encontrou verdades inconvenientes sobre o caráter brasileiro nesta pesquisa? Pra 95% dos brasileiros ilustrados, tudo deve ser novidade. Na escola a gente não aprende nada sobre a guerra. Por outro lado, há muitas teses e livros. Pra historiadores, nada do que eu fiz é novidade. Uma coisa interessante que descobri se relaciona a informações sobre ex-escravizados. Diz-se que era um exército de escravizados, de libertos. Na verdade a gente fica sabendo que foram no máximo 10%. Mas em essência era um exército de não-brancos: negros, pardos, descendentes de indígenas. E os paraguaios nos chamavam de macaquitos. Pedro II era retratado como um macaco grande com uma coroa. Tem também aquela história de “fui no Itororó beber água e não achei”: a batalha ali foi tão sanguinária, morreu muita gente, que a musiquinha que a gente aprende é porque a água do Itororó estava tão vermelha de sangue que… não era mais água. O Caxias escreve uma carta ao ministro da Guerra, narrando essa batalha, e diz que “por conta da indisciplina do nosso exército, sempre tento entrar com um número muito maior de soldados do que o inimigo. E isso se deve à presença do ‘elemento servil’, que continua achando que é escravo, só mudou de dono e não tem a noção de pátria”. Uma acusação moral que não tem cabimento nenhum. Fiquei muito impressionada com as mortes por doenças. E também a grande quantidade de mulheres que acompanham o exército. Mulheres esposas, amantes, profissionais do sexo. É uma marcha que vai levando muita gente consigo. As máquinas de guerra são muito pesadas, então eles têm de ir no ritmo daquelas máquinas. Me impressionaram essas condições físicas extremas.

Tem cartas também de ex-escravizados? Não, esse é um livro de homens brancos em geral, jovens oficiais e voluntários. Conforme vão chegando no Rio de Janeiro os inválidos, aleijados e mutilados, as pessoas não querem mais então acontece o recrutamento à força. A maioria dos soldados não sabe escrever. O maior contingente de alferes que escrevem são de descendentes de alemães do Rio Grande do Sul. E aí é curioso porque são coisas mais curiosas do cotidiano. O Benjamin Constant é o que mais critica o exército.

E aí você tá agora imersa na criação desse segundo volume? Já tinha feito o segundo volume quando apareceu uma coleção enorme de livros sobre a guerra do Paraguai. Uns 25 livros com informações que eu não tinha. Estou acabando de catalogar os fragmentos desse livro para refazer o número 2 e então chegar no número 3.

É um empreendimento de fôlego, né? Eu não sabia que ia ser assim, mas agora agora não tem mais não tem mais volta. Porque é legal, eu gosto na verdade. È o que chamo de escrever, unir os fragmentos. O fim é a morte do Lopes. Um desses alemães conta que foi ele mutilado, nem um outro fala isso. Tem coisas que eu sei, mas se os soldados brasileiros não me dizem não posso contar. Sei que o Conde D’Eu mandou fuzilar uns oficiais. Mas sem os depoimentos eu não posso pôr. Eu tenho que colocar o que o pessoal me conta. É uma coisa um pouco claustrofóbica às vezes. Por isso digo que é um romance, porque a verdade está dos depoimentos.

Mas você já pensou na possibilidade de contar essa história do lado dos argentinos ou do lado dos uruguaios ou do lado dos paraguaios? Não mas eu gostaria muito que escritores argentinos, uruguaios e paraguaios fizessem. Os brasileiros falam muito mal dos argentinos. Provavelmente os argentinos também odiavam os brasileiros [risos].

Você nunca quis dirigir o olhar do leitor ou fazer algum tipo de interpretação em cima dos depoimentos que foi escolhendo. Às vezes até queria, mas eu não tinha material para fazer. Você sabe, quis pegar o que era bonito, o que era forte. A lógica é de um romancista, de um roteirista, não de historiadora. Eu só pesquisei em livros que encontrei em sebos, livros em que os pesquisadores já tinham colhido cartas, diários, documentos. Realmente é um livro também de leitora.

O que do caráter brasileiro você percebeu nessa colcha de retalhos? O José Murilo de Carvalho e o Ricardo Salles falam que é a guerra do Paraguai foi um momento inaugural da formação do sentimento de brasilidade. Porque nunca um brasileiro do Maranhão ou da Bahia saiu para defender o Rio Grande do Sul ou o Mato Grosso. A comoção com as mulheres que foram estupradas e as crianças degoladas pelos paraguaios atingiu o país inteiro. E você vê no livro as descrições que o pessoal do Nordeste vai fazendo dos Pampas… os próprios gaúchos, quando conhecem os baianos. O Conde D’Eu é muito preconceituoso, mas é muito interessante. Ele faz um diário em que conta que os gaúchos têm profundo desprezo por quem não anda a cavalo. Diz assim: o Brasil se divide em dois, os gaúchos e os baianos; pro gaúcho, quem não é gaúcho é baiano [risos]. Para o Brasil é um momento muito importante. Tem o livro do Boris Schneidermann, o Guerraem Surdina, que fala sobre a união e a fraternidade. E tem essa desorganização absoluta do exército, uma coisa cruel, que faz morrer muita gente. Mas os exército paraguaio e uruguaio não eram muito melhores. Nitidamente é um livro de brasileiros. Você se identifica. Aquele jeito de ver o mundo é de um brasileiro. O Tauney, o Dionísio Cerqueira, parecem naturalistas. Desenham muito a natureza e os indígenas. O Taunay descreve muito lindamente a Mata Atlântica, a subida de Santos para São Paulo. O meu partido ao escolher esses textos sempre foi o detalhe. Não é o grande, é o pequeno. Então por isso uma descrição da Serra do Mar faz parte da história da guerra do Paraguai, o cara ficar enamorado de uma menina do Rio Grande do Sul faz parte da guerra.

Você disse “somos não só descendentes dos dos escravizados, mas também dos senhores de escravo, descendentes dos indígenas”… Apesar de eu não tomar partido sobre quem tinha ou não razão nessa guerra, não posso dizer que é um livro neutro. Por exemplo, eu separei todos os trechos em que apareciam referências a mulheres, crianças, negros, indígenas, cadáveres, animais e doenças. A história dos livros de história fala pouco dessas pessoas. Então nesse livro eu tentei falar mais. Quase sempre os comentários sobre os indígenas é pejorativo, que é feio e traiçoeiro. Desse quadro brasileiro de tanta exploração, de relações tão desiguais desde o começo, e dessa língua portuguesa e dessa mistura que nós somos, que mesmo quem não é descendente de escravizado ou de indígena é brasileiro, em nossa cultura temos tanto o ethos matar indígenas e matar negros quanto o ethos de odiar brancos. Essa questão de conflito de raças não aparece tanto porque se estava numa guerra. O lado da exploração tem muito dos oficiais e do soldados. Eu não sabia que camarada é o nome do empregado do oficial, que também é um soldado. E daí tem essas relações entre os oficiais, e cada oficial tem o seu. São relações de patrão e empregado, mas também de companheirismo.

Você pode identifica o tal caráter “cordial” do brasileiro nesse livro? Olha, tem coisas como a ênfase com que determinados autores falam que brasileiros cuidavam bem dos presos paraguaios me faz crer que eles não cuidaram nada bem, provavelmente [risos[, não deveria ser bem assim…

Como é que foi o processo material mesmo de trabalhar? Às vezes me sinto regendo uma orquestra, tem uma coisa meio de me sentir compondo uma música, vou juntando um fragmento no outro e vou vendo o que soa bem. Às vezes são mais de 100 fragmentos em um único mês, por isso parti para o copy-paste manual, porque no computador eu não teria uma visão inteira. Não foi por amor a algo antigo [risos].

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Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

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