
O sonho é uma simulação do futuro, diz Sidarta Ribeiro.
“Sempre que tenho uma situação de pressão, presto atenção aos sonhos e tenho boas respostas. Nos EUA, trabalhava numa estação de campo e dividia o carro com um colega. Uma vez, cheguei para buscar o carro, o cara o tinha levado e ido pra casa. Não pude ir à estação. Fiquei puto! Liguei pro cara e ele veio com um ‘ah, esqueci’. Me enfureci e trabalhei o dia inteiro pensando em pegar o sujeito. Tenho 1,70 metro, mesmo assim achava que poderia dar uma bela descompostura nele, com seus 2 metros de altura. Fui dormir enraivecido. Então sonhei o que tinha planejado. No sonho, o cara me enchia de porrada. Lógico! Aí, acordei, e deixei pra lá – quando o mal está feito, não tem o que fazer, melhor se adaptar. Assim os sonhos nos ensinam.”
“O mais importante e bonito, do mundo, é isto: as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
foram terminadas – elas vão sempre mudando”, disse Guimarães Rosa, ou melhor, Riobaldo Tatarana, em Grande Sertão: Veredas. Parece contraditório, mas posso dizer que, desde que me contou a história acima na primeira conversa que tivemos, dezoito anos atrás, Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro só ficou mais parecido com o que ele já era. De lá pra cá, o brasiliense saiu do Instituto de Neurociências de Natal, de que havia sido um dos estruturadores, fundou o Instituto do Cérebro, também em Natal, e, ao lado das investigações sobre o uso de psicodélicos, cristalizou a carreira de escritor.
Publicou um catatau de quase 500 páginas, O Oráculo da Noite (Companhia das Letras), uma
investigação sobre o estado onírico relacionando diversos saberes – biologia, história, psicologia, religiões – que se tornou um improvável best-seller. Muitas outras coisas
mudaram de lá pra cá para o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A começar por seu novo domicílio, o Rio de Janeiro, onde integra hoje a equipe de pesquisadores do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz.
Seu foco passou a ser tudo o que envolve o Sonhar. Pesquisa e defende saberes ancestrais, indígenas, africanos, e, na mesma estrada, na atenção aos transtornos psíquicos, o uso de substâncias psicodélicas, como LSD, ayahuasca, psilocibina, DMT e MDMA, além da maconha – que, para este biólogo de formação e capoeirista de devoção, está para a medicina do século 21 como os antibióticos estiveram para o século 20. Tais substâncias atuam na plasticidade dos neurônios, criando sinapses e possibilitando tratar epilepsia, depressão e doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer.
“A gente precisa olhar para os psicodélicos com respeito, como estão fazendo Estados Unidos,
Israel, Alemanha”, pede Ribeiro, ferrenho ativista da legalização das substâncias psicoativas. Via realidade virtual – ou seja, Zoom –, Morel conversou com o neurocientista por algumas horas e colecionou, além de histórias saborosas e spoilers sobre os três livros que ele está escrevendo, que “dormir sobre o assunto” não é um lugar-comum. Sonhar é uma das mais inteligentes
máquinas de resolver e antecipar problemas – como sabiam Freud e todos os pajés e xamãs que já passaram por este planeta.
Vou começar contando um pesadelo do Jorge Luis Borges, o grande amigo do Bioy Casares,
padroeiro desta Morel. Uma vez ele sonhou que estava passeando com um amigo e o sentia meio diferente. O amigo mantinha a mão dentro do casaco. De repente, o amigo disse “estou meio diferente” e tirou a mão de dentro do casaco. Era a garra de um pássaro. Borges acordou assustado. Mas depois pensou melhor e chegou à conclusão de que ele próprio, Borges, tinha plantado a mão de pássaro dentro do casaco do amigo para, no fim do sonho, tirá-la e assustar a ele mesmo. Com isso, oferece uma tese: os sonhos são a primeira ficção humana, antes mesmo das memórias – que também são uma ficção. Em seu O Oráculo da Noite você comprova a tese de Borges ao demonstrar como de fato os sonhos são os consolidadores das memórias… Os sonhos são feitos de memórias. São feitos da reativação de memórias encadeadas cada vez de uma forma diferente, como se cada fragmento de memória
fosse um Lego. Quando você polimeriza esses Legos, faz estruturas que são processos no tempo, a experiência única. E isso acontece seja quando você tá dormindo no sono REM – e acontece no cachorro, no gato –, mas acontece também na vigília. Quando seu ego consciente relaxa um pouquinho e viaja, imagina, devaneia, chega a processos biologicamente muito semelhantes aos do cérebro quando sonha. No sono vem a característica mais forte de o cérebro fazer associações de pensamentos distantes, utilizando certos atalhos que às vezes são fonéticos, às vezes são são metafóricos, às vezes são literais mesmo. Então concordo, na verdade, Borges, o Bioy Casares e o Cortázar nos anos 50 estavam antevendo um monte de questões contemporâneas, já falavam de metaverso e de inteligência artificial.
Teu livro está na cabeceira, né? Antes de dormir, abro em qualquer página, e de algum modo induz mesmo o sonho, pois, como você diz no livro, “ler sobre sonhos faz sonhar”. E esse livro realiza o sonho de uma vida. Queria saber se o livro continua te fazendo sonhar, se realizou sonhos que você nem sabia que tinha, se inspirou outros sonhos… Estou com 52 agora, esse livro saiu em 2019 e marca o fim do primeiro tempo da minha vida. Mudei muito quando estava quase terminando o livro. Minha mãe morreu, várias outras circunstâncias me jogaram num vórtex. O livro fala muito de morte. Foi mesmo o fechamento de uma trajetória. Foi a coisa mais difícil que já fiz na vida, do ponto de vista profissional. Talvez não a coisa mais difícil existencial, porque tem os filhos, os casamentos, a capoeira, mas o livro foi uma coisa enorme. E aí comecei a receber um monte de de feedbacks. Gente que fala para mim que o livro ajudou a se reconectar com sonhos… Isso para mim é extremamente gratificante, fico megafeliz. Ele é um catatau científico, mas também é um livro de autoajuda. Quis que fosse uma experiência agradável para a pessoa usar como uma plataforma para o mergulho onírico.
Aí depois disso veio a pandemia… E minha vida deu um twist. Me separei, casei de novo, meus
filhos foram embora de onde eu morava, fiquei longe deles, vim morar no Rio de Janeiro por causa deles. Durante a pandemia escrevi o Sonho Manifesto, que de certa maneira são as consequências políticas do Oráculo. Um tom político em registro comedido, no sentido de dar elementos, contar histórias, construir um clima para dizer que sonhos não são só para consolidar memória, também ajudam a gente a se adaptar ao mundo, têm a ver com inteligência emocional, a noção de comunidade, a capacidade de sonhar junto, ter um
coletivo imaginado – coisas fundamentais que vieram lá do Paleolítico, mas que a gente ainda usa no mundo urbano contemporâneo. Quem entende essa capacidade são os povos indígenas originários – e o Oráculo meio que leva para esse lugar. Por isso é que no Sonho Manifesto sugiro “10 exercícios de otimismo urgente”, um tratado de “otimismo apocalíptico” [risos], que expressa transformações que sofri na pandemia.
Quais foram? Parei de comer carne, passei a preparar meu alimento, praticar yoga diariamente, levar mais a sério a capoeira, a estar mais presente junto às pessoas que me importam, não apenas devaneando o tempo todo. Deu uma aterrada boa. Tive essa sensação de que a gente tem tudo pra sair do atoleiro em que se encontra como espécie. E, ao mesmo tempo, se a gente não fizer rápido o que precisa ser feito, não vai mais ter tempo. A gente precisa fazer a curadoria das nossas ancestralidades, separar o joio do trigo. Tem a ver com partilha, com compaixão, e com nosso metabolismo. Tem a ver com os mecanismos da serotonina, em oposição aos mecanismos da competição, da agressividade, do acúmulo, que têm a ver com a dopamina. Isso é uma simplificação, claro. Estou dizendo aqui um pouco
daquilo que a gente aprendeu com a ciência psicodélica sobre os efeitos dessas substâncias no nosso corpo. O caminho da acumulação leva à doença da mercadoria, que se relaciona, biologicamente, a uma via dopaminérgica insaciável, a via cocaínica, que não tem fim. Ainda que a pessoa curta muito a viagem da dopamina, a plenitude não chega nunca, ela está sempre querendo mais. A outra via, que é a via da serotonina, seria por exemplo uma experiência com o MDMA, que também envolve a dopamina, mas sobretudo a serotonina, e aí a pessoa vai encontrar sensações de zero ansiedade, fraternidade, amor generalizado – coisas bem cristãs, se pensar bem. Então o Sonho Manifesto foi também esse grito: político mesmo é dormir bem, comer bem, fazer exercícios, não ter relações tóxicas, não trabalhar demais. Mudar
o mundo é lidar com a vinda dos robôs da inteligência artificial, pra tirar os bilionários dessa onda ruim. É a tarefa das nossas gerações.
E tudo isso leva aos livros que você está concluindo agora. Tem três livros rolando. Um
praticamente pronto, o Flores do Bem. Sai pela Fósforo. É um livro sobre a maconha.
Que título obviamente bom, ninguém pensou nisso? [Risos] Foi o que pensei, “será que alguém já pegou, não é possível!” A ideia surgiu durante um retiro vipássana que fiz com minha companheira, Luiza Mugnol Ugarte. É uma terapia de choque, não? Dez dias sem
falar… Velho, é bem difícil. Dez dias sem sequer olhar no olho de ninguém. Meditando dez horas por dia. Dessas dez, três horas em absoluta imobilidade. Um negócio bem difícil, mas super-recomendo. Quero fazer o segundo. Quando você está meditando, é acossado por todo tipo de experiências psíquicas. Podem ser de avidez, que a gente, na sociedade, poderia achar que são positivas, mas não são, na verdade. Podem ser experiências de aversão, que seriam as negativas, então você ficar naquele silêncio completo, e no ápice da introversão, de contato consigo mesmo, mesmo os pensamentos mais pequenininhos se tornam gigantescos… e aí você é tomado por verdadeiras surras de pensamento, que podem ser ruins ou boas. Você não pode falar, não pode escrever, não pode gravar áudio, não pode nada, fica cheio de ideias dentro da cabeça. Aí tive a visão desses três livros. Um, que já estava em curso, é um projeto de longo prazo com um grande amigo meu, José Luiz Balestrini, psicólogo junguiano e mestre de kung fu. A gente assinou com a Companhia das Letras, vai ser uma maratona. A ideia é fazer o mapa da evolução dos arquétipos, começando há uns 3 milhões de anos, desde os Australopithecus, fazendo as correspondências entre o mundo psicológico, o aparelho psíquico e o substrato neural ou hormonal, enfim, biológico, do cérebro. E tentar chegar ao tempo presente. A gente está escrevendo os primeiros capítulos.
E o Flores do Bem? Lá no meio do vipássana de repente me veio esse título de um livro sobre a
maconha. Fazer uma mistura de divulgação científica e autobiografia. Já tenho um livro sobre o tema, em conjunto com o Renato Malcher-Lopes, Maconha, Cérebro e Saúde. Mas o novo livro é autobiográfico: falo da minha relação com a planta, da adolescência até hoje. Tem um monte de histórias interessantíssimas. Por exemplo, a relação do Louis Armstrong com a maconha. Ele foi responsável por popularizar o uso da maconha entre os músicos daquilo que a gente hoje chama de jazz. Numa gravação de 1928, chamada “Muggles”, que quer dizer maconha, ele pela primeira vez gravou um improviso. Então é da planta que nasce a ideia de fazer os jazzistas se libertarem da partitura. Não é pouca coisa. O livro aborda histórias de várias outras pessoas, aspectos que me surgiram no sem-número de palestras que dei sobre o assunto desde 2007. Está quase pronto. E tem um terceiro livro que prometi para o Luiz Schwarcz, cruzando ciência e história, sobre os psicodélicos clássicos. Pegando um gancho no “otimismo apocalíptico”:
estamos no inverno e hoje faz quase 40 graus em São Paulo. Te pergunto: como continuar sonhando em um tempo em que, em pleno aquecimento global, o filme mais falado seja sobre um cientista que inventou a bomba atômica? Mais que nunca temos de sonhar. O sonho é nossa ferramenta ancestral para construir futuros. A gente precisa imaginar um futuro em que a gente consiga ficar no planeta, porque a gente tem inviabilizado não só nossa existência como a possibilidade de existência para muitas espécies. Como diz o grande professor e sambista Nelson Monteiro Vaz, da UFMG, pioneiro da imunologia no Brasil, “o fim do mundo vai ser lento e fedorento”. E é óbvio que os robôs vão desempenhar papel fundamental nos próximos 20 anos. Vai ser todo mundo excluído. Juntaremos metalúrgicos com motoristas, oftalmologistas, advogados, escritores, jornalistas, cientistas, farmacêuticos, motoboys, roteiristas, todo mundo desempregado pedindo a renda básica universal para o Suplicy [risos]. Só as máquinas vão trabalhar. A profecia marxista está sendo corroborada: o trabalho morto tem tomado todo o espaço do trabalho vivo. Se for para essa economia rodar e os seres humanos consumirem, vamos todos ter de ganhar uma “bolsa-existência”. Essa transição vai demorar um pouquinho, mas as máquinas vão fazer todo o trabalho. Nessa transição a gente já está vendo as pessoas virando super-humanos: uma pessoa equipada com ChatGPT-4 versão paga está voando com propulsores, né? Essa é uma ferramenta incrível, ainda que não seja 100% confiável, seus resultados têm que ser checados sempre. Vejo muita coisa mudando muito rápido. Então, responderia assim à tua pergunta: vai ser impossível sonhar se a gente não sonhar agora. Afinal, o pesadelo já foi bem mapeado pela ficção científica dos últimos 100 anos.
Que cientista brasileiro mereceria um filme tipo Oppenheimer? O que o Elisaldo Carlini fez
é gigantesco. Foi um titã. Merecia um Nobel. Foi responsável pela formação no Brasil de uma comunidade que pesquisa canabinoides com competência há décadas, contra tudo e contra todos. É revolucionário o que ele fez! Outra pessoa maravilhosa é a Niède Guidon. Nossa Senhora! Seu trabalho é central pra tudo o que aconteceu nos últimos anos na pesquisa da interface entre arqueologia, paleontologia e genética de populações. Comprovou que a ocupação humana nas Américas é 10 mil anos mais antiga do que se pensava. Agora, se for pro lado Oppenheimer de um exemplo de cientista que fez uma coisa extremamente horrorosa, talvez seja o doutor Pernambuco Filho, que nos anos 1920 foi em um encontro na Liga da Nações para banir o ópio no mundo, e afirmou que a maconha era pior que o ópio, que as pessoas que fumavam não trabalhavam. Aí começou a movimentação para proibir planetariamente a maconha, culminando em 1937 com a reforma da lei que a proibiu nos EUA.
Há quem diga que a gente esteja vivendo a Renascença Psicodélica, por conta da regulação do
uso da cannabis, do MDMA e de outras substâncias psicoativas em países mais avançados. Concorda com essa tese? Se sim, quando que o Brasil vai participar mais ativamente desse movimento? Do ponto de vista das ciências, a Renascença teve seu boom nos anos 50. Muita pesquisa interessante foi feita nesse período, descobertas que foram suprimidas pela guerra às drogas, intensificada nos anos 70 e 80. Mas a ciência hoje voltou com tudo no estudo dos psicodélicos clássicos. Maconha e outras substâncias retornam à medicina, entrando pela porta da frente pela segunda vez. A maconha já tinha estado na medicina ao longo de milênios em várias farmacopeias, até ser expulsa no século 20, assim como os psicodélicos tinham entrado nos anos 50 e 60. Só que o uso psicoativo da cannabis foi descoberto há milhares de anos, provavelmente entre a China e a Índia. Depois se espalhou pelo mundo, e na África ganhou
uso medicinal importante, que foi trazido ao Brasil. A prática foi muito combatida, mas nunca foi embora, sendo sempre usada pela população rural e urbana negra e indígena. Já no caso dos psicodélicos, a gente tem que falar das populações ameríndias amazônicas, como a ayahuasca, e da América Central e do México, como o Psilocybe cubensis, mas tem também a iboga na África. A ciência acadêmica universitária já entendeu que são medicinas poderosíssimas, que modificam rapidamente o organismo e podem inclusive formar novos neurônios e ser usadas para cura de várias enfermidades. Depende muito do setting, do contexto, e quem realmente entende disso são os pajés. Eles sabem que o uso da planta vai muito além, tem a ver com estímulos, sons e cheiros e outras coisas muito importantes durante a experiência, como as próprias crenças de quem passa pelo tratamento. Então você é um esperançoso. É um momento importante, mas tem que haver um encontro de saberes,
um alinhamento de cosmovisões, tanto dos povos originários quanto das ciências acadêmicas, e não a velha apropriação cultural. Se você for ver a quantidade de remédios que existem hoje nas farmácias que vendem saberes indígenas, e não houve nenhum tipo de repartição de benefícios… O Brasil é signatário do Protocolo de Nagoya, sobre a convenção de diversidade biológica e cultural. A gente reconhece em nível diplomático ser preciso criar mecanismos para repartição desses benefícios, que são materiais. A gente está falando de royalties que deveriam ser pagos a esses povos da Amazônia. E, além da retribuição financeira, também
tem a questão da visibilidade cultural. Este também é o momento em que está rolando com intensidade o encontro entre os povos indígenas e a sociedade branca, parda ou negra urbana. A gente já via o neoxamanismo tocado pelos brancos, muitas vezes sob orientação dos indígenas, mas agora os próprios indígenas estão vindo diretamente para os centros urbanos. É uma coisa rica que acontece no Brasil, na Colômbia, no Peru. Claro que o momento tem contradições, é complexo e um tanto caótico. Mas vejo também como uma oportunidade de aceleração da expansão de consciência necessária para que a gente saia do atoleiro em que se encontra, para se mexer a tempo de mitigar – porque evitar é impossível – a mudança climática.
Será que veremos a maconha finalmente legalizada no país? Está sendo progressivamente
legalizada nas ruas, nas praças, nas praias, nas matas. Foi legalizada na farmácia há sete anos, quando entrou o medicamento chamado Mevatyl, o mesmo que o Sativex no exterior, que tem THC e CBD e combate os espasmos causados pela esclerose múltipla. Pena que só funciona para os mais ricos, pois é caríssimo. A maconha vem sendo legalizada pelas associações de pacientes que já atendem dezenas de milhares de pessoas no Brasil, e também pelas pessoas que têm habeas corpus autorizando o plantio doméstico para uso terapêutico. E está em vias de ser legalizada institucionalmente, de dois modos. O primeiro caminho é a descriminalização,
que está rolando no STF – um julgamento muito devagar, parece um baseado fumado por várias pessoas, um ministro começa a votar, para, gela o beck, passa
um tempão, até que a coisa acende de novo noutro voto [risos]. Um voto surpreendente foi do Alexandre de Moraes, talvez a mais grata surpresa da República desde o Rui Barbosa.
Só não consigo me seduzir completamente pelo ministro porque me lembro dele
cortando os pés de maconha no Paraguai [risos]. Afinal, ele é um político… Mas acho que votou com uma racionalidade republicana, que é a de parar a guerra às drogas. Que, no caso da maconha, é simples. Meu ponto: maconha é um remédio importante, então você
tem que parar a guerra contra pessoas que usam. É óbvio que é necessário fazer isso, já está sendo feito em tantos países, o Brasil está para trás. Precisamos agir. O outro
caminho é o PL 399, tramitando no Congresso, para quebrar o monopólio da venda de medicamentos à base de cannabis. Temos que regulamentar a atividade das
empresas e das associações de pacientes, pois o perigo é a pressão no plenário prejudicar as associações e favorecer as empresas. Está rolando um grande lobby para isso
acontecer, e a gente tem que ficar atento, porque o que vai garantir o acesso das pessoas de classe média são as associações e um mercado com ecossistema diverso, com empresas de vários tamanhos, para realmente poder atender à demanda, que é gigante. Do modo como pode ficar, com esse lobby das grandes empresas, se pensarmos nos preços praticados hoje em mercados como o dos EUA, pessoas de baixa renda vão ter dificuldade de se associarem. Sem falar que a gente tem que falar em autocultivo – algo que não está contemplado no PL 399: o direito da pessoa ter as plantas em casa. Afinal, não é uma metralhadora, não é o veneno da jararaca, é só uma planta.
É complicado repetir toda hora esse trabalho de desmistificar e desestigmatizar uma mera planta… Sim, e mais uma vez o Ailton Krenak manda bem com seu conceito de futuro ancestral. A gente precisa aceitar que essa planta sempre foi tão útil aos ancestrais, tanto negros quanto brancos e também indígenas. Povos como os guajajara adotam a cannabis como sacramento, como planta medicinal. Então acho que esse momento está próximo, sou otimista. Ao mesmo tempo que a gente tem essa visão otimista em relação aos psicodélicos, de outro lado há um lado sombrio do uso de drogas tocado pelas Big Pharma. A série Império da Dor traz um retrato estarrecedor da epidemia de opioides. Sem falar em outra epidemia próxima, do crack. A gente vê o uso indiscriminado dessas substâncias, sabe que os humanos desde sempre usam substâncias psicoativas e não só os humanos, como também outras espécies – e percebe que é complicado ter uma conversa adulta sobre drogas e levantar o véu do medo que cobre esse assunto. É muito complicado mesmo o trabalho de comunicação. Parece que tudo está no grande caldeirão das drogas, né? “Se você legalizar maconha, as pessoas
vão usar crack, vão usar ópio…” Como comunicar esse tema? Quando voltei para o Brasil, pensei: tem um nicho cívico aqui, porque o debate é tão difícil, as pessoas ficam agarradas em fake news… Sempre quis fazer ação política, sempre me envolvi com a política da transformação, não a representativa, e sim a transformação real de alguma coisa concreta. Pensei: aqui posso ajudar, porque as pessoas têm crenças arraigadas e falsas que impedem qualquer conversa. Desde “a maconha é a porta de entrada para as outras drogas” até “maconha mata neurônio”, passando por “maconha é fábrica de esquizofrênico”. Isso em psiquiatria se chama delírio: uma crença falsa, tão bem construída que você não desiste de uma hora para outra, precisa de terapia.
Tipo o bolsonarismo? Exato [risos]. Mas o delírio bolsonarista começa a se desfazer porque os caras estão percebendo que deu muito ruim. Os crimes vão ser responsabilizados, porque os bolsonaristas produziram provas contra si próprios. É com evidências que você desconstrói um delírio. A guerra às drogas é também esse grande delírio, de achar que as substâncias legais são seguras, as substâncias ilegais são inseguras, e se você proibir as ilegais elas deixam de existir e deixam de ser consumidas, as pessoas vão ficar felizes e não vão morrer com uma bala na cabeça indo para a escola na Kombi escolar. Ou seja, a diferença entre o que foi prometido e o que acontece na realidade é gigantesca. Entendi que é meu papel falar sobre isso. E você sabe que para a divulgação da maconha foi muito importante o papel das mães e dos pais dos familiares de pacientes, cavando espaço na mídia, lutando para se visibilizarem, fazendo
pontes e alianças, bem como o papel dos cultivadores, que foram solidários, pessoas que plantavam flores maravilhosas para si e começaram a fazer óleo para
crianças com epilepsia e outros problemas cerebrais.
O movimento antiproibicionista junta muita gente… Sim, além de cientistas biomédicos, tem
advogados, o pessoal da sociologia, das ciências políticas e até policiais e juízes. Até que rolou um congresso em Brasília em 2013, o Congresso Internacional de Drogas, Saúde e Sociedade, no Museu da República. Um divisor de águas para o movimento antiproibicionista brasileiro: juntou favelas, universidades, empresas, e pessoas da Marcha da Maconha. Começamos a buscar uma regulamentação, e cada um tinha a sua ideal. “Para mim pode legalizar maconha mas proibir a cocaína”, “para mim a cocaína pode mas o crack não pode”, “para mim não pode tudo”, “para mim não pode nada”. E depois de quatro dias juntos, chegou-se à conclusão: a coisa mais tóxica é a guerra às drogas. Só ela é capaz de matar uma criança indo para a escola sem que essa criança use substância nenhuma. Por isso todas as drogas precisam ser legalizadas e regulamentadas, cada uma de acordo com suas especificidades biológicas e culturais. De lá para cá, muita coisa aconteceu. Fui convocado a participar da SBPC, uma instituição de que sempre fui fã, comecei minha carreira científica aos 15 anos numa reunião da SBPC. Quando participei da diretoria fiz uma proposta para a assembleia da SBPC para a gente chegar a uma posição de legalizar e regulamentar todas as drogas. Foi um sururu, ninguém se entendeu. Então fizemos um grupo de trabalho, e depois de um ano de discussões a gente aprovou por unanimidade que todas as drogas têm que ser legalizadas e regulamentadas.
Todas as drogas? Este ponto é importante, porque a SBPC é um farol para muita coisa no Brasil,
e quando a gente chega nessa clareza coletiva, a gente realmente leva as coisas a sério. Se você fala “assim não, crack não pode, vou proibir porque é perigoso”, você perde o argumento. Então tem que proibir a gasolina. Proíbe a Novalgina, que nos Estados Unidos é proibida. Todas as substâncias têm uma dose letal na verdade, até a maconha – que é uma dose na prática impossível, ninguém nunca chegou a absorver uma quantidade letal, e por isso a maconha é tão segura para a maior parte das pessoas. Mas se o ponto da discussão for sobre perigo, se o medo nortear a proibição, caímos numa balela. Daí a gente tem que proibir a equitação, o parapente, o automobilismo, afinal tudo tem um risco de letalidade.
E esse é um debate que está mais avançado nos Estados Unidos, na Europa, no Canadá, no Uruguai, na Argentina, na Colômbia e no Chile… Realmente o Brasil está para trás. Verdade, mas existe uma energia potencial gigante de mudarmos essa chave. Tem algo emergindo do underground, como por exemplo o papel dos cultivadores, que a partir de 2009 começaram a dar óleo de cannabis para crianças com epilepsia. Foi uma capacidade de transformação tão grande, um ato de desobediência civil amoroso tão profundo, que salvou não só uma vida, como a de toda a família. Se a gente olha para isso com cuidado, muda o modo como o resto da sociedade olha para isso. Daí a gente fala, “então essa rebeldia é por uma boa causa”. Começamos a enxergar que o problema não é a planta: o problema é a proibição da planta. Pra começar, é preciso definir o que é droga. Uma vez, estava em uma discussão no Conselho Municipal de Drogas de Natal e um interlocutor proibicionista falou: “Tem que proibir todas as drogas”, daí devolvi: “Então tem que proibir a cerveja”. Ele ficou surpreso, porque realmente para ele a cerveja não tinha entrado no campo semântico das drogas. E você pode ver que as pessoas que são muito contra as drogas são frequentemente as que vão toda
hora a uma… drogaria [risos]. Tem muito trabalho pela frente. Por isso fiz o Flores do Bem.
Seu livro O Oráculo da Noite é transdisciplinar, você faz pontes entre neurociência, psicanálise
e muitos outros saberes de uma maneira como poucos pensadores se atrevem. Dentro da sua
transdisciplinaridade, você faz também uma ponte com espiritualidade? Eu não posso te dar um spoiler [risos]… porque isso está contado em detalhes no Flores do Bem. É um tema com que lido de maneira bastante franca e aberta. Posso te dizer o seguinte. Fui criado por minha
mãe, pois meu pai morreu muito cedo, e a influência dela foi preponderante. Antes de meu pai morrer, ela foi teosofista, e depois ela virou marxista, feminista. Foi nesse ambiente que cresci: materialista, marxista, cartesiano, positivista, lógico, radical. Eu tinha pouca abertura para a alteridade, era muito unilateral. Por causa da cannabis, e também bastante por causa de outros
psicodélicos, fui para o lugar do agnóstico. Durante o mestrado e o doutorado, continuava materialista como sempre, mas sempre pensando: a gente sabe pouco do espírito. Não sei o que é isso direito. Talvez esteja no cérebro, talvez no corpo… Fui tentando entender esses fenômenos internos no final do doutorado. Daí, quase com 30 anos, duas coisas aconteceram: encontrei um livro que foi uma revelação e entrei para a capoeira. Foi quando entrei em contato com o universo espiritual. De uma forma poderosa, potencializada pelas próprias características da capoeira. Porque quando você está com muita dificuldade, medo e dor, sensações facilitam uma conexão espiritual. E comecei a sentir uma conexão espiritual, cultural, inexplicável, inefável e poderosa. Mas também não entendia como aquilo caberia em minha base marxista. Então encontrei esse livro do Julian Jaynes, A Origem da Consciência na Quebra da Mente Bicameral.
Você sempre cita esse livro, que nunca foi traduzido no Brasil… Uma das coisas mais infecciosas que já li. Me permitiu pensar de um jeito completamente diferente. Até então estava tipo “bom, se eu tiver uma experiência com Xangô, Xangô é um entidade que existe
fora de mim, na extrafísica; mas não acredito nisso, então Xangô não existe”, e voltava ao lugar racionalista, com pouca imaginação. E Jaynes tem tantas sacadas interessantes que me pegou. Por exemplo, a ideia de que ouvir vozes, coisa muito comum no passado, hoje encaixada dentro da esquizofrenia, na psiquiatria, talvez fosse um estado adaptativo da mente humana. Hoje o que a gente chama de doença era um dom. Pois hoje a ideia prevalente é de que todo mundo ouve vozes o tempo todo – só que a gente acha que essas vozes são
nossas. No passado não era bem assim. O livro me desafiou a fazer uma prática para sair da teoria. E então botar um altar para assentar meu axé.
Então hoje você se define como um cientista religioso. Sim. Cultivo várias entidades. Que, na minha compreensão, neste instante, provavelmente são habitantes do meu próprio corpo. E isso me basta. Isso é transcendente demais. E muito importante na vida, porque determina humor, atitude, até a roupa que uso. Nem sempre estou igualmente conectado, às vezes mais, às vezes menos, mas a espiritualidade tem muita importância ao longo da minha vida. Depois que entrei nesse caminho, durante o pós-doc, me abri para outras representações, outras entidades que estão fora do panteão iorubá, que podem vir de Angola, ou entidades indígenas, ou entidades da Índia… Tudo é muito bemvindo nesse campo que chamo de “cultivar as criaturas da minha mente”. Hoje sou agnóstico o suficiente para entender que a hipótese de que tudo isso acontece só dentro do meu corpo é uma boa hipótese, mas apenas uma hipótese. Tem tanta coisa que a gente não sabe. Temos que pisar no chão com cuidado, e não jogar nada fora. Isso aprendi lendo Feyerabend, um teórico da ciência: não se joga nada fora, cultura é para preservar. Quando olho para como me sentia aos 18 anos, penso que era muito solitário viver na ilusão do ego. O que me lembra, voltando, aquele sonho do Borges, em que ele sonha um jeito de surpreender a ele mesmo: precisamos cultivar a possibilidade de fazer muitos diálogos em uma casa cheia de espíritos. Isso que as pessoas estão buscando hoje no ChatGPT-4, a gente tem para dentro, com todas as cores e sabores [risos].
Pegando uma carona nesse tema, e lembrando o Philip K. Dick, que se perguntava Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, o livro que deu origem ao Blade Runner: as inteligências artificiais podem sonhar? Já estão sonhando. No meu próprio laboratório tem gente pesquisando. As máquinas estão resolvendo problemas que os engenheiros nem sabem direito
como calcular. Estamos num momento de explosão exponencial. O que nos anos 1990 aconteceu de tão revolucionário com a internet agora está nas inteligências
artificiais. As consequências dessa aceleração, com o treinamento de algoritmos em muitas camadas, acesso a vastos bancos de dados, é que as máquinas entraram
na trilha de um aprendizado de um jeito que agora… para parar, só com uma moratória mundial. E as grandes corporações que propuseram essa moratória estão
usando as máquinas, né? Nisso vou além do K. Dick e lembro o William Gibson, que no Neuromancer previu as batalhas corporativas mediadas por máquinas. A gente
precisa saber qual vai ser o lugar do ser humano nessa história. Até porque as máquinas mesmas já programam: é código fazendo código. A sensação que tenho realmente
é como se a gente estivesse com uma bomba atômica na mão com consequências muito mais devastadoras que a bomba. Inclusive há esse debate forte nos Estados Unidos: como ter certeza de que os mecanismos de acionamento das armas nucleares não venham a ser
conectados com inteligências artificiais? Impressionante que a gente tenha chegado tão
rápido nisso. Parece que quase todo mundo acha que os próximos 30 anos vão andar na velocidade dos últimos 30 anos, mas não é verdade. Isso me aumenta a sensação de urgência.
Se a gente pensar só no Brasil, considerando o que aconteceu nos últimos sete anos, desde o golpe, a gente tem três anos e meio para pisar no acelerador, né? A chance de ter retrocesso existe? Este é o momento do pulo do gato. Agora é a hora em que a gente vai ter que mostrar quem é bamba. Mas não sei se a gente está à altura. Você citou o golpe. Foi terrível ser cientista nos anos Temer/Bolsonaro, não? Os governos Lula e Dilma foram a melhor coisa que aconteceu para a ciência brasileira em todos os tempos. Um período de enorme expansão. Aí quando veio o golpe, começou uma tentativa de desmontar a ciência brasileira além
da cultura. Combateu-se claramente ciência, cultura, educação, saúde, enfim: a “ponte para o futuro” do Temer virou o Bolsonaro. Na verdade são os mesmos atores políticos, e para a ciência foi catastrófico. Foi deprimente, foi horroroso. Todo mundo ficou mal, as pessoas ficaram sem bolsas, muitos cientistas talentosos foram embora do país. Acho importante as pessoas terem formação fora do Brasil, eu mesmo fiquei anos fora, mas dependendo de como isso acontece a gente está perdendo de fato uma pessoa e anos de investimento para sempre, porque o cientista fica traumatizado. No governo Bolsonaro, tinha que ter mobilização nacional todo mês para pagar a bolsa de mestrado e doutorado. Foi patético. Um período de guerrilha cultural e científica. A gente correu um risco muito sério. Risco que a Argentina corre agora com o louco do Milei dizendo que vai destruir o Conicet [Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas], uma joia da Argentina, que tem uma ciência incrível, um crime de lesa-pátria. Os caras tentaram fazer isso aqui no Brasil, né? Quase acabaram com o CNPQ,
desprestigiaram o Ministério da Ciência e Tecnologia o colocando no guarda-chuva das Comunicações, tiraram 90% do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico… Quando Lula assumiu de novo, você poderia dizer que a ciência brasileira estava respirando por aparelhos, politraumatizada, entubada e dependendo de cuidados paliativos. Todo cientista brasileiro manteve laboratório funcionando pagando do próprio bolso. A gente andou bastante para trás.
Qual é seu prognóstico para a ciência brasileira agora durante o governo Lula? Já emendando com outra questão, que pode ser meio capciosa: em alguns aspectos os governos petistas não são tão diferentes assim dos governos de direita… por exemplo, como a gente vê na vontade de explorar o petróleo na Amazônia e outras experiências péssimas para a sustentabilidade, como Belo Monte… Como você acompanha esses movimentos do novo governo? O momento atual é de retomada. O Ministério da Ciência e Tecnologia está com a ministra Luciana Santos, o Ricardo Galvão no CNPQ, a Capes com a Mercedes Bustamante, a Finep com o Celso Pansera… pessoas muito capacitadas e competentes. O Brasil está tendo um bom momento de investimento científico e cultural. Também percebo isso no audiovisual, no teatro, nos editais de artes, há um momento de efervescência. A gente tem um grupo de ministros incríveis. Lembra o time que Lula conseguiu montar no primeiro governo. Nísia Trindade, Marina Silva, Margareth Menezes, Silvio Almeida, Anielle Franco, Sônia Guajajara… Vejo um momento de grande transformação. O fascismo está em refluxo agora, mas a gente não pode se enganar, porque quase ganharam a eleição roubando, a gente sabe em que condições isso aconteceu. Agora… se Lula 3 licitar a exploração de petróleo na margem equatorial, à revelia do Ibama, a frente ampla fica rachada. Se prevalecerem as políticas que produziram os desastres em Belo Monte e no rio Tapajós, a Marina Silva não vai poder ficar, e milhões de pessoas que fizeram parte dessa luta para eleger Lula vão ser jogadas fora do barco. Mais que isso: o papel histórico geopolítico que o Brasil pode desempenhar
vai ser sabotado. Se a Marina continuar bancando as decisões técnicas do Ibama, a gente vai bem. Apesar de ser uma luta constante, uma tensão enorme, se ela perder essa batalha para o rolo compressor da indústria de petróleo, é nada auspicioso para um governo que não
quer apenas governar quatro anos, mas transformar o Brasil. Mas tenho camaradas do lado do governo que acham que tudo pode ser resolvido com um debate entre engenheiros e biólogos. Vamos ver. Não seria um equívoco extrair petróleo na Amazônia? Claro, não deveríamos furar nem um poço de petróleo mais. A gente tem que investir nas energias renováveis que temos: sol e vento. E mais que isso: como explica o Ailton Krenak, a gente precisa mudar o jeito de viver. A gente não tem mais que buscar crescimento econômico. Precisamos de mais empregos
industriais para fazer o quê? O próprio conceito de desenvolvimento precisa ser questionado. Isso é difícil, porque muita gente na esquerda tem uma formação que remete aos planos quinquenais de Lênin, uma visão de poderio industrial altamente poluente e alienante dos
talentos humanos. É justamente isso que as máquinas inteligentes vão resolver, de um jeito ou de outro. Tem que ouvir melhor o que dizem os indígenas. Precisamos de mais energia para quê, mesmo? O que está faltando na vida das pessoas? Tem que mudar o disco. Com menos recursos a gente vive mais e melhor.
[Entrevista de capa para a edição 9 da revista Morel]