
Como o filósofo Vladimir Safatle deu um susto na esquerda brasileira
Ronaldo Bressane para a revista Morel
Vladimir Safatle não está para brincadeira.
Não relaxa. Não sorri quase nunca. Mas também nunca é descortês. Desde uma fria Veneza, onde foi ministrar cursos de filosofia na Universidade Ca’Foscari, conversando com Morel via Meet, o filósofo, psicanalista, escritor e músico não demonstra a menor impaciência. Nenhuma pressa. Nada de contrariedade com uma entrevista de horas, depois de ter dado várias aulas, depois de ter passado várias horas de sessões com seus analisandos, depois das duas horas diárias em que – não deixa de assinalar – se desliga do mundo para mergulhar em leituras (nosso papo passou da meia-noite). Não é por acaso. Safatle, 50, não nasceu numa calmaria: pelo contrário, estava em Santiago do Chile, cidade em que buscaram como refúgio seus pais – os militantes da Aliança Libertadora Nacional, Fernando Safatle, que participou da luta armada contra a ditadura no Brasil, e Ilmeide Tavares Pinheiro.
“Minha mãe costumava dizer que nos meses em que ela começava a se descobrir como uma jovem mãe de 24 anos, era comum ouvir bombas explodindo e tiros nas ruas. Eram os últimos meses do governo de Salvador Allende. Meu pai, que tinha a mesma idade, havia participado da luta armada contra a ditadura brasileira no grupo de Marighella e havia preferido tentar ajudar, de qualquer forma que fosse, a experiência socialista de Allende a aceitar a proposta de sua família e terminar os estudos na Inglaterra. Impotentes, como escoteiros que observam uma floresta em chamas, eles começavam suas vidas adultas com um filho e uma catástrofe”, contou ele. “A única saída seria o golpe e minha mãe continuaria a ouvir bombas e tiros vindos das ruas até o último dia que estivesse no Chile. Veio o golpe e fugimos do país.” Passou por Brasília, onde viveu até os dezesseis anos, até se consolidar em São Paulo, onde não sonegou uma brilhante carreira acadêmica, dispersa em livros como O Circuito dos Afetos e Em Um com o Impulso (Autêntica), além de ser professor convidado em muitas universidades europeias.
Talvez por ter nascido nos olhos do furacão de dois golpes de Estado, Safatle, embora busque o chamado “tempo longo” das utopias em seu discurso, não tem nada de calmo. A narrativa acadêmica, nuançando e abusando de contrastes, paradoxos e abstrações, nunca perde o sentido da urgência – é frequente passar as mãos pela cabeça nua, como se estivesse cavoucando novas ideias. Lançando o conjunto de ensaios Alfabeto das Colisões (Ubu), o catedrático de filosofia e psicologia na USP investiga sete crises conexas que não saem de seu radar: crise ambiental, crise demográfica, crise social, crise econômica, crise política, crise psíquica e crise epistêmica. Esta última, talvez a mais grave, da ordem da destruição em uma realidade objetiva comum, impulsionada pelas fake news distribuídas em massa pela extrema-direita – que, segundo Safatle, é a única força política eficaz no mundo hoje, com poder de insurreição; a esquerda não consegue sair da paralisia, que transparece uma impotência imaginativa.
Contrariamente aos preceitos dos Apóstolos do Bem-Viver– como Safatle nomeia certa escola da filosofia contemporânea que se confunde com a auto-ajuda e a estética dos coaches do empreendedorismo – , este filósofo não traz soluções apaziguadoras. Mesmo assim, a veemêcia de suas ideias trai uma paixão pela negatividade não destituída de força de persuasão e lucidez incisiva. Não leia – se conseguir.
Você deu uma sacudida no meio acadêmico e na mídia ao decretar a morte da esquerda. Um tema que já tinha abordado há uns quatro anos, sob Bolsonaro. Agora estamos sob o governo do Lula e você dobra essa aposta… Fiquei surpreso com o nível da reação contra essa minha afirmação. Tem um nervo exposto aí, né? Todo mundo está percebendo que tem algo mais que uma crise, uma coisa estrutural. Aprendi com a Escola de Frankfurt que quando você quer falar alguma coisa, precisa pesar a mão, se não ninguém ouve, prefere discutir quem ganhou o Oscar. Olha, tem um problema enorme na nossa frente, e a gente faz de tudo para não ver. Falo isso há muito tempo. Em 2017 insisti que há um esgotamento da esquerda brasileira como força de ruptura. O lulismo foi o ápice da Nova República… mas também foi seu ocaso. Esse foi apenas um exemplo dramático de um fenômeno global de colapso da esquerda mundial, de sua incapacidade de transformação. O que se seguiu então foi a morte da esquerda.
A ascensão global da extrema-direita se demonstrou como força política para redesenhar o mundo, uma força que a esquerda não tem mais? A extrema-direita joga um jogo perfeito, mobilizando o discurso do homem simples contra a casta política. A gente percebe a vida social ser injusta, produtora de toda forma de sofrimento social, de alienação, de reificação. E percebe também que quando um pensamento de longo horizonte desaparece, todas as negociações se transformam em capitulações. Enquanto a esquerda joga o jogo da conservação das pretensas conquistas de décadas, como força revolucionária é a extrema-direita que aparece. Veja, não sou primário a ponto de levantar a bandeira da revolução com uma modificação estrutural reformista… tipo estatizar o sistema bancário. O que percebo é que a esquerda abriu mão de lutar por seus dois elementos constituintes: a igualdade radical e a soberania popular, em todas as esferas da interação social, seja no desejo, seja na linguagem, seja no trabalho. Por exemplo, sumiu por completo a ideia de autogestão da classe trabalhadora. Soberania popular não significa lutar por representatividade, por melhor integração. Significa que a gente vai destituir a representação, para consolidar e constituir processos de democracia direta. Conselhos e coisas dessa natureza estão fora do que deveria representar a esquerda. Então hoje temos uma constelação de progressismos, que sim, têm suas questões importantes, mas que têm seus limites.
No tópico “Vida”, de seu livro, você cita a possibilidade de “morrer várias vezes”. Faria bem à esquerda essa morte? Eu diria que é importante encarar de frente essa condição, porque para que alguma coisa nova efetivamente ocorra, a gente precisa entender que na vida se morre várias vezes. Às vezes é importante sentir o gosto real da morte na boca, para mudar. Se não acontece o trabalho da negatividade profunda, você usa todas as reações possíveis para preservar uma situação. Por isso ressalto que a esquerda não deve tentar gerir as crises do capitalismo “porque é o que tem para hoje”: esta é a expressão máxima de que a esquerda morreu. Gerir crise do capitalismo nunca foi o nosso horizonte. Essas crises são ingerenciáveis. O sistema funciona por crise! Se sobrou à esquerda gerir as crises do capitalismo, melhor estocar lenços de papel, pois só nos restará choro e ranger de dentes.
A crise atual não ocorreu em nenhuma outra circunstância da história? Vejo sete crises conexas: crise ambiental, crise demográfica, crise social, crise econômica, crise política, crise psíquica e crise epistêmica. Cinquenta anos atrás, já havia relatórios prevendo que o crescimento exponencial do capitalismo nos levaria a uma crise profunda, como essa que acontece agora. Celso Furtado já dizia que o mito do desenvolvimento econômico não se sustentaria quando os países em desenvolvimento se tornassem desenvolvidos, porque isso implicaria em um colapso global do sistema. O Brasil é um bom exemplo: uma das maiores ilusões do sistema capitalista é a crença em arrancar valor infinito da terra e do trabalho. E hoje vemos o Brasil com a maior fronteira de devastação ecológica do mundo, além de uma população submetida a um sofrimento psíquico enorme, acossada por condições extremas de trabalho. Vejo em clínica, o pessoal não para de falar de como está sofrendo com o trabalho, submetidos a jornadas desgastantes por conta da precarização contínua. Então insisto: a esquerda perdeu a gramática de luta, de reflexão, e isso limita o horizonte de mudança, a nossa imaginação social e política.
Existe uma constante na crítica à esquerda – e aí digo a esquerda partidária – que seria ressuscitar o esforço de se aproximar, por exemplo, do grande corpo social representado pela população evangélica… Como diria o Mano Brown, “voltar para a base”. Essa é uma falsa questão. A esquerda nunca deixou de se aproximar dos evangélicos. O Brasil tem essas ironias fantásticas… Lembra qual foi a primeira coligação do Lula, que ganhou em 2002? Era o PT e o PL! E esse PL usava a base evangélica da Igreja Universal do Reino de Deus! Essa base sempre esteve presente. E o que aconteceu? Claro que seria impossível conciliar um pacto com eles. A gente já falava isso lá atrás. Os evangélicos têm uma agenda própria, e não vão negociá-la. Vão fazer o mesmo que Erdogan fez na Turquia: ele aparentava compor com o islamismo democrático e aceitar o jogo da democracia parlamentar, mas no fundo só esperava ganhar força pra mostrar afinal a que veio, e impôs uma ditadura. Diria que a perda da base da esquerda não vem do fato de não conversar com os evangélicos. Vem do fato da esquerda não ter nada para propor às classes mais pobres. O que a esquerda propõe para mudar a violência, a desigualdade, a ausência de participação popular? Quando a gente apresentou uma proposta real para desmontar o núcleo de extermínio do Estado em relação às populações mais desfavorecidas?
O desmonte da Polícia Militar… Esse tópico já chegou até em comissões da ONU, já insistimos que a desmontar a polícia militar deveria entrar em discussão. O mesmo se dá com as políticas contra a desigualdade. Lembraria que, segundo os estudos de Thomas Piketty, que o nosso índice Gini, que mede a desigualdade, em 2013, quando o nível de desigualdade do Brasil chegou ao nível mais baixo, estava no mesmo nível de 1960! Eis o descompasso brutal entre nossas promessas e nossas realizações. Enquanto a esquerda brasileira luta para preservar conquistas do marco da Constituição de 1988, olha o que a extrema-direita faz na Argentina, por exemplo: na primeira semana o Milei apresentou 600 novas medidas econômicas! Aí você vai dizer “não conseguiram passar 300 medidas”, mas já foi uma mudança brutal. A questão fundamental é que a extrema-direita mostrou pra sociedade: “eu tenho outro projeto alternativo, mas a esquerda não está me deixando fazer”.
E a esquerda não tem esse modelo alternativo de sociedade para mostrar, não é? Um modelo alternativo que não seja realmente disruptivo. Existe por exemplo esse grande mito do empreendedorismo individual, que está muito conectado com a teologia da prosperidade, proposta pelos neopentecostais, em você toma as rédeas da sua felicidade. Essa ideologia está funcionando, ainda que a custo das doenças psíquicas que você acabou de mencionar. Qual seria a alternativa? A quebra desse horizonte, da projeção de uma redenção, de futuro, foi mortal para a esquerda. Nesses últimos onze anos houve insurreições por todos os lados do mundo, houve tentativas de reconstruir o Estado nacional, de criar outras formas de Estado, de pensar outras relações entre natureza e sociedade. Para dar um exemplo, nem que seja criar algum tipo de participação gradual mais forte dos trabalhadores no interior do processo decisório das empresas, você tem horizontes. Isso eu acho desesperador. Esses debates não chegam no Brasil. Mesmo dentro do Partido Democrata norte-americano, você via Bernie Sanders trazendo a sugestão de incluir 20 a 30% dos trabalhadores em todos os comitês decisórios das empresas.
O Brasil é o país da revolução impossível… Só sabemos fazer processos de longa conciliação, e conciliações que nunca dão certo, porque repetidamente acabam produzindo regressões. Por isso é importante mobilizar a força de imaginação, da criação. Eu imaginava que no golpe contra a Dilma a gente teria isso claro. Afinal, a gente tinha feito “tudo correto”, não? Apostamos na conciliação entre classes, conciliamos com todos os setores da política tradicional, fizemos aliança… E qual foi o resultado? Levamos um golpe dos próprios apoiadores! Quando assume o Temer, ele monta um ministério só com gente que tinha participado de ministérios nos dois governos de Lula e Dilma… O problema que vejo é a incapacidade crônica da esquerda brasileira, que é um extrato da classe média, de achar que se fizer tudo de acordo com as regras, vai dar tudo certo.
Não vai… O Estado brasileiro é uma estrutura permeável a dinâmicas de interesses de classes mais variados possíveis para a preservação de privilégios. E a extrema-direita usa isso a seu favor, para alimentar o anti-estatismo, jogando de volta a ideologia bem consolidada que é o discurso do empreendedorismo. Aliás, um discurso que inclusive a esquerda assumiu. Já bati muita boca com gente de esquerda que fazia a defesa de empreendedorismo periférico. Espero que hoje parem de insistir em um absurdo dessa natureza, pois o processo histórico demostrou que esse empreendedorismo leva a um beco sem saída. O fato é que a extrema-direita tem um discurso mais coerente para as classes populares. Ela vem e diz: “olha, é uma luta de todo mundo contra todo mundo, não tem mais estrutura de proteção, não tem mais Estado, não tem nada, então se você trabalhar bem, se você trabalhar duro, você vai conseguir!”. Claro que não vai conseguir… mas o discurso pega. E o que é que a gente faz nesse sentido?
Você falou de de conciliação, e a gente tem na figura do Lula o grande conciliador, o cara que casa os contrários: de um lado a JBS, de outro o MST. Pensando em termos de política partidária, em breve a gente vai encarar um problema parecido que já acontece nos Estados Unidos, com a idade avançada do John Biden: a impossibilidade de surgir um líder tão carismático quanto Lula para barrar a extrema-direita, esse líder que evita confrontos. O Lula representa o modelo de pacto de colisões. Que é frágil: funciona por um tempo, mas depois reatualiza uma dinâmica de populismo de esquerda, tipicamente brasileira, parecida com o populismo peronista da Argentina. Um modelo em que convergem demandas sociais e interesses de oligarquias. Você precisa de um vazio para operar a mediação universal, e o Lula se presta a isso. Temos que lembrar que, quando o Lula volta, já não tem a força de conciliação que tinha em 2002. Os números mostram claramente: para chegar a este 51%, a gente criou uma aliança até com o Amoedo…
Falando em números, pesquisas recentes demonstraram que essa conciliação do Lula não tem chegado aos estratos baixos da população, mesmo com os alardeados crescimento de 3% do PIB. O Brasil mudou radicalmente, não vai voltar a 2002, não importa o que você faça. O importante é entender que algumas coisas terminam de vez. Aquele Brasil não vai mais existir. É um problema político fundamental tentar reeditá-lo. Foram consolidados elementos do fascismo nacional – que é um elemento constituinte da sociedade brasileira, vamos lembrar? Um erro grande de interpretação nacional, do ponto de vista acadêmico, foi não levar em conta como o fascismo é um elemento constituinte da nossa história. Então penso que o país munca mais vai voltar à unidade. É importante se preparar para isso. E não adianta melhorar os índices econômicos. Esses índices foram inventados para satisfazer agências econômicas, não refletem a distribuição de riqueza. “Ah, mas você aumentou o índice de emprego…” Sim, mas lembra que no primeiro governo Lula 93% dos empregos eram de até um salário e meio mínimo? Você precisa avaliar riquezas do ponto de vista social. Os portadores dos processos de produção da riqueza continuam operando da mesma maneira. Importante definir: não temos mais base social pra conciliação no Brasil. Pode-se até prender o Bolsonaro, mas o fascismo se move. A começar pelo governador de São Paulo, que é um bolsonarista orgânico, que paulatinamente tem demostrado o fascista que é. Só que ele tem uma dinâmica mais inteligente. Bolsonaro foi necessário para um momento de ruptura. Tarcísio surge em um segundo momento, ao lado dos tecnocratas, com força de destruição idêntica. Isso demonstra que há uma tarefa brutal para todos que estão comprometidos com transformações profundas da sociedade brasileira – e essa tarefa não está sendo realizada.
Quero voltar a falar um pouco do campo evangélico, um enigma e uma assombração para a esquerda. Hoje vemos Israel se tornando um hub não só da extrema-direita mundial como também do neopentecostalismo. Talvez só à luz da psicanálise a gente consiga fazer uma interpretação dialética dessa união pragmática entre o Velho e o Novo Testamentos… Não há política do século 20 sem uma dimensão teológica política fundamental. E o século 20 conheceu duas grandes teologias políticas, o fascismo e o comunismo – que mobilizava este tema de maneira secularizada, através da força de coesão das uniões comunitárias. Isso não é messianismo, é a coisa mais concreta que existe na experiência política, porque as pessoas sabem que, se essa força não entrar em circulação, retorna a melancolia social vinda das violências reiteradas, e os sujeitos políticos não vão ser capazes de desenvolver transformações estruturais da sociedade, vão se ver atrofiados. Nem precisamos de psicanálise: a história mostra como a esquerda perdeu esse horizonte. No caso da extrema-direita israelense, trata-se de um laboratório do colonialismo em pleno século 21, com todas as políticas de extermínio e genocídio – que é o termo absolutamente correto a ser aplicado no contexto da Palestina. Não teve nenhuma catástrofe do século 20 que não tenha sido legitimada por um discurso religioso.
Mas o discurso religioso não é um bloco, não? Sim, na própria América Latina você tem um descolamento quando aparecem setores que constituem a teologia da libertação. E nos Estados Unidos, há setores das igrejas protestantes vinculados a movimentos de direitos humanos, muito importante nas lutas sociais. Existe sim uma força revolucionária na experiência religiosa. A própria revolução haitiana começou em rituais do vodu. Para mim, isso mostra que não é possível fazer política sem horizonte teológico. E isso não é uma regressão. É uma estratégia para avançar, e a esquerda esqueceu disso. A esquerda acreditava ser possível uma gestão racional do capitalismo. Esse tipo de gestão foi possível através da social-democracia, no pós-guerra, em países como França e Itália, quando aconteceu um pacto com a classe operária. Mas lembramos que são países colonialistas, que financiavam suas sociedades e extraíam suas riquezas das colônias e ex-colônias – até hoje a França tira dinheiro da África. Mas esta dinâmica da social-democracia acabou, tanto que vemos hoje Macron segurando o centro para não cair para a extrema-direita, e a Itália, onde a esquerda foi esfacelada, já se entregou de novo à extrema-direita.
Vamos falar mais do seu novo livro. O ritmo da vida contemporânea é feito para você nunca parar. A gente vive essa cultura da interrupção, em que não consegue continuar as coisas. Fiquei pensando se seu livro, estruturado em ensaios curtos, não dialoga com essa cultura fragmentária… Não tenho nada contra a escrita acadêmica. Quando fui colunista da Folha de S.Paulo e do El País, mantive essa escrita, pra mostrar a importância de elaborar com tempo certas questões. A verdade é que havia problemas que não conseguia abordar por uma questão de forma. O livro pode parecer uma dispersão de assuntos, mas isso gera um perspectivismo pois gira em torno do conceito de colisões de variados campos da experiência. Tem essa ideia do Walter Benjamin, de constelação, então os temas giram em constelação e permitem que se emerja algo que você não consegue determinar. A questão do livro é o desabamento das experiências de conciliação. Sempre admirei essa escrita de ensaios curtos dos moralistas franceses, La Rochefoucauld, Pascal, e depois Adorno. E tem a questão do ensaio, que é uma tentativa, um tateamento. A experiência filosófica tem muito desse tatear. E a experiência filosófica que me interessa é a que se confronta com os limites da linguagem… por isso precisava criar outra forma de dizer.
Lembrei de Montaigne, pois em muitos ensaios você parte de alguma tese ou indagação ou inquietação, ou o contrário, você vai desconstruindo certezas ao longo do texto, e o texto começa de uma maneira e termina de maneira diferente. Porque como diz a Cynthia Ozick, o ensaio tem esse “movimento da mente quando brinca”… Naquele seu ensaio sobre a queda, lembrei de um músico pernambucano, Junio Barreto, que tem um verso assim: “Se vê que vai cair, deita de vez”… Me incomoda muito uma certa função atual de intelectuais públicos que aparecem como Apóstolos do Bem-Viver, sabe? Pessoas que vão trazer para você pérolas de sabedoria, no sentido de tutela do que fazer… “Você não sabe como amar? Então saiba como amar melhor”… Acho degradante esse tipo de coisa. Numa situação como a nossa, o mais honesto, em vez de propor soluções que vão se mostrando cada vez mais precárias, seria partilhar colisões. Por isso o livro começa até com a perda de certeza da ordem do alfabeto. Assim, a coisa mais sensata seria insistir que a verdadeira posição ética é saber como cair.
Por que partilhar quedas? Para entender que a queda abre um espaço de escuta do outro. Compreender a fragilidade, a precariedade dos nossos princípios, das nossas normas, das nossas maneiras de seguir normas, e como essa precariedade da queda espelha nossa humanidade, mais do que um tipo de punição. Seria um bom ponto de partida esse tipo de abertura, baseada na dificuldade que o sujeito tem de lidar com os próprios sintomas e as próprias deficiências. Freud falava que uma das tarefas impossíveis de educar é começar falando das situações ideais. Então, seria melhor uma profissão de fé realista dizer: “olha, você vai quebrar, vai cair, vai lutar contra contra a ausência da palavra adequada para descrever o que quer, vai lutar contra a ausência da compreensão da experiência”. E seria intelectualmente honesto falar sobre isso agora. Também quis brincar com um jogo de misturar primeira e terceira pessoas. Não acredito na primeira pessoa do singular, mas sei que produz certos efeitos quando circula. É sempre uma busca dramática de uma primeira pessoa do plural, porque parto do princípio de que, se você mostrar o ponto em que caiu, isso pode abrir uma cumplicidade.
Entrando na psicanálise, você conta a história de um analisando que ficou feliz por ter encontrado um diagnóstico na psiquiatria. E hoje temos esse humano contemporâneo ilustrado que dá uma mão para o Freud e outra para a astrologia, sem esquecer o Zolpidem debaixo da língua. Você falou dos Apóstolos do Bem-Viver, que trazem conselhos pra nossos novos mal-estares. Sua partilha de quedas lembra o que o Freud dizia, quando chegava ao lado de Jung aos EUA: “Estamos levando a doença”. Havia um coletivo socialista de pacientes nos anos 70, um coletivo de autogestão de pacientes, que chegou à questão fundamental: transformar a doença psíquica em arma. O que significa você se curar em uma sociedade doente, a não ser adaptar as pessoas a uma doença geral? Entendo que uma compreensão dos sintomas não por causa de uma deficiência do processo analítico, mas sim porque o processo analítico sugere que o sintoma não é o resultado de um déficit ou desvio que deve ser restaurado. Esse caso que eu trouxe é uma lembrança de como o diagnóstico funciona hoje em dia. Numa situação de completa brutalização das relações sociais, ter um diagnóstico de uma doença psíquica é quase como um passaporte que permite por um momento suspender suas relações no trabalho ou na família.
“Ah, o sujeito tem um problema, está aqui diagnosticado, tem que tomar cuidado”… Um pedido de cuidado, que tem um preço enorme, porque exige que você se coloque na posição de alguém que é reconhecido socialmente como portador de deficiência, de uma limitação. Ou seja, no diagnóstico, você aceita a palavra do outro sobre você. Sendo que uma dimensão fundamental do processo analítico é você quebrar o sentido da palavra do outro que individualizou você! E isso também acontece no campo político. Durante muito tempo o discurso médico olhava para certo sujeito e o apontava como homossexual. Este era um termo médico, com todo o caráter excludente que um termo médico implica. E esse elemento está presente em toda dimensão de tratamento de sofrimento psíquico. O sujeito já vem para a análise com um diagnóstico pronto, “olha, eu tenho bipolaridade”. Existe esse processo de tomar o sintoma pra si. Mas há outra maneira de escrever essa dinâmica, ao transformar o sofrimento em arma: o sintoma tem uma dimensão de revolta contra a ordem do desejo, a ordem da linguagem, a ordem do trabalho. Só que é uma revolta impotente. Fazer passar essa revolta da impotência para a ação, ou seja, transformar o sintoma em arma, é uma etapa importante do processo analítico.
Em outro ensaio você reflete “por que alguém não inventou a possibilidade de morrer às vezes”, e acho que tem uma certa conexão com você ter decretado a morte da esquerda. A ideia é que na vida se morre várias vezes. Pensar que a gente morre só uma vez é uma ilusão, na verdade, não? É importante ver essas coisas de maneira clara. Porque há essa função de você bater no fundo. Hegel faz um jogo de palavras entre “perecer” e “ir ao fundo”, em alemão são palavras próximas. Ou seja, esse processo de autonegação é condição para a criação efetiva de algo novo. E uma das coisas que o poder mais tenta fazer é controlar o fim… Quem controla o fim controla tudo, não? Mas antes do fim o indivíduo está submetido a um regime máximo de performance, ao máximo de atividades. E não percebe que a vida tem uma miríade de ritmos, e um desses ritmos é o lento, o ritmo morto, o ritmo sem acontecimentos. Na verdade, aí é que os acontecimentos profundos acabam ocorrendo, por paradoxal que isso possa parecer. Essa é uma maneira de perguntar o que faz as pessoas procurarem esses processos de autodecomposição. Em vez de culpabilizá-las, como se se tratasse na verdade de algum tipo de sabotagem de si mesmo, ou de covardia em relação à vida, contra a força afirmativa da vida… porque esse desejo de impercepção, esse desejo de se misturar coisa morta, não será uma das maiores astúcias da vida, para se preservar? Em certas circunstâncias, é necessário buscar outro ritmo… e mudar de ritmo é a coisa mais difícil. Porque socialmente a gente está submetido aos ritmos da produção, aos ritmos da excitação contínua. Assim, vejo que a morte acontece várias vezes na vida, e depois delas você retoma a vida para si de maneira mais forte.
Como seriam essas mortes? Existem colapsos fortes, vinculados a experiências profundas de perda, de desorientação em relação ao mundo. Há uma queda do mundo: os sentidos dos objetos e dos territórios caem. Enquanto professor de filosofia, vejo essa como uma experiência fundante. Para que você atinja um tipo de saber mais seguro, é necessário que todos os outros saberes caiam. Como se a experiência mesma do pensamento mobilizasse uma força negativa. Antes de mais nada, você tem que pensar contra algo. Contra as representações naturais, contra as orientações, contra as normas. Tem uma dinâmica de negatividade que está vinculada à maneira como a angústia faz parte dos processos de formação, que acho que seria interessante pensar melhor, neste momento em que nós estamos. É uma experiência social e coletiva no sentido forte do termo. Por isso escrevi um livro sobre o desamparo como afeto político. Só é possível agir politicamente enquanto sujeito desamparado. Tem a ver com o termo alemão que o Freud utiliza, “sem ajudidade”. Você não sabe mais o que esperar do outro. E esse desamparo diz respeito a uma dificuldade contemporânea: saber lidar com estruturas de negatividade.
Uma dificuldade em lidar com o desespero. Hegel diz isso: o caminho da formação da consciência é o caminho do desespero. Quando era estudante, li isso e me impressionou bastante. Se você se você não tem algum tipo de descolamento, algum tipo de queda do mundo, não é possível pensar. Se pensar é pensar contra, e antes de mais nada, pensar contra si mesmo, significa que você já começa a se deparar com limites. Afinal, pensar não é uma operação subjetiva. Pensar é uma operação coletiva por excelência. Os limites da linguagem estabelecem os limites do teu mundo, diz Wittengenstein. Lidar com essas paixões negativas é um elemento fundamental para entender as limitações da subjetividade. Sem tentar com que o pensamento te leve ao extremo, não se sai do lugar. Então você tem que fazer com que a pessoa sinta esse gosto de morte na boca, senão não pensa. Faz parte da escrita filosófica operar nesse diapasão.
Essa defesa da negatividade não leva ao niilismo? A Dialética de Esclarecimento, do Adorno, já foi acusada de nilismo por Habermas e outros setores da Escola de Frankfurt. O que se faz uma situação como a nossa? Mostrar claramente as dinâmicas de violência que fazem parte dos nossos sonhos e das nossas aspirações de emancipação. E como, para ser fiel a essas aspirações de emancipação, é necessário fazer a crítica implacável do que elas foram até agora? Tem que ser implacável no sentido forte do termo, assumindo que a gente fracassou. Significa o quê? Derrotismo, paralisia? A verdadeira paralisia é a afirmação taxativa do que já existe: dizer que não dá pra gente fazer mais do que a gente fez até agora. Ou seja, mesmo que você tenha um nível insuportável de sofrimento, talvez a maneira mais fiel de preservar suas promessas de liberdade e de progresso é negando-as radicalmente. Não porque você quer o atraso, a servidão. È porque você entende que, se este movimento não ocorrer, o impulso inicial, o caráter de verdade desses processos de emancipação não se realizam. Difícil entender que muitas vezes aquele que é mais fiel a determinada ideia é o mesmo que nega essa ideia do modo mais taxativo, porque percebe aquilo que a ideia até agora não foi capaz de produzir, como se fosse uma condição para que ela pudesse se reorientar e produzir outra coisa… Sei que para alguns é difícil entender isso. Mas em filosofia, isso tem um nome: se chama dialética. O processo de internalização da negação do próprio conceito. E acho que é importante, no momento como esse em que vivemos, a gente lembrar o que a dialética significa.
Bruno Maron desenhou você e outros filósofos dançando no enterro da esquerda. E justamente no seu ensaio “Dança”, que me faz lembrar da frase famosa do Nietzsche, “só poderia crer em um deus que soubesse dançar”, você diz que a verdadeira função da indústria cultural é nos massacrar enquanto sorrimos. Acha que a academia aprendeu a dançar conforme a indústria cultural? Ou perdeu completamente o ritmo? Existe uma articulação profunda entre comunicação de massa, universidade e entretenimento, que se consolidou entre nós de maneira muito forte. Isso explica por que a universidade não vê mais como uma tarefa sua fazer crítica cultural. Hoje isso é visto como um atentado elitista. Se você criticar algum produto ou alguma mercadoria cultural, da Beyoncé ao Oscar, vamos ser acusados como alguém que está vendo tudo de uma torre de marfim. Talvez este seja um sintoma fortes de que nós perdemos nossa gramática. É como se fosse o caso de dizer: “olha, só tem uma maneira de se falar, é assim que o povo fala”. Sempre me perguntei: quem é que fala sobre a fala do povo? Quem é que diz “o povo fala assim”? Isso é muito engraçado, porque em geral quem fala assim usa a linguagem mais mercantilizável possível. Uma linguagem que entra sem nenhuma fricção, sem nenhuma tensão, nos setores mais fetichizados da indústria cultural.
Aliás, o fetiche é um conceito nem um pouco obsoleto… Pelo contrário, esta é a época em que esse conceito realmente faz sentido. Não consigo imaginar um processo de convergência tão forte a ponto de você ter conseguido extrair mais-valia de setores da vida que eram completamente refratários a isso. Mais valia antigamente você só extraía do trabalho. Hoje você extrai mais-valia da intimidade, do seu tempo de lazer. Isso diz o caráter sistêmico brutal a que somos submetidos através de uma articulação muito profunda entre capitalismo e cultura. Imaginar que você não tem nenhuma necessidade de crise cultural… Veja, as figuras fundamentais do fascismo contemporâneo nasceram todas na indústria cultural. Trump tinha programa de TV, Berlusconi tinha uma TV, Bolsonaro apareceu para a sociedade fazendo ponta em programa de humor. Milei, a mesma coisa. São figuras que expressam a subjetividade da indústria cultural. Por isso eles têm força. A mesmo estereotipia, o mesmo jogo com a provocação, a mesma dinâmica, a mesma velocidade, a mesma unidimensionalidade. A Escola de Frankfurt insistia: as dinâmicas do fascismo não são elementos exteriores da democracia liberal; estão dentro da democracia liberal. Veja como socializamos essas pessoas, veja que tipo de subjetividade a gente produz através dessa produção esterotipada. Isso não é elitismo nenhum. É uma preocupação política maior possível. Veja o tipo de personagem que você está criando, e que depois, como aconteceu, vai entrar no campo político. Depois você não sabe mais o que fazer! A não ser ficar imitando… Que é o que está acontecendo hoje: a gente é obrigado um pouco a imitar esse tipo de subjetividade, que é a circulação geral da indústria cultural. Que não é politicamente neutra! Ela é politicamente fascista. Sempre foi.
Por que os intelectuais são tão odiados, e especificamente, por que os intelectuais da USP são demonizados? Entendo as pessoas reclamarem da USP, porque acaba pagando o preço por sua hegemonia – apesar da produtividade enorme que existe em universidades Brasil afora –, e também pelo paulistanocentrismo… que é uma doença complicada, uma incapacidade crônica de entender o país para além do Tietê, compreender o sistema de perspectivas que compõem o país. Esse sistema tem que entrar em constelação com a USP, né? Por outro lado, tem uma certa hojeriza pela figura que a gente criou para entrar no debate público. Na minha geração, era evidente que os professores admirados conseguiam entrar no debate público: Marilena Chauí, Paulo Arantes, Bento Prado Júnior. Mas hoje, pelo modelo de avaliação que nos foi imposto, isso foi destroçado nas universidades em geral. No mundo inteiro há uma vontade de silenciar a universidade. Os critérios de avaliação do professor universitário são dignos do Pai Ubu, completamente irracionais. Com isso, o corpo docente, a classe intelectual, fica sem condição material de intervir. Sem contar que há esse discurso muito ruim da raiva em relação aos intelectuais. E que não é só culpa da direita não! É como se a gente tivesse quebrando alguma forma de democracia de saberes. Como se a classe intelectual não tivesse função dentro do tensionamento da vida social.
Até mesmo a palavra “intelectual” se tornou um adjetivo pejorativo, não? Precisamos ter cuidado com a estigmatização da vida acadêmica, pois é um convite para a precarização da universidade – condição fundamental da extrema-direita. E muitas vezes o antiintelectualismo vem da própria esquerda! Quando você é um bom intelectual, usa do privilégio de não ser mandado embora da sua universidade, da sua estabilidade, para tensionar processos. Não estou submetido ao mercado nem ao governo. Claro: com minhas críticas posso perder milhões de coisas. Mas ser professor da USP permite uma autonomia. Por exemplo, hoje você tem esse conflito na Palestina. Várias pessoas que dependem do mercado, de dar palestras, ficam com receio de comentar, temem penalidades. Bem, nós na USP também vamos, mas somos independentes. Por isso é importante usar esse privilégio para mobilizar a crítica das coisas que importam. E tem uma segunda uma crítica: da abstração das ideias. Essa é uma vitória do positivismo primário, que consiste em dizer: todo raciocínio advindo de uma elaboração demorada, complexa, quebra a espontaneidade popular. Assim, esse raciocínio intelectual não deve ser levado em consideração, pois tem uma ideologia bastante interessada, do ponto de vista político, em afirmar que o popular é que é o certo, porque mistura simplicidade e autenticidade. Essa crítica à abstração das ideias começou como uma crítica conservadora. O Edmund Burke é um dos primeiros a falar: “Olha a Revolução Francesa, tá vendo no que deu praticar essas ideias abstratas? Em violência, em cortar a cabeça de todo mundo, em ficar tentando implementar coisas que não tem realidade…” Como se fosse um exercício ocioso abstrair as ideias, como se o intelectual vivesse em uma torre de marfim sem ser afetado pelas coisas materiais! E terceiro: esse antiintelectualismo é o padrão normal de funcionamento de uma sociedade que busca o imediato, o resultado, a performance.
Como é seu engajamento na política partidária hoje? Eu tenho dificuldade de sair das coisas… Mesmo que tenha críticas à direção que tomou o meu partido, o PSol. Na política partidária você opera em dois tempos, e as pessoas acham isso contraditório. Os dois atuam juntos, para forçar um outro tempo. Então há o tempo longo, essse que eu cito, que foi anulado. Quando o tempo longo é anulado, não tem nada pra pressionar o tempo curto. O tempo curto começa a se impor. O tempo longo precisa estar lá para forçar o tempo curto a fazer alguma coisa mais do que si mesmo. Claro que dentro dos processos políticos, você batalhas eleitorais, são relevantes, dizem respeito ao espaço em que você vive, às suas condições mais elementares de vida, transportes, segurança, educação… ignorar por completo isso não faz o menor sentido. O problema é que agora, quando você não tem mais o tempo longo, isso tudo do tempo curto vira tudo o que se tem, e o mais paradoxal é que aí não dá para fazer quase nada… e aí você faz muito pouco.
Esse tempo longo é o tempo da utopia? Eu chamaria o tempo longo de tempo da concretude, o tempo mais concreto possível. Porque o tempo longo é o tempo que lembra que a utopia não é uma coisa irreal, diz-se utopia para falar da dimensão de uma certa irrealidade. Mas não acho isso, acho que irreal é a situação na qual a gente está. Essa é completamente irreal. O tempo longo sim é o real, real no sentido mais forte do termo, no sentido psicanalítico do tema: aquilo que você tem dificuldade de descrever, mas é o que força as transformações. O real é o que tem a força de falar: “Olha, tem alguma coisa que a gente ainda não realizou”. Isso é um elemento decisivo da vida, do corpo social. Se tiver que chamar de utopia, não vejo problema. O que me incomoda dentro do termo utopia é a inversão do processo, parece que utopia soa como um elemento fantasioso. Não é um elemento fantasioso, é o elemento real; fantasia é aqui, fantasia é agora, isso onde a gente vive. Uma fantasia completa porque ela é insustentável. Só se sustenta a partir da reiteração mais brutal dos processos de violência. É um pouco o que tinha dito sobre a questão do gerenciamento de crise. Irreal é você imaginar que pode gerenciar essa crise. O grau da crise ecológica em que a gente está há 50 anos se sabia que ia chegar, por causa da dinâmica de crescimento exponencial do capitalismo…
A ideia de que você vai aumentar em dois graus a temperatura média do planeta já foi… Já estamos vivendo esse fim do mundo. Imaginar que isso é o real? É só o cúmulo da irresponsabilidade a que a gente chegou. Foi se adequar a uma fantasia de que esse modelo de progresso de desenvolvimento, ligado ao processo da situação de valor do capitalismo, seria algo que em nenhum algum momento traria algo bom para você, algo para mim, que não fosse simplesmente esta destruição. A gente tinha todos os elementos para ver que era o contrário. Que a dinâmica monopolista, que a redução da natureza a um simples estoque a ser utilizado infinitamente… O preço a pagar por isso seria enorme. E agora a conta chegou. [M]