Manaus, Brasília, Paris, Barcelona, Beirute, São Paulo: muitas histórias confluem na bacia literária de Milton Hatoum. Entrevista para a revista Personnalité, aqui publicada na íntegra
Milton, o nome sugere, são muitos. Todos, a origem insinua, sinuosos. Sua fala mansa, lenta e sólida, passeia por memórias da infância e da juventude, costeia temas da literatura e da cultura, contudo nunca se desvia de seus grandes temas – os conflitos humanos. E conflito é poder, é política: assim, lembranças das árvores da infância amazônica ou do deslumbramento com o céu de Brasília inevitavelmente desviam para suas preocupações com os destinos e desatinos do país. O tom de Hatoum também é sinuoso: em leve menear de prumo, migra da seriedade ao bom-humor, do entusiástico ao melancólico, do grave ao doce, do professoral à confidência – basta um leve toque na canoa. O ritmo do seu rio-discurso, é porém, seguro e sereno, ainda que entrecortado por pausas misteriosas – pausas orientais.
“Ele é assim concentrado, contido, tranquilo”, descreve Ruth Lanna, sua mulher há 18 anos. “Acho que o norte lhe trouxe essa calma, essas pausas.” Talvez seja o calor, talvez a herança árabe? “Esse lado enigmático dele é por conta de estar sempre pensando em literatura, ele tem um amor inequívoco pelos livros; cria-se esse mistério em torno dele, mas na verdade não tem nenhum mistério – ele só está é pensando em livros o tempo todo. Ele sabe o que quer, tem opiniões fortes, daí a sensação de solidez”, diz Lanna. “Conversamos bastante sobre cultura e literatura árabe, o Milton tem muito interesse no assunto e sempre estimula a tradução de textos árabes ao português. Embora não nos vejamos com constância, minha relação com ele é fraterna: é aquele amigo com quem você sabe que pode contar”, afirma Mamede Jarouche, professor de literatura árabe na USP. “Tenho em casa os livros do Milton em inglês também. Por dois motivos: dar aos ingleses que perguntam sobre autores brasileiros e para ver como ele soa em outra língua – o quanto se perde e o quanto se mantém do encanto de sua prosa em português. Não à toa seus livros foram tão bem recebidos no mundo anglofônico”, conta o pupilo Dedé Laurentino, escritor pernambucano radicado em Londres. “Conheci o Milton em 1975, na Aliança Francesa, uma turma da FAU”, lembra a amiga e editora Maria Emilia Bender. “Ele era espigadão, cabelo armado, meio afro, de jovem muçulmano, sempre sério e compenetrado; seu apelido era Manaus. Em 1980 vim morar na Europa e o reencontrei em Barcelona. E o Milton, de arquiteto que era, tinha virado escritor, fazia planilhas, punha cartolinas pela parede, pra seguir personagens… eu pensava, será que isso vai dar certo? Ele sempre muito sério, falando dos latino-americanos da época. No meu primeiro ano de Companhia das Letras, ele levou o Relato de um certo Oriente e fui a primeira leitora. Gostei demais e viramos amigos. Sempre foi legal trabalhar com ele, até o penúltimo livro cuidei de seus livros, e Milton é muito generoso, gosta de dar os créditos à relação autor-editor”, elogia Bender.
Relato de um certo Oriente revelou ao Brasil a prosa encantatória de Milton Hatoum, sujeito original por suas diversas origens: nascido em Manaus, de família sírio-libanesa, meio cristã, meio muçulmana, formou-se em arquitetura, morou na Europa e nos EUA antes de se radicar em São Paulo e estreou em literatura já depois dos 40 anos. Publica pouco – há sete anos não lança nenhum título –, escreve com moderação (é cronista d’O Estado de S.Paulo), e, apesar do sucessos de público de crítica e das traduções em dez línguas, tem participado de cada vez menos eventos literários, à semelhança do amigo Raduan Nassar. No entanto, seu nome voltou à tona com a ótima audiência da minissérie Dois Irmãos, adaptação do livro mais vendido (200 mil cópias), também adaptado aos quadrinhos. Adaptações, migrações, viagens, memórias, digressões sobre política, religião e literatura: uma conversa com Milton são mil conversas.
Como é se ver adaptado ao cinema, ao teatro e às histórias em quadrinhos? O meu texto é muito próximo do original, mudaram muito pouco. Foi uma experiência muito recente. Não havia adaptações dos meus livros. Em cinco ou 6 anos surgiram várias. “Adeus do Comandante”, o conto, vai ser filmado pelo Sergio Machado. Estou escrevendo um argumento para expandir o conto. O Marcelo Gomes vai filmar Relato de um certo oriente, um romance difícil pra ser adaptado, poucos diálogos. Sondagem da memória é difícil filmar, as visões e lembranças das personagens… Com a adaptação de Órfãos do Eldorado, e Dois Irmãos virando peça, quadrinhos e minissérie, de repente me vi envolvido por outras linguagens que não domino. Nem me intrometo no roteiro. Os gêmeos são excelentes. A gente conversou, fez algumas reuniões, peguei a planta de Manaus e fui indicando os lugares do romance que ainda existem, mostrei meu álbum de família, eles passaram um tempo no Amazonas, navegaram pelo rio Negro, conheceram o mercado, o centro. Demoraram 3 anos, um livro de 300 páginas. Fizeram primeiro um roteiro e depois planejaram os quadros. Houve uma única discórdia quando eles me apresentaram o quadro da família, a Zana não parecia com quem eu pensava. Quando eles viram as pessoas dos anos 40 nas minhas fotos eles refizeram. Eles têm um domínio incrível da relação entre palavra e imagem. As seis páginas iniciais só há silêncio. É uma aproximação de Manaus até vc entrar na casa. Cada mudança de página tem de ser pensada… é muito complicado, o quadrinho já sugere o que vem depois. É uma variedade muito rica e ao mesmo tempo todas as proporções são muito harmônicas, acho invejável.
E você desenhava, né? Eu desenhava muito antes de eu entrar na FAU. Quis estudar arquitetura porque gostava de desenhar. Morei muito jovem em Brasília, que é uma grande lição de arquitetura e urbanismo. Um projeto utópico que foi realizado – não deu certo porque o Brasil não deu certo. O Brasil ficou encalacrado, depois do golpe militar. Aqueles projetos e sonhos foram interrompidos, mas Brasília olhava para o futuro. Na maioria das cidades brasileiras há uma memória urbana que é destruída, e o mesmo ocorreu em Brasília. Foi a cidade em que mais me senti só na vida. O céu tem a beleza do cerrado, me encantavam as cachoeiras. Essa experiência está muito presente no romance que estou escrevendo. Cheguei lá aos 15 anos. Passei no Colégio de Aplicação, fundado pelo Anísio Teixeira, uma excelente escola, depois fechada pelos militares.
Como foi ir a Brasília tão novo? Cheguei aí em 1967, com dois amigos. Foi uma loucura minha, primeira grande loucura da juventude. Houve outras. Meu pai era comerciante, tinha uma loja. Ele não veio ao Brasil como imigrante. Ele veio conhecer a Amazônia que meu avô havia conhecido como imigrante em 1904, ele viveu lá nove anos antes de voltar a Beirute. Com 30 anos, meu pai quis conhecer essa região. Conheceu minha mãe e ficou. Tem ascendência libanesa, mas católica. Meu pai era muçulmano. Tenho família no Acre, lá há muitos sírios-libaneses. Meu pai vem de Beirute, minha vó veio de Bathum. Meu avô materno é do sul do Líbano. Minha família tem cristãos e muçulmanos. O Brasil absorve isso, mais do que outros países. A gente dilui as origens. Dilui as raízes fincadas no solo. A gente se mistura logo e os sírios libaneses se misturaram logo, são hoje quase dez milhões. Um dos grandes dicionários é o Houaiss, um grande filólogo. Há grandes filólogos brasileiros de origem árabe, como o Bechara, o Cury. Há essa tradição carreira do migrante, os pais trabalham muito para que os filhos estudem.
Fala árabe? Não falar árabe é uma das grandes frustrações da minha vida. O Borges antes de morrer ele aprendia árabe com um egípcio em Genebra. Borges olhou muito para a biblioteca do oriente. Um de seus livros fundamentais é o Livro das Mil e Uma Noites, que ele cita em toda a sua obra. Um livro fundamental também na formação intelectual do ocidente! Os estereótipos e os clichês ocultam a importância da cultura oriental. É mais fácil inventar clichês de terrorismo e violência do islã do que falar dos fatos.
Falando em clichês, recentemente aconteceu uma polêmica por causa de um uso de turbante: uma garota branca, que usava o turbante para disfarçar a perda de cabelo causada pela quimioterapia, foi acusada por uma militante negra de “apropriação cultural”… Não podemos negar nossas etnias formadoras. E podemos nos apropriar de tudo. Fomos formados pelos europeus, pelos africanos, pelos asiáticos e pelos orientais e pelos indígenas. A religião islâmica está muito presente nos negros baianos, tão importante na identidade. Se eu quiser usar uma pintura xavante eu não posso? Viveiros de Castro diz que índio quem acha que é indio. Identidade é uma escolha. E não é fixa. Quando você assume uma identidade você está falando de muitas coisas. O turbante é usado em várias culturas, como símbolo diferente em cada uma. Há polêmicas que me dão preguiça. Numa certa idade você não acompanha mais essas coisas. O que acho complicado é o preconceito. Quando se fala em humilhação e exploração, ninguém pode ficar calado. O turbante pode ser só um adereço estético, e não faz mal a ninguém. A humilhação sim é grave.
Já sofreu preconceito? Acho que já sofri preconceito na Europa. Morei em Madri, em Barcelona e em Paris. Há uma Espanha profundamente árabe. Há um antisemitismo enorme na Europa e nos EUA, que atinge os árabes e os judeus. No Brasil não: aqui o preconceito maior é contra os negros e os pobres. Ainda não assimilamos. O Brasil não olha os pobres como seus conterrâneos. Essa é a grande diferença da democracia. Se olhasse, haveria boas escolas públicas. Somos uma caricatura da democracia.
Você trabalha também bastante o erotismo, a sensualidade, em sua literatura, como no conto “Varandas de Eva”… No “Varandas da Eva” há uma história transgressiva, pois trata de um dos grandes tabus, que é o incesto. Tá na Bíblia, no Hamlet… violência, morte, luta pelo poder. O erotismo e o incesto estão relacionados a outras coisas no livro, que tem vários subtemas, tensões e conflitos por todos os lados. Eu quis recuperar a trama do mito, sempre se recorre ao mito, histórias que já aconteceram. Quis trazer isso para Manaus, naquele momento histórico específico, falando do nascimento de Brasília, no golpe militar, a destruição de Manaus, como houve em várias cidades brasileiras – os prefeitos eram interventores e faziam o que queriam. Os prefeitos não entendem suas cidades no Brasil. Nesse sentido ele é mais ambicioso que meu primeiro livro. Dois Irmãos expande o intimismo do Relato, tem a tensão entre o norte e o sudeste. Há elementos antropológicos da formação da Amazônia, a exploração da índia, depois explorada por um capitalista indiano. Um capitalismo manco que temos no Brasil. E esse narrador que é fora da elite, da família, um agregado, que foi quem eu escolhi para dar voz. Todas essas personagens eu conheci, convivi com pessoas semelhantes, uma época em que as empregadas falavam o nhengatu, não recebiam salário, eram formadas nas missões religiosas, educadas para serem domésticas. Esperei muito tempo pra escrever meu romance. Quis pensar nos gêmeos rivais como uma metáfora de um Brasil inconciliável, um moderno e outro muito arcaico. É espantoso no Brasil essa convivência. Uma cidade que pode ter tudo é precária, violenta como um país mal resolvida.
Você fala de um modo amargurado de Manaus. Manaus é muito miserável e violenta, é espantoso. 40% da cidade não tem esgoto. E está no centro de uma riqueza absurda. É o oitavo PIB do Brasil e no entanto é um dos IDHs mais baixos. Quis falar do destino desses gêmeos como esses dois brasis antagônicos e reconciliados. É um pouco o que vemos hoje. A gente não se entende, não quer se entender, não quer conversar. No limite, uma parte do poder político e uma parte das elites e uma parte do judiciário não querem mudanças. Uma parte da elite eu sei que gostaria que mudasse, mas uma parte mais arcaica e conservadora prefere se proteger. Por isso este país é encalacrado. Quando o legislativo e o judiciário não querem uma mudança estrutural, esse país fica sem saída. Se o judiciário fosse de fato justo e equânime, este país seria outro. Os três poderes são cúmplices. É um país emparedado. Pelas empreiteiras, que viraram um quinto poder (risos).
Você fala muito do presente nesta entrevista, mas sua literatura está toda no passado. O passado é o que me move: trazer o passado para o presente. Não consigo escrever longe da minha experiência, sobre temas distantes de mim. Preciso unir minha vida ao tempo vivido. Assim eu digo uma verdade mais profunda. E a verdade que me interessa é o drama humano, os conflitos das relações humanas. Por isso demoro tanto, tentando escavar no passado aquilo que pode interessar à narrativa.
E como é este livro que você está terminando? Se eu conseguir escrever mais dois, está bom. Meu ritmo é lento. Faço muitas versões de cada livro. Faço um grande desenho do que eu quero. E aí armo na minha cabeça a fábula, fico ruminando. Pensando no que eu vou escrever, no que posso escrever, no que tem da minha vida que pode ser inventado e lembrado. Aì vem o arquiteto. Faço um esboço no papel manteiga e desenho a narrativa como faziam os escritores do século 19, em gráficos. Há escritores que sentam e escrevem, mas eu não consigo. Preciso desse esboço antes. Dou muita tenção aos personagens, como eles mudam. Mas depois, na hora de escrever, tudo vira outra coisa. E quando escrevo à mâo… escrevo quando não consigo deixar de escrever. Ninguém é poeta das 9 às 5. Você é poeta em tempo integral. Anoto muito, e quando dá vontade de escrever eu escrevo. Prefiro muito mais ler do que escrever. É difícil estabelecer uma harmonia entre a linguagem e a imaginação. O Zola disse que um romance não se faz com ideias, e sim com palavras.
Você se identifica muito com Flaubert, não? Não fico tanto como Flaubert porque ele era um herdeiro, não se preocupava com a vida. Eu ainda tenho que escrever crônicas, dar palestras, cursos, porque não vivo de direitos autorais. Aprendi a ler Balzac lendo Flaubert. O salto de Flaubert foi enorme porque a linguagem já era uma personagem, o estilo era o centro da preocupação formal, e essa vontade de criar um narrador transparante, como naquele poema do Borges, que fala do narrador. Pro Flaubert, a história deveria se contar a si mesma, sem intermediação, sem comentários ou interferências como um narrador clássico do século 19. Ele pensou na linguagem como forma. Um estilo sem pompa, adequado ao que ele queria dizer. Ele buscou a precisão, a força expressiva com poucas palavras, tirou ornamentos, grandes descrições inconsequentes. É como se ele tivesse reescrito o trabalho dos antecessores. Seu grande romance, Educação Sentimental, deve muito às Ilusões Perdidas, do Balzac. Um grande escritor tem uma biblioteca por trás. Borges, Rosa, Cortázar, mostram muitos escritores por trás.
Quem foram seus mestres? Tive bons professores. Comecei lendo Graciliano, Jorge Amado, Erico Verissimo, Flaubert, em Manaus. Em Brasília li teatro, mais brasileiros. Em São Paulo, com Davi Arrigucci Jr., cursei disciplinas de literatura hispano-americana, Borges, Cortázar, Rulfo, Onetti. O Davi nos fez uma lista de grandes livros clássicos. Isso foi em 1976, tinha 20 e poucos. Comecei a ler toda essa lista. Russos, Conrad, Faulkner. Devo muito ao Davi. Ele leu meu primeiro manuscrito, fez algumas observações, fez uma orelha belíssima. Foi um mestre formador. Uma coisa é indicar 50 Tons de Cinza, outra é indicar A Morte de Ivan Ilitch, do Tolstói, ou Grande Sertão Veredas, ou qualquer livro do Faulkner, como Luz em Agosto. Se você lê os livros errados na formação, isso influencia errado a sua vida. Se você quer ser poeta e lê livros ruins, já era. A rigor, você não precisa de oficina literária, nem de teoria literária, pra aprender a escrever. Aprender a escrever é só escrever mesmo, como Rosa diria. Você precisa aprender a ler. Se vc pega um ultracomplexo como Grande Sertão e não descobre a complexidade, fica difícil. Você não vai usufruir o que o romance te oferece. E por isso a crítica é importante. Quando li Palmeiras Selvagens, só fui entender na releitura, anos depois.
Você deixou de ler os contemporâneos? Eu hoje praticamente só releio. Não tenho muito tempo pra ler. Recebo muitos livros… me angustia muito, não dá tempo de ler. Tempo mental, tempo de vida… e tempo relacionado ao meu trabalho. Você paga imposto, escola, seguro saúde… é uma loucura. Gostaria de ler mais. Alguns amigos indicam autores jovens, e acabo lendo. De uns anos pra cá, basicamente eu só releio clássicos, mesmo os contemporâneos, como os hispânicos. A América Latina na segunda metade do século passado foi muito forte na literatura. Uma das coisas que me tirou o complexo de viralata é o fato de termos uma grande literatura, no Brasil e na América Latina. Se o brasileiro da classe média tivesse acesso à literatura brasileira, teríamos muito mais orgulho próprio, e não nos enganaríamos tão fácil do ponto de vista político e idelógico. Se você ler Vidas Secas e São Bernardo, ele não ser ingênuo.
Por que o brasileiro lê tão pouco? O desinteresse pela literatura faz parte de um desinteresse pelo saber, pelo conhecimento. A literatura é só uma das categorias do conhecimento. Você pode estender ao fato de que poucos conhecem matemática, história… a escola pública foi totalmente desmantelada. Foi destruída porque até 1964 havia um projeto educacional. Havia filósofos pensando na inserção social, na educação em tempo integral, na integração entre as disciplinas, e esses educadores foram banidos. Citei numa professora recente, que completou 100 anos, o Anísio Teixeira. Falta uma formação mais sólida de professores. Falta investimento na educação. Se os professores não conhecem é porque foram malformados. É querer pedir muito de alguém que ganhe um salário de dois mil reais que seja apaixonado por sua profissão. Essa é a grande desfaçatez das elites políticas, o desinteresse na educação pública. Mas uma parte da classe média não tem acesso à literatura, e poderia se interessar. O Dois Irmãos teve um público enorme, espantoso. Mas se você pensar que ele vendeu 200 mil exemplares em 18 anos, num país de 206 milhões de pessoas, e falar pra um americano, ele vai ver que isso é muito pouco. Um Prêmio Goncourt vende 400 mil exemplares em um ano. Isso é vergonhoso. E se reflete no Congresso, onde o nível dos deputados e senadores é espantosamente baixo. E milhões de brasileiros só leem a Bíblia, e a leem ao pé da letra, o que é muito perigoso. Quando você tem políticos que só falam apologia da Bíblia, como o Crivella, o Cunha, o Feliciano, pessoas abomináveis, você corre o risco de ter um país de fanáticos. Se tudo for pecado, então a nossa humanidade está perdida para sempre. Você ler a Bíblia sem a complexidade histórica e simbólica é muito perigoso.
Temos políticos muito ignorantes, não? Uma boa parte da esquerda também é preconceituosa e pouco sutil. Mas a direita geralmente é muito ignorante. Tanto que não há muitos intelectuais de direita. Quando você tem um ministro de educação que convida um ator pornô pra conversar em seu primeiro dia, vemos o quão despreparado é este governo. Aì vemos um abismo entre um projeto de educação de qualidade e aquilo o que você quer fazer. O convite ao Frota é um disparo a qualquer possibilidade de diálogo, rompe-se qualquer conversa. Hoje prefiro visitar escolas e universidades a festivais literários, e vejo um interesse crescente pela literatura. Mesmo quando tudo puxa pra trás, quando essas forças negativas e obscuras querem tirar dos jovens e das crianças a possibilidade de ler, a paixão pela literatura só cresce. As coisas não são tão cristalizadas. Nem coloco em termos de esperança, e mais de um trabalho diário e incansável no sentido de formar leitores.
Como é sua ação política? A minha meta, modestíssima, irrelevante, é formar bons leitores, com capacidade crítica, apaixonados. Como faço isso? Primeiro, escrevendo alguns livros. Depois, conversando com jovens. E contribuindo com ONGs que cuidam de educação. Colaboro há muito tempo com três jovens da Vera Cruz que fizeram 170 bibliotecas pela Amazônia, em comunidades. Fui falar deles no Esquenta, da Regina Casé, alguns colegas nossos me criticaram, por causa da Globo etc. Uma vez uma menina do interior do Amapá veio me dizer que gosta da Clarice Lispector. Eu cito muito a Vagalume, doo livros pra eles. Agora, com a crise, perdeu 90% do dinheiro a Vagalume. É um desperdício o Brasil. Em Manaus faço parcerias com escolas e universidades públicas, levo livros, faço palestras. Virei um missionário laico.
Você não pretende dar mais aulas? Saí da universidade em 2000, quando publiquei o Dois Irmãos, que foi o romance que mudou minha vida. Escrevi o livro, casei com uma paulista, tive filhos e comecei a viver de literatura.
Como você vê a Amazônia hoje? A Amazônia caminha inexoravelmente para a extinção. Quem quiser conhecer, vá nos próximos anos. A beleza dos rios não vai durar muito tempo. E falo sobretudo dos povos indígenas. Há uma destruição sistemática dos povos indígenas amazonenses. Não há projeto, um pensamento para a Amazônia. Belo Monte foi um projeto desnecessário, como diz o livro do jornalista Lucio Flavio Pinto.
Mas a Amazônia é um grande personagem dos seus livros. Não me incomodo de ser chamado de escritor amazonense. O Brasil é tão grande que ser brasileiro não basta. Vivi a metade da minha vida em São Paulo. Tenho família em Manaus, tios, sobrinhos, primos. Hoje gosto de navegar pelo rio Negro. A cidade me amargura muito, é muito hostil. Houve uma grande burrice de todos os prefeitos não terem plantado árvores na cidade toda. Você não consegue caminhar, por causa do calor. Você poderia transplantar árvores e fazer calçadas largas, mas não fizeram isso. Uma loucura. E falo isso há 30 anos. É uma cidade violentíssima. Dei uma entrevista ao New York Times e os políticos bairristas não gostaram. Mas não têm visão. É um dos lugares mais lindos que eu conheço. Conheço a América Latina inteira, toda a Europa, morei nos EUA, mas o rio Negro é um dos lugares mais bonitos que existem. Só subir Manaus e ir até Barcelos, Novo Airão. É de uma beleza assustadora. O Dráuzio Varella adora, queria morrer lá. Sinto falta dos peixes, das frutas, dos sabores. A comida é das coisas que mais me lembra a comida amazônica. Tenho ido mais a Belém que a Manaus, que ali eu vejo a cidade da minha infância, a atmosfera, o ambiente, está mais preservada e digna, culturalmente mais forte: tem fotógrafos, escritores, poetas interessantes, como Luiz Braga, Max Martins, Antonio Moura, Emmanuel Nassar.
Que tem lido? Li um livro chamado A Limpeza Étnica na Palestina, do israelense Ilan Pape. Li o Victoria, do Conrad. Li Sonia Barros, Ana Martins Marques. Estou curioso em relação ao novo do Joca Reiners Terron.
Fala mais um pouco do seu romance novo… Tem muita coisa de Brasília e de SP nos anos 70. É sobre minha juventude. Uma outra versão do Cinzas do Norte. Escrito de outra forma, só através de diários e cartas. Gosto de escrever nessa primeira pessoa que se desdobra na terceira pessoa. Vou fazendo experiências com a voz. O tom do narrador é muito importante. O Shakespeare é um mestre na combinação da fala popular com a fala culta. Como ele e o Guimarães Rosa conseguiram incorporar o popular no culto, sem dissociar as duas coisas? Isso já tinha sido conseguido pelo Graciliano Ramos, quando o sertanejo tem uma fala interiorizada. Essa separação é falsa. E nos impede de ver o outro, diferente de nós, socialmente. Nisso o modernismo foi fundamental, pois os modernistas assimilaram a fala popular, como exemplifica o Macunaíma. Releio os contos do Machado, escrevi um conto inspirado na “Teoria do Medalhão”, que é muito atual, a quem quiser se dar bem na vida a qualquer preço (risos), tem muita gente que segue essa teoria sem ter lido. Minhas leituras se concentraram muito no romance, coisas sobre o cerrado, Brasília, os campos gerais, diários de amigos, de viagens, coisas dispersas por aí, cartas. Acho que o romance explora quase sempre um ângulo histórico e social, além da dimensão simbólica. Para mim, há duas questões centrais… A primeira, é o conflito interno das personagens e a relação entre elas. E a segunda questão é a posição e o papel do narrador. Jorge Luis Borges, nos últimos versos do poema “Xadrez”, evoca a figura do jogador que, movido por Deus, move a peça no tabuleiro. Mas há um deus, em letra minúscula e misterioso, que começa a trama do jogo e da narração. Esse deus oculto pode ser uma metáfora do narrador, alguém está detrás de tudo, como aparece no fim do belíssimo poema do escritor argentino: “Deus move o jogador, e este, a peça./Que deus detrás de Deus começa a trama/de pó e tempo e sonho e agonias?”
Conheceu o Líbano? Estive lá duas vezes. Uma vez no começo dos anos 90, quando Beirute estava muito destruída pela guerra civil. Meu pai não ia havia 30 anos. E depois voltei uns seis anos atrás, para um festival de literatura latino-americana, com a cidade reconstruída. Beirute é muito bonita. No Líbano você percebe a presença de muitas civilizações. Ainda que ferida pela guerra civil e vivendo uma tensão contínua por conta dos milhares de refugiados sírios, é a cidade mais linda do Oriente Médio. Gostei muito de um bairro central chamado Hamra. Muito vivo, cheio de livrarias, cafés. Gosto demais do vale do Beka. Não só da história, dos templos romanos, o vale tem 10 mil anos de civilizações… mas também por causa dos vinhos maravilhosos. Grandes tintos! Tenho amigos lá, como Elias Cury, já veio pro Brasil, lançou aqui o livro Yalo. Líbano tem uma tradição cultural muito forte, cheia de revistas, jornais, cineastas, artistas plásticos. Mas há sempre o fantasma do sectarismo, que é o fantasma do mundo hoje. Há sectarismo em todo o Oriente Médio. As religiões têm sentido de pretexto para tornar este mundo mais violento.
Você tem uma religião? Sou agnóstico. Mas tenho várias superstições (risos). Faço um monte de coisa… algumas são segredos… melhor não contar nenhuma, vou acabar decepcionando meus leitores (risos). Minha mãe era muito católica, meu pai era muçulmano não praticante, acompanhava minha mãe à igreja, durante 50 anos. Acho graça quando vejo esses clichês das brigas entre cristãos e muçulmanos. Não dá pra confundir alguns terroristas com um bilhão de pessoas. As pessoas esquecem que um dos grandes momentos da civilização do ocidente foi a presença árabe e judaica na Espanha, durante 700 anos. Quando os filósofos, cientistas e humanistas judeus e árabes criaram escolas de tradução na Espanha, trabalharam juntos. O antisemitismo não está na Palestina. Antes de Israel a maioria era palestina. O grande antisemitismo está na Europa. Parece que os israelenses esqueceram disso? Os palestinos e os muçulmanos não são demônios.
Como foi viver na Europa? Vivi três anos em Paris e um ano na Espanha. Vi várias cenas antisemitas em Paris. Quando desembarquei, nevava, as poças de neve derretiam. Uma senhora disse: quando os alemães estavam aqui, a cidade era totalmente limpa. Tive aquele choque. Isso foi em 1981. Gostava muito do Marais. Morei lá. Hoje virou um bairro gentrificado. Morei num quarto de empregada lá, era barato, adorava andar pela Bastilha, pelo norte, onde há muitos migrantes, e do Jardins de plantes, dos parques de Paris, como o Bois de Boulogne. Ia para os subúrbios ricos dar aulas de português e voltava andando pelo Bologne, pelo Luxembourgo… morei entre o Marais e o 12eme.
Mas espere, você estava falando do romance novo e nos perdemos… Nem sei se vou publicar isso aí, mas a ideia é lançar dois volumes. São dois romances sobre o mesmo momento. O segundo é totalmente ambientado em Paris. É um grupo de amigos que vivem aquela época, é impossível não falar na ditadura. Vivemos hoje de certo modo uma consequência da interrupção democrática. Passamos 25 anos sem formar líderes políticos, com censura política e ao pensamento. O que surgiu depois é lastimável. Muita gente ainda surgiu no fim dos anos 70, do PSDB e do PT. Depois vieram o centrão, Renan, Cunha. Nossa prática democrática, do diálogo, da discussão, se perdeu durante aqueles 25 anos. Muita coisa dessa brutalidade verbal é fruto desse longo silêncio. Acho que o Brasil se tornou muito mais violento. A quantidade de brasileiros executados… Você lê o livro Cabeça de Porco, do MV Bill e do Luiz Eduardo Soares, e se impressiona. O dia em que a classe média se sensibilizar com isso, o Brasil muda. Nós não somos sensíveis a essa matança. Quando concluirmos que isso é inadmissível e a desigualdade deve mudar, o país muda. Precisamos de menos confronto e mais convergência de ideias. Precisamos de mais paixão pelo outro, pelas nossas diferenças, para mudar. Precisamos ver que nosso abismo social e econômico não é normal. Faz parte dessa barbárie. Com esse ódio, figuras que chamam para a luta e não para o diálogo, não teremos saída.
No Brasil tem se perdido a figura do intelectual público, não? Mesmo na França a figura do intelectual público enfraqueceu. A figura do escritor não é tão mais relevante quanto era nos 50, 60, com Sartre, Camus, Aron. Havia uma esquerda mais independente, mais libertária. Mesmo os liberais como Aron eram intelectuais mais livres. É difícil no Brasil, um país tão polarizado, ser um intelectual independente. Gosto do livro do Edward Saïd, O O Papel do Intelectual. O intelectual não deve ser um devoto nem ser totalmente leal a uma religião ou aum partido e tentar falar a verdade com discernimento. Um intelectual independente deve critica qualquer poder, à direita e à esquerda. Estamos falando de um grande intelectual que rompeu com a OLP, porque acusou a enorme corrupção do Arafat. É como se eu acusasse a corrupção do PT e fosse banido do PT (mas eu não sou filiado ao PT). Há uma patrulha. Eu temia a patrulha dos anos 60 e 70, a rádio-patrulha, que em Brasília era feroz. Quando você não tem liberdade ou é monitorado pela esquerda ou pela direita, você perde a sua liberdade crítica. Mas eu critiquei o impeachment. Tenho certeza de que foi um golpe parlamentar. Por tudo o que se sabe dessa quadrilha que está no poder, Padilha, Geddel, Renan, Jucá, você vê que foi claramente armado. Isso não me impede de criticar os governos petistas. Há muitas falhas, erros devidos à corrupção da cúpula do PT, por que vou mentir? O Haddad pode ser uma esperança. Votei nele e votaria nele. Quando você esconde o que você quer dizer, está fazendo algum tipo de jogo. Não gosto de fazer jogos. Mas também é preciso não ser um purista ideológico, daquele tipo que critica os intelectuais que participaram do governo Getúlio Vargas, como Vinicius de Moraes, Drummond, Villa-Lobos.
Tivemos realmente um golpe de Estado? A mudança de governo foi um golpe, uma manobra. Chomsky chamou de soft coup. É um governo perdido. O único ministro preparado, que sabe o que quer, é o Meirelles. Por ironia, foi do governo Lula. Os outros ministros são totalmente despreparados. Inclusive esse, da Cultura. Ele é um homem grosseiro, não tem nenhuma sofisticação, nem literária, nem artística, e duvido que seja um bom gestor. Não torço pelo pior, porque assim você massacra os pobres, que são sempre os primeiros que se dão mal, não é a classe média.
Você esteve presente à premiação do Camões pelo Raduan Nassar, não? Raduan me convidou pois somos amigos. Achei que o Freire estava delirando. Foi muito inábil, em quatro frases poderia ter destensionado: “Discordo, mas tudo bem, quem está sendo homenageado é o Raduan”. Mas ele é inculto, seus assessores não alcançam a importância da obra do Raduan. O que revela o quanto a nossa elite política é ignorante e truculenta. Essa direita sempre foi muito ignorante e bruta. Imagine, criticar o Raduan por levar o prêmio? Não sabem nada dele, não sabem nada de literatura. E se orgulha de não saber nada. Ele doou uma fazenda-modelo, maravilhosa, uma mancha de terra roxa no sudoeste de SP, tinindo, para uma universidade… Quantos empresários ricos você conhece que doaram uma fazenda para uma universidade? Uma das coisas que o rico brasileiro deveria pensar, que é invejável nos EUA, é como os ricos lá contribuem socialmente. Na educação, nas artes, isso nos EUA é fantástico. Como aquela organização do Warren Buffet e do Bill Gates, que planeja doar toda a sua fortuna para universidades, escolas, ONGs, instituições [Giving Pledge]. Não temos essa mentalidade aqui no Brasil de devolver à sociedade aquilo que lucramos. Estamos focados na expoliação direta, de que fala o Sérgio Buarque de Hollanda – nós não socializamos nada, não queremos dividir o que ganhamos. E nosso corporativismo e patronialismo fazem com que as instituições pensem nelas, e não nas sociedades, o que faz com que o poder seja privilegiado. Se você não acaba com privilégios, não pode falar em meritocracia. Meu filho não pode falar em mérito. Eu pago uma fortuna nas escolas dos meus filhos. Estou preocupado é que a escola foi vendida a um grupo poderoso, o Baena. Ganha-se muito dinheiro com educação, é uma mina. Quanto mais pessoas ricas se envolverem com ONGs que de fato fazem um trabalho social importante, maior será a mudança positiva para o Brasil. Em vez de aprofundar esse abismo da desigualdade – sendo um pouco ingênuo – , seria melhor fazer uma aliança com pessoas que têm capacidade de gestão e investimento para financiar ONGs que façam uma diferença pro país. Seria fundamental que todo jovem lesse pelo menos Vidas Secas. O governo poderia fazer uma compra enorme do Vidas Secas e dar às pessoas. Um mês da leitura, lendo um clássico acessível, não precisa ser o Avalovara ou o Grande Sertão. Esse tipo de formação literária e humanista e musical da classe média ainda é muito precária, infelizmente. Colégios religiosos são muito limitados, do ponto de vista da formação estética, e há milhares espalhados pelo Brasil. Você não trabalha com um livro porque tem uma cena erótica… isso limita muito a sensibilidade e a imaginação dos homens.
Com uma situação política tão deprimente, a saída não seria fugir ao Estado? O trabalho de ONGs como a Vagalume, lembro que o professor Aziz Ab’Saber dizia: não gosto de ONGs pois acho que elas fazem o que o Estado faz. Mas no caso da Vagalume eu apoio porque eles fazem o que tentei décadas na USP. Formar crianças que nunca viram um livro como leitores pode parecer pequeno, mas são dezenas de milhares de crianças na Amazônia. São brasileiros como nós, como diria Mario de Andrade naquele poema lindo sobre os seringueiros. Quando nós da classe média e das elite assimilarmos que os seringueiros, os caboclos, os pobres, são como nós, talvez a gente mude. Não sei se é uma esperança, mas sei que é um desejo.
Literatura pode ser um escapismo a esta realidade tão depressiva? O Brasil não é uma democracia. É uma caricatura das mais grotescas. Quem vive aqui sabe. Democracia é você ter os mesmos direitos ao que é básico na vida na formação do ser humano. Quando isso não acontece não há democracia. Eu me refugio muito na literatura. Quando eu não estou lendo sou muito mais infeliz do que nas outras horas. A minha viagem na vigília a literatura. Estou o tempo todo repetindo aquele verso do Eliot, “vai, pássaro, vai, o ser humano não suporta tanta realidade”. Não sei eu me refugio nela ou ela é que está tão dentro de mim que mesmo que estou lendo ou escrevendo estou pensando em outra peça de teatro ou em outro romance. A sensibilidade não está no nosso DNA, você forma o saber. Quando você tenta tirar do currículo escolar disciplinas que trabalham com tua imaginação e teu corpo, você está tirando parte da tua humanidade, da tua liberdade. Corremos o risco de virar um país fanatizado pela religião e pela ideologia, e isso será uma catástrofe.
Mudando de assunto, você teve filhos já bem maduro, como é? A vantagem de ser pai e coroa é que te dá uma energia brutal. Quando meu primeiro filho nasceu eu tinha 50 anos. Cinzas do Norte nasceu com ele. Eu escrevia muito mais quando ele estava chegando. E depois com Gabriel, em 2007, foi uma carga de energia, de vontade de continuar, de fazer coisas, educá-los. Eles viram tudo, o filme, a minissérie, o romance gráfico Isso me mantém mais aceso. João está em plena adolescência e me traz tudo, um vocabulário novo, uma linguagem nova, dos games, é um atleta, gosta muito de basquete e handebol e futebol, então conheço todos os grandes jogadores de basquete da NBA por causa dele. Eles me movem. E eu gosto de nadar, uns 5 mil metros por semana, nado na praia, na casa que a família tem na Baleia, mas gostaria de ir mais. Foi a primeira casa da Baleia, eu acampava ali perto, na Paúba, quando estudava na FAU, um paraíso cheio de borrachudos. Não aceito mais convites para viajar ao exterior. Prefiro falar para estudantes brasileiros. Cansei totalmente do circuito literário. Sim, vou para a Flipoços, vou muito ao Sesc, que acho muito importante, principalmente em São Paulo, sou fã incondicional, têm uma programação muito boa. Mas não gosto de falar de política. Nem de amenidades. Gosto de falar de literatura, de um romance, de outro. Prefiro falar dos outros a falar de mim, sempre me sinto muito constrangido. Quem é soberano é o leitor. O autor intervém, fala publicamente, dá entrevistas. Quando ele morrer, só vai interessar é o livro. Sei muito mais do Rei Lear que do próprio Shakespeare. Nunca li a biografia do Faulkner. Homero? Supõe-se que existiu… os autores vão ser esquecidos. O que vai valer é um ou outro poema, um ou outro livro. Acho lamentável que a vida do escritor apareça mais que seu livro. Não tem a menor importância saber que o Onetti bebia 20 horas por dia. O mais importante é ler os romances e os contos do Onetti. Que importa saber que o Lowry bebia? Importa é ler À Sombra do Vulcão. Quando me convidam para eventos, digo que quero falar de literatura. Mesmo a política me incomoda, porque meus romances são políticos. A arte é política. Hamlet é sobre uma luta pelo poder! Grande Sertão tem um julgamento político em pleno sertão! Claro, esses livros têm uma dimensão metafísica, histórica e simbólica. Quem vai ser Roberto Freire daqui a 10 anos? Nada. Ele vai escrever as memórias dele e ninguém vai ler.
Como é lidar com a vaidade, o ego, inerentes a todo artista? Quando cheguei a SP e conheci a Leyla Perrone, ela me disse, depois que escrevi o Relato: “Eu já andei um bocado, então vou te dizer, não se entusiasme com as resenhas elogiosas nem se deprima com as resenhas demolidoras, isso vai sempre existir. Você que é da Amazônia, tem esse ar contemplativo, oriental, fica nessa!” O auto-elogio é patético. Uma vez escrevi uma crônica tirando o sarro de um prêmio que eu ganhei, o Baiacu de Ouro, um prêmio de Manaus, falo que minha vaidade na época era enorme, e depois foi se esvaziando. O Raduan sem o Camões seria menor?
O que você pensa da sorte? A sorte eu relaciono ao impoderável. É o destino. Palavras muito próximas. O destino é impoderável, como a sorte. Mas acho que você também busca coisas na vida. Você faz a hora também, não fica esperando. Há manhãs em que você está muito inspirado. Eu às vezes acredito na inspiração e às vezes não acredito, quando não escrevo, por exemplo. Quando eu olho para aquela romãzeira florindo eu acho que alguma coisa pode nascer e acontecer. É uma sorte quando você pode ter inspiração e escrever em vez de ficar vendo essa realidade horrível. A realidade te fenece aos poucos. O amor, as crianças, sua paixão, a arte, e sobretudo as palmeiras, as clúzeas, as romanzeiras, os pajás, os manacás, salvam a gente.
[Entrevista originalmente realizada para a revista Personnalité]
Uma aula.