Bolaño, Fonseca, Cortázar, Lins

Bolaño em visual chicano selbaje
Bolaño em visual chicano selbaje

Tradução de um trecho de La Literatura Nazi en América, de Roberto BolañoO tal polêmico capítulo em que Rubem Fonseca é citado. Outro escritor brasileiro citado é Osman Lins, que também aparece no último romance póstumo e inacabado de Bolaño, Los Sinsabores del Verdadero Policía, publicado no fim de 2010. (Também são citados Haroldo e Augusto de Campos, mas estes, desairosamente.) Em Los Sinsabores, Lins foi amigo de Amalfitano – professor de literatura e tradutor, personagem também do póstumo e inacabado 2666.

Fica aí uma sugestão para o crítico insone: investigar as ligações entre os hipertextos de Lins e de Bolaño, que certamente tinha em alta conta o pernambucano autor do polifônico Avalovara. Sempre comparam Bolaño com Cortázar por conta das semelhanças entre Jogo de Amarelinha e Os Detetives Selvagens; meu chute é que o chileno leu o argentino via o pernambucano.

Literatura Nazi, seu segundo livro, escrito quando Bolaño tinha 40 anos, é uma borgiana enciclopédia de fictícios escritores das três Américas, de tendências totalitárias, fascistas, torpes – um dos grandes temas da literatura bolañesa. É um dos livros mais engraçados e ao mesmo tempo horripilantes do chileno; já demonstra sua brutal capacidade fabuladora, que vai levar a extremos em 2666, a par com a criatividade para inventar argumentos de livros inexistentes, como o faz em Los Sinsabores, em que descreve em detalhes as obras do misterioso escritor Arcimboldi.

Este “verbete” em especial registra, curiosamente, a influência avassaladora de Rubem Fonseca sobre a literatura brasileira, bem como seu silêncio e seu texto descarnado, ósseo – sem deixar de dedurar o funcionamento da ditadura, e sugerir, nas entrelinhas, a até hoje obscura ligação do ex-delegado Fonseca com os militares. O tal chileno entendia alguma coisa da nossa literatura, e também da nossa política literária. Vamos a ele.

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AMADO COUTO
Juiz de Fora, Brasil, 1948 – Paris, 1989

Couto escreveu um livro de contos que nenhuma editora aceitou. O livro se perdeu. Logo começou a trabalhar no Esquadrão da Morte e sequestrou e ajudou a torturar e viu como matavam algumas pessoas mas continua pensando em literatura, mais precisamente no que necessitava a literatura brasileira. Vanguarda, precisava, letras experimentais, dinamite, mas não como os irmãos Campos, que lhe pareciam chatíssimos, um par de professorinhos anêmicos, e não como Osman Lins, que lhe parecia francamente ilegível (e por que publicavam Osman Lins e não os seus contos?), e sim alguma coisa moderna e puxada pro seu gosto, algo policial (mas brasileiro, não norte-americano), um continuador de Rubem Fonseca, para deixar mais claro. Esse escrevia muito, e mesmo que o chamassem de filho da puta, para Couto tanto fazia. Um dia pensou, enquanto esperava por um carro num campo vazio, que não seria má ideia sequestrar e dar um jeito em Fonseca. Disse isso a seus chefes e eles o escutaram. Mas a ideia não foi pra frente. Colocar Fonseca no coração de um verdadeiro romance nublou e iluminou os sonhos de Couto. Os chefes tinham chefes e em alguma parte da cadeia o nome de Fonseca tinha se evaporado, e deixou de existir, mas em sua cadeia privada o nome de Fonseca era cada vez maior, mais precioso, mais aberto e receptivo à sua entrada, como se a palavra Fonseca fosse uma ferida e a palavra Couto uma arma. Assim que leu Fonseca, leu a ferida até que esta começou a supurar, e logo caiu doente e seus companheiros o levaram a um hospital, e dizem que delirou: viu o grande romance policial-brasileiro em um pavilhão de hepatologia, o viu com detalhes, com trama, laço e desenlace, e lhe pareceu que estava no deserto do Egito e que se aproximava como uma onda (ele era uma onda) sobre as pirâmides em construção. Escreveu, portanto, o romance e o publicou. O romance se chamava Nada a Declarar e era um romance policial. O herói se chamava Paulinho e às vezes era o chofer de uns senhores e outras vezes era um detetive e outras um esqueleto que fumava em um corredor escutando gritos longínquos, um esqueleto que entrava em todas as casas (a todas não, só nas casas de classe média ou dos sem-cerimônia) mas nunca se aproximava demais das pessoas. Publicou o romance na coleção Pistola Negra, que editava policiais norte-americanos, franceses e brasileiros, ultimamente mais brasileiros porque o dinheiro para pagar royalties estava escasso. E seus companheiros leram o romance e quase ninguém o entendeu. Então já não saíam de carro juntos nem sequestravam nem torturavam, mas um ou outro ainda matava. Tenho de me soltar dessa gente e ser escritor, escreveu Couto, em algum lugar. Mas era difícil. Uma vez tentou ver Fonseca. Segundo Couto, se olharam. Que velho está, pensou, já não é Mandrake nem é ninguém, mas se trocaria por ele mesmo que somente por uma semana. Também pensou que o jeito de olhar de Fonseca era mais duro que o seu. Eu vivo entre piranhas, escreveu, mas dom Rubem Fonseca vive em um aquário de tubarões metafísicos. Escreveu-lhe uma carta. Não recebeu resposta. Assim, escreveu outro romance, A Última Palavra, publicada de novo pela Pistola Negra, em que punha Paulinho em cena outra vez e que no fundo era como se Couto se desnudasse diante de Fonseca sem nenhuma vergonha, como se lhe dissesse aqui estou eu, sozinho, carregando minhas piranhas enquanto meus companheiros percorrem as ruas do centro de madrugada, como os homens do saco levam as crianças, o mistério da escrita. E mesmo que provavelmente Fonseca nunca lesse seus romances continuou escrevendo. N’A Última Palavra apareciam mais esqueletos. Paulinho já quase era um esqueleto. Seus clientes eram esqueletos. As pessoas com quem Paulinho conversava, fodia, comia (mesmo que por hábito comesse sozinho), também eram esqueletos. E em seu terceiro romance, A Mudinha, as principais cidades do Brasil eram como esqueletos enormes, e também os povoados eram esqueletos pequenos, esqueletos infantis, e às vezes as palavras se metamorfoseavam em ossos. E não escreveu mais. Alguém disse para ele que seus companheiros de sequestro estavam sumindo, ficou com medo, ou seja, entrou ainda mais medo em seu corpo. Tentou voltar uns passos atrás, encontrar caras conhecidas, mas tudo havia mudado enquanto ele escrevia. Alguns desconhecidos começaram a falar de seus romances. Um deles poderia ter sido Fonseca, mas não foi. Eu o tive em minhas mãos, anotou em seu diário, antes de desaparecer como um sonho. Depois foi para Paris e ali se enforcou em um quarto do hotel La Grèce.

 

Autor: rbressane

Writer, journalist, editor

9 pensamentos

  1. Ronaldo, você acha que há alguma relação (como se supôs de leve na época) entre a publicação de Bolaño pela Companhia das Letras e a saída do Zé Rubem da casa? Abraços.

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